O som gingado do berimbau atravessa as janelas abertas da Associação dos Moradores do Conjunto Ariri Bolonha e ecoa pelas ruas do Conjunto Sideral anunciando: é dia de capoeira. Criada ainda no século XVII pela população negra escravizada, a luta genuinamente brasileira e que chegou a ser proibida por lei entre o final do século XIX e início do XX nem sempre é praticada nas grandes academias localizadas no centro de Belém, mas permanece viva e pulsante em muitos bairros da periferia da capital paraense, como no Coqueiro.
No espaço emoldurado por paredes repletas de janelas da sede da associação de moradores, crianças e jovens com idades entre 5 e 37 anos mantêm o olhar atento aos movimentos e aos cantos entoados pelo professor diante da roda formada. Entre palmas, cada um aguarda o momento exato de se disponibilizar a jogar. Discretamente, o pretendente se aproxima dos dois que já estão jogando e, sem que haja qualquer resistência, escolhe um, se coloca à frente e assume o lugar. O que se vê, a partir daí, é uma mescla de movimentos ritmados, gingados, mas indiscutivelmente fortes.
Quem acompanha o entusiasmo no olhar das crianças em uma das aulas mantidas na Associação dos Moradores do Conjunto Ariri Bolonha não imagina que, como na própria história de seu surgimento, a capoeira também enfrentou certa resistência até que fosse abraçada, de vez, pela comunidade.
Há seis anos, a estratégia adotada pelo técnico de informática e professor de capoeira Thiago Cavalcante, 32 anos, foi a de demonstrar, ainda que espontaneamente, que a capoeira se fazia presente mesmo que não houvesse um único aluno para ensinar. “Eu comecei a correr em volta da praça de abadá e, partir daí, começaram a se interessar, a perguntar”, lembra. “Hoje temos 53 crianças e jovens no projeto. São moradores aqui da comunidade e também de comunidades próximas”.
Quando a memória vai ainda mais distante, Thiago lembra que ele mesmo iniciou na prática da capoeira em um projeto desenvolvido no bairro onde cresceu, a Cabanagem. Desde esse início, aos 14 anos de idade, até hoje ele só ficou afastado da luta por quatro anos. “A capoeira é uma opção. Foi uma fonte de ajuda para mim”.
Para a estudante Luana Raíssa, de 15 anos, a capoeira é, também, uma segunda família. A rotina de aulas no grupo coordenado pelo professor Thiago já dura cinco anos. “Quando eu estou na capoeira eu esqueço de tudo, dos problemas”, conta. “Aqui a gente aprende não só capoeira, mas que temos que estudar e respeitar em casa”.
Com 10 anos de prática da luta, Carla Baía, 26 anos, também acumula aprendizados. “A capoeira ainda é vista como um ambiente muito masculino, por isso as mulheres têm um papel muito importante dentro dela. Foi dentro da capoeira que eu me reconheci enquanto mulher negra”.
Em outro bairro de Belém, no conjunto Paraíso dos Pássaros, as mulheres são maioria no Projeto Gingado do Saber, desenvolvido nas dependências da Escola Estadual Ruy Paranatinga Barata. O projeto, que reúne 18 pessoas com idades até 17 anos, é ligado ao grupo de capoeira Abolição, localizado em Icoaraci e do qual o professor João Júnior, 31 anos, faz parte.
Ainda que o local de treino seja outro, Júnior lembra que ele e a esposa Walquinne Martins, 37 anos, tiveram um excelente motivo para adotar a capoeira também no Paraíso dos Pássaros. “Quando nos mudamos para cá surgiu a ideia de fazer um projeto envolvendo as crianças da comunidade”, lembra. “Então nós buscamos a parceria de alguma escola e passamos nas casas falando sobre as aulas”.
Desde então, há um ano as crianças do entorno da escola têm a oportunidade de aprender um esporte diferente, com aulas sempre aos sábados e domingos. Em pouco tempo, as consequências da prática da capoeira já começam a se destacar. “O Kaique sofreu um acidente e, por isso, ficou com dificuldade de locomoção em uma perna porque na época ele não teve condição de fazer fisioterapia”, lembra Júnior. “Ele começou a treinar com a gente e no início ele dizia que não conseguiria fazer alguns movimentos, mas ele foi tentando e hoje ele já consegue andar melhor e até mesmo correr”, complementa, orgulhosa, Walquinne.
Família
Diante dos colegas e dos professores, o jovem João Kaique, de 12 anos, resume em uma frase o que a prática da capoeira tem proporcionado a ele até hoje. “Eu me sinto feliz porque ele é como um segundo pai, ela é como uma segunda mãe e eles são como meus irmãos”.
A família criada em torno da roda de capoeira não é exatamente uma novidade para o professor que coordena o projeto. Assim como em outras rodas localizadas em outros bairros, o homem que ensina hoje também já foi uma criança amparada pelo ensinamento, cultura e pela arte que envolve a capoeira. “Eu comecei verde, como eles, e a capoeira foi quem fez a diferença na minha vida, tirando da rua e dando uma ocupação”, lembra o professor João Júnior. “O meu início na capoeira foi com 12 anos, no bairro do Telégrafo, onde eu morava com a minha avó. Cada bairro da periferia de Belém tem o seu grupo de capoeira, tem alguém praticando”.
Museu da UFPA também é palco para a capoeira
Além dos centros comunitários e escolas dos bairros menos centrais de Belém, a capoeira, enquanto manifestação cultural e esportiva, também alcança espaço de contemplação e produção de conhecimento. Há três anos, o Museu da Universidade Federal do Pará (UFPA), localizado no bairro de Nazaré, também é palco para a luta.
Funcionário do museu e professor do projeto Capoeira no Museu, o museólogo Wanderson Amorim, 28 anos, deixa clara a relação entre a luta e o espaço. “Existe todo um contexto cultural por trás da capoeira. Ela é luta, mas também é dança, é relação social, é arte, é patrimônio histórico”, enumera. “Já que o objetivo é promover a integração da sociedade ao museu, nada melhor do que proporcionar uma prática que englobe tudo isso”.
Símbolo de resistência, a capoeira chegou a ser proibida no Brasil
Desde o seu surgimento, ainda no século XVII, a capoeira se configurou como uma manifestação de resistência. À época, o regime no Brasil mantinha a população negra escravizada e a luta, mesclada com dança e música, foi a forma encontrada para despistar os escravagistas.
Justamente por causa dessa origem e por representar uma eficiente forma de resistência em confrontos com os capitães do mato, a capoeira foi proibida por lei até 1937. Apesar disso, nunca deixou de ser praticada. “Tudo isso foi graças ao mestre Bimba, que fez uma apresentação de capoeira para o presidente da República na época, Getúlio Vargas”, aponta o professor Marcio Belém, que integra o Grupo Capoeira Brasil.
Ele conta que esse histórico também contribuiu para a própria característica da capoeira. A luta criada originalmente – chamada hoje de Angola - é jogada mais próximo ao chão, já que a população escravizada não tinha muito espaço nas senzalas. Posteriormente, outros golpes foram sendo acrescentados e a capoeira passou a ser jogada mais em pé, criando o estilo regional.
“A angola é uma capoeira lenta de ser jogada, mas ao mesmo tempo perigosa e agressiva; a regional já é uma capoeira mais de pernadas, com golpes mais rápidos; e também tem a contemporânea, que já é uma capoeira mais movimento de ataque e defesa, com mais movimentações onde se trabalha bem a parte aeróbica e onde se exige muito do corpo”, explica o professor. “Independente do estilo, uma coisa interessante é que a capoeira é 90% raciocínio e 10% corpo”.
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