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TRAGÉDIA HISTÓRICA

Ditadura militar: cicatrizes que atravessam a história

“Você está preso!”. Sem qualquer explicação, esta foi a única frase ouvida pelo economista Orlando dos Anjos Silva antes de ser conduzido à delegacia pelo grupo de militares que surgiu em sua casa em uma tarde do mês de abril de 1964, ano do Golpe Militar

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Imagem ilustrativa da notícia Ditadura militar: cicatrizes que atravessam a história camera Orlando lembra a prisão e torturas que sofreu durante a ditadura militar | Olga Leiria

“Você está preso!”. Sem qualquer explicação, esta foi a única frase ouvida pelo economista Orlando dos Anjos Silva antes de ser conduzido à delegacia pelo grupo de militares que surgiu em sua casa em uma tarde do mês de abril de 1964, ano do Golpe Militar, que neste dia 31 de março de 2020 completa 56 anos. À época, Orlando era apenas um estudante universitário de Belém que, pelas ideias defendidas, sentiu as heranças deixadas pela ditadura não apenas no cenário nacional, como também no estado do Pará. “Não se podia dizer que era comunista, porque senão você era preso”.

Aos 87 anos de idade, aposentado, Orlando vive com a esposa Iraci na mesma residência do bairro de São Brás em que, na juventude, chegou a ser escoltado pelos militares. Ainda hoje ele recorda os efeitos gerados a partir do golpe de 1964. Na época, além de estudar contabilidade e trabalhar nos Correios, Orlando se reunia com colegas de partido para discutir os ideais comuns e as leituras de teóricos como Karl Marx. Tais práticas foram consideradas suficientes para que o jovem fosse preso. “Num dia veio aqui em casa um cidadão da polícia e conversou comigo, viu meus livros e foi embora. Nunca mais apareceu”, recorda.

A segunda visita recebida pelo então estudante foi a que resultou em sua prisão. Sem que dessem qualquer explicação a respeito do motivo, Orlando foi conduzido até o quartel localizado na avenida Assis de Vasconcelos. “Lá fui jogado dentro de um porão e fiquei durante oito dias com outras pessoas do partido, trabalhadores, todo mundo que eles consideravam subversivos”, lembra. “Depois fomos transferidos para o presídio de Cotijuba. Na escadinha, pegamos um barco e fomos metidos debaixo de um toldo. Ao chegar na ponte de Cotijuba, o barulho de fuzis que a gente ouvia deu muito medo”.

Período histórico é lembrado pelas perseguições contra adversários políticos
📷 Período histórico é lembrado pelas perseguições contra adversários políticos |FolhaPress

Diferente de muitos dos presos durante esse período no país, Orlando conta que não sofreu violência física, mas sentiu os efeitos das torturas psicológicas. Depois de 30 dias preso, Orlando foi liberado ao ser absolvido em todos os cinco Inquéritos Policiais Militares (IPM) a que foi indiciado. “O que eles puderam constatar é que eu era comunista, mas nada além disso. Eu nunca defendi o uso de armas, nunca tinha feito nada que justificasse a minha prisão”, conta. “O que nós procurávamos nas reuniões eram melhores condições de vida para todos os seres humanos”.

ATAQUES

A historiadora e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Edilza Fontes, destaca que uma ditadura, como a instalada no Brasil a partir do golpe de 1964, tem como característica justamente a centralização do poder nas mãos do ditador. Daí o ataque aos poderes legislativos e a qualquer pessoa que se coloque contrário ao defendido por quem está no poder. Como consequência, da Ditadura Civil Militar brasileira, Edilza conta que documentações históricas da época apontam a prisão de muitos sindicalistas e estudantes em todo o país, assim como o ocorrido com Orlando em Belém.

Desde a tomada do poder, os militares foram criando novas constituições que resultaram no encerramento dos partidos, no fim das eleições para prefeito e governador, em regras muito específicas para as eleições de deputados federais e senadores, etc. Dentre os Atos Institucionais mais conhecidos está o AI-5, publicado em 13 de dezembro de 1968. “O AI5 não foi votado nem mesmo no Congresso que existia à época. Foi imposto pelo presidente Costa e Silva e acabava com qualquer oposição aos governos militares, com qualquer direito da sociedade civil”, explica a historiadora. “A partir dele, o Governo poderia entrar na casa das pessoas e prendê-las. Muita gente foi presa, torturada, dada como desaparecida política, a exemplo dos levantamentos feitos pela Comissão da Verdade”.

Dentre os principais alvos dos militares, segundo a professora, estavam os ligados às ideologias da esquerda que ocupavam lugar de destaque. No Pará, a professora conta que um dos presos foi Raimundo Jinkings, que era coordenador do Comando Geral dos Trabalhadores (CGT) à época, além de funcionário de um banco regional instalado em Belém. “O Jinkings é perseguido, foge de casa, mas é preso um mês depois. Ele foi demitido do banco e a família dele passa a ter que vender verduras na feira da Batista Campos”, conta Edilza. “Diante da situação, um famoso professor da Universidade de São Paulo (USP) que também foi cassado, o Caio Prado Júnior, envia exemplares de livros para o Jinkings e ele começa a vender livros, o que depois resulta na livraria Jinkings”.

Os efeitos causados a outro preso na época da ditadura no Pará foram mais trágicos. Edilza conta que Benedito Pereira Serra, presidente da União dos Lavradores e Trabalhadores Agrários do Pará (ULTAP) foi retirado de casa, em Castanhal, pela Polícia Militar e levado para Belém. “Quando é preso, Benedito já apanha na frente do filho”, conta Edilza. “Já em Belém, antes de entregá-lo aos militares, a PM concede uma entrevista ao jornal A Província do Pará, onde sai, inclusive, a foto de Benedito Pereira Serra detido”.

A partir daí, segundo conta a historiadora, a família de Benedito não teve mais notícias dele. Apenas um mês depois, um soldado foi até a casa da família e falou com a esposa de Benedito, Miracy Serra. Edilza conta que o soldado disse à Miracy que o Benedito havia sido deixado na porta do Hospital Militar de Belém. Ao se dirigir ao local, Miracy ainda consegue ter uma conversa com marido, quando ele teria contado toda a tortura sofrida, como havia ficado nu, deitado em uma cela fria, daí contraindo uma pneumonia. Após o encontro, Benedito morre. “Apesar de ter uma prova, através da reportagem da Província, que mostra ele foi entregue para o Exército, até hoje não explicam para onde ele foi levado, que tropa o conduziu”, conta a professora. “Isso é uma ditadura. Podem lhe prender e sumir com você. E o que o Benedito fazia? Reuniões exigindo reforma agrária e terra para os lavradores, o que hoje, numa democracia, é uma coisa normal”.

Aos efeitos causados por todo esse passado exemplificado nas histórias de Orlando, Jinkings e Benedito, a professora chama de herança. “Instalar uma ditadura e fazer a quebra de um governo democraticamente eleito, deixa traumas. E, às vezes, esse trauma deixa uma herança que convive com a gente até hoje”.

Amazônia sente mudanças até hoje

Mais do que a centralização do poder e a perseguição aos que mantinham ideais contrários às do poder vigente, a Ditadura Civil Militar instalada no Brasil também tinha planos para a Amazônia. A historiadora e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Edilza Fontes, conta que os militares pensaram a Amazônia como um espaço vazio, uma região que precisaria ser integrada ao mercado nacional e, com isso, adotaram medidas que deixaram heranças sentidas até hoje.

Segundo a professora, com o argumento de integrar a região ao mercado nacional, os governos militares suspenderam toda a legislação agrária que existia no Pará desde os anos 30 e colocam à venda dois terços de terras devolutas do Estado, já nos anos 70. “Ao mesmo tempo, há um chamamento para vir para a Amazônia. O slogan era ‘Terras sem homens, para homens sem terra’”, lembra. “Essa é uma das características que esses governos militares vão deixar na Amazônia. Não se fez a reforma agrária. Nesse primeiro momento começam a vir muitas pessoas para cá e começam a ter conflitos por essas terras, principalmente pelas que ficavam na beira da Belém-Brasília. Com isso, o Pará, que não tinha grande conflitos agrários por terra, passa a ser a referência de conflitos agrários no país”.

Edilza cita como herança deixada na Amazônia pelos anos de ditadura militar no Brasil, o inchaço de uma população migrante que vive sem proteção social, o desmatamento da floresta, a dizimação das populações indígenas e o não reconhecimento de comunidades quilombolas e ribeirinhas que viveram à margem durante muito tempo. “A Amazônia terá uma intervenção muito forte com propostas que não resultaram em integração nacional e que aprofundou as desigualdades. Não foram solucionados os problemas, foram criados novos”, aponta. “E tudo isso não é uma opinião, mas resultado de um trabalho de investigação e pesquisa. Uma das coisas que o historiador tem como parte de seu trabalho é basear toda a sua pesquisa em provas, documentações históricas”.

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