A construtora Lorenzoni acusa a Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Obras Públicas (Sedop) de ter cometido uma fraude licitatória no programa Asfalto na Cidade, durante a gestão do ex-governador Simão Jatene, que pode ter causado um prejuízo superior a R$ 21 milhões aos cofres públicos. Segundo ela, assessores da secretaria lhe comunicaram que, “por ordem de cima”, só ficaria com a metade do contrato que conquistara, em uma licitação para 50 km de pavimentação, nas regiões de Integração do Xingu e do Lago de Tucuruí. Motivo: as empresas que trabalhariam na região do Lago de Tucuruí já estavam escolhidas.
Ela teria sido, então, “coagida” a aceitar o arranjo ilegal, concordando em subcontratar tais empresas, sob pena de a licitação ser cancelada. Depois, acabou surpreendida por uma avalanche de sub-rogações, outro instrumento para transferência de serviços, realizada sem base legal. A denúncia foi feita pelo gerente comercial da Lorenzoni, José Eduardo de Carvalho, em depoimento, no último dia 2, à Auditoria Geral do Estado (AGE), que investiga supostas irregularidades no Asfalto
Segundo depoimento, a construtora foi obrigada a ceder a metade do contrato que ganhara, para evitar a anulação do certame do Asfalto na Cidade. E que assessores da Sedop usaram de “má-fé” na Cidade, um dos maiores escândalos do Pará. A empresa é a segunda a abrir o jogo à AGE. A primeira foi a construtora Leal Junior: no mês passado, ela confessou que a Sedop lhe pagou por 15 km de pavimentações não realizadas.
O asfalto fantasma teria gerado um prejuízo de quase R$ 20 milhões ao erário, já que o preço de um asfaltamento simples gira em torno de R$ 1,3 milhão por km. No entanto, o depoimento da Lorenzoni foi mais explosivo. José Eduardo afirmou, por várias vezes, que a empresa foi obrigada a ceder a metade do contrato que ganhara, para evitar a anulação do certame. E que assessores da Sedop usaram de “má-fé” contra ela, aquando da assinatura das sub-rogações.
Por lei, e desde que previsto no contrato, uma empresa que ganha uma licitação pode subcontratar ou sub-rogar parte dos serviços, até o limite de 50% do valor contratual. No entanto, na subcontratação, é a empresa quem fiscaliza as obras das subcontratadas, além de emitir as notas fiscais para o Poder Público. Já na sub-rogação, é o Poder Público quem fiscaliza as obras, e as sub-rogadas emitem as notas fiscais diretamente para ele.
Contrato
Para obter as sub-rogações do contrato da Lorenzoni, assinado em 2014, dois assessores da Sedop teriam recusado a procuração pública de José Eduardo, como representante legal da empresa. Teriam exigido a presença do proprietário, que mora em Altamira, a quilômetros de Belém. Com isso, teria sobrado para o filho do dono, que estudava na capital e fazia parte do quadro societário, mas nada sabia sobre contratos ou legislação e nem teria podido ler a papelada. Já José Eduardo, que conhecia bem a licitação, teria sido até impedido de permanecer naquela sala, pelos assessores.
Devido a tais manobras e à sonegação posterior de documentos, diz José Eduardo, a Lorenzoni não possui nem mesmo cópias dessas sub-rogações, não sabe a quanto elas chegaram e nem conhece a maior parte das empresas beneficiadas – apenas duas delas, incluindo a derrotada na licitação, a construtora Best. Só teria tomado conhecimento da gravidade do caso através das publicações da AGE, no Oficial do Estado. No contrato entre a Lorenzoni e a Sedop não havia previsão de sub-rogação, apenas de subcontratação.
Daí a quase certeza de que todas essas sub-rogações são ilegais. Além disso, há o volume que atingiram: segundo a AGE, mais de R$ 21 milhões, para um contrato originário de R$ 15,5 milhões. Ou seja: é como se a Lorenzoni tivesse distribuído a essas empresas R$ 5,5 milhões em contratos, acima do que tinha a receber da Sedop.
Ex-assessor de Jatene entre os acusados
José Eduardo de Carvalho apontou dois ex-engenheiros da Sedop, José Bernardo Macedo Pinho e Raimundo Maria Miranda de Almeida, ex-coordenadores do Asfalto na Cidade, como responsáveis pela suposta fraude e pela “má-fé” na assinatura das sub-rogações.
Mas também afiançou que José Bernardo lhe disse que a empresa não poderia ficar com a totalidade do contrato que ganhara, devido a uma “ordem de cima”. Por isso, o gerente da Lorenzoni acredita que a ordem partiu do secretário da Seop (hoje Sedop) da época, Pedro Abílio Torres do Carmo. Os dois engenheiros, aliás, não eram concursados e estavam vinculados diretamente ao secretário, através de cargos de confiança. Em 2011 e 2012, José Bernardo chegou a ser até assessor especial do então governador Simão Jatene.
Engenheiro
No 1º governo de Jatene, entre 2002 e 2006, foi assessor de convênios da Secretaria de Transportes (Setran), na época comandada por Pedro Abílio. Homem de confiança do ex-governador, Abílio reassumiu a Sedop em 2018 quando, afirma o Ministério Público Eleitoral (MPE), o Asfalto na Cidade foi usado para turbinar campanha do candidato de Jatene ao Governo do Estado.
José Bernardo também é o mesmo que, em depoimento à AGE, teria confessado que, obedecendo a “ordens superiores”, fraudava os documentos de medição dos serviços de empresas do programa, o que teria permitido, segundo a AGE, até o pagamento de obras nunca executadas.
Ele era o fiscal do contrato da Leal Junior (aquela do asfalto fantasma). Também teria confessado que continuava a manter contato com construtoras que receberam pagamentos antecipados e ilegais da Sedop, para que concluíssem os serviços neste ano, já no novo governo. O fato poderia levar à destruição de provas, já que o programa está suspenso desde janeiro, devido às investigações da AGE.
Veja alguns dos principais trechos do depoimento do gerente da Lorenzoni
Com base na Lei de Acesso à Informação, o DIÁRIO pediu, e obteve, cópia dos vídeos com o depoimento de José Eduardo de Carvalho, gerente comercial da Lorenzoni desde 2013. São 8 vídeos, com uma hora e meia de duração, no total. José Eduardo esteve acompanhado de um advogado. Pela AGE, participaram o auditor-geral do Estado, Giussepp Mendes, e o gerente de Obras, Paulo Heidtmann. Veja alguns dos principais trechos:
Giussepp Mendes: O senhor sabe me dizer por que houve uma sub-rogação?
José Eduardo: Eu volto a dizer: me tiraram da sala porque sabiam que eu não ia aceitar essa situação.
Giussepp Mendes: Então, o senhor acredita que eles incorreram...
José Eduardo: Foram de má-fé, todos dois, o Miranda e Bernardo. Por sinal, o seu Bernardo usou de má-fé desde o início da licitação. Porque eu tava com a documentação. Eu senti na época (não tenho como provar isso, mas eu senti na época) que não era pra nós ganharmos. Ganhamos porque a gente tava documentado e ganhamos a obra. E assim foi sucessivamente.
Paulo Heidtmann: Deixa eu fazer uma pergunta. Lá no início, o senhor mencionou que numa das vezes em que o senhor foi assinar o contrato, não sei se o primeiro contrato, foi imposto a vocês a condição de aceitar ou de cancelar a licitação.
José Eduardo: Positivo.
Paulo Heidtmann: Não ficou claro pra mim quando o senhor disse que essa decisão era como se já estivesse imposto ao senhor uma parcela daquilo que o senhor havia ganho na integralidade. Eu queria que o senhor explicasse isso melhor.
José Eduardo: O senhor entendeu isso mesmo, foi isso mesmo. O que aconteceu? Me chamaram e disseram o seguinte: você vai ficar com a sua área, Região do Xingu, e a área de lá de Tucuruí nós já temos as nossas empresas. Foi bem claro.
Paulo Heidtmann: Mas o senhor não ganhou tudo?
José Eduardo: Ou eu aceitava ou era cancelado, foi falado. “Ou aceita ou é cancelado por bem da ordem pública”.
Paulo Heidtmann: O senhor está dizendo que ganhou 100% de uma licitação e lhe deram uma fatia?
José Eduardo: Exatamente. E a gente tinha que aceitar, como a gente aceitou muitos desmandos do pessoal que coordenava o Asfalto na Cidade.
Giussepp Mendes: O senhor pode me dizer um desmando?
José Eduardo: Um foi esse. Claro! Ou seja, eu ganhei tudo, mas não podia assumir tudo.
Giussepp Mendes: Quem lhe comunicou que o senhor só ficaria com a Região do Xingu?
José Eduardo: O senhor Bernardo. O senhor Bernardo era quem coordenava toda a execução do Asfalto e eu questionei ele...
Giussepp Mendes: Mas o senhor acredita que ele tenha exercido essa função a mando de alguém?
José Eduardo: Sim. Porque eu perguntei por que a situação. E ele disse: “não, ou você aceita ou é cancelado pelo bem público”. Aí eu perguntei: mas por quê?...
Giussepp Mendes: ...Mas ele não chegou a dizer o nome de quem mandou dizer isso...
José Eduardo: ...Ele disse: “senhor, eu não posso lhe dizer. A ordem vem de cima. A ordem vem de cima, tem que ser assim porque já tem as empresas”. E ainda disse mais: “você não dá conta!” Eu disse não, quem tem que saber se não dá conta sou eu. Se vou alugar, se vou sublocar, subcontratar, quem vai decidir sou eu. “Não, é pegar ou largar”. Tanto que hoje, na licitação...
Giussepp Mendes: ...O senhor se sentiu coagido?
José Eduardo: Sim. E diversas vezes, diversas vezes. Lá, assim, a gente...Pra se ter...Tô me sentindo mais à vontade aqui, quero deixar claro, tô me sentindo mais à vontade aqui, colocando a situação verdadeira, do que quando eu entrava na Sedop pra conversar com o Miranda e com...Os homens eram uns deuses, entendeu? Quando era pra conversar com eles, eram arrogantes, era...Até então eu imaginava assim: meu Deus, como será eu conversar com o Pedro Abílio, na época. Porque eu não tive acesso, em nenhum momento, ao Pedro Abílio.
Giussepp Mendes: Mas o senhor chegou a questionar por que o senhor não faria a Região do Lago de Tucuruí?
José Eduardo: Cheguei a questionar sim. Inclusive, na minha vinda de Altamira, pra assinar o contrato, eu passei Pacajá; passei Novo Repartimento, fui lá com o prefeito, andamos nas ruas que eram pra ser asfaltadas; passei em Breu Branco, passeamos nas ruas com o prefeito onde era pra ser asfaltado. Visitamos tudo! Mas quando foi pra assinar o contrato, foi determinado isso.
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