A representatividade da mulher negra em espaços de poder é um assunto muito caro para elas. É ainda mais paradoxal e discrepante quando se relacionam os dados de pessoas negras e pardas que residem no Brasil com os que aparecem em cenários nobres e privilegiados, seja na arte ou na política brasileira. É o que constata a ativista negra, atriz e professora emérita da Universidade Federal do Pará (UFPA) Zélia Amador.
Filha de empregada doméstica, a professora alcançou o doutorado e é uma das principais referências na defesa dos direitos dos negros, mulheres, indígenas e quilombolas, assim como o seu combate persistente à injustiça, à violência e ao preconceito. Cofundadora do Centro de Estudo e Defesa do Negro no Pará (Cedenpa), Zélia é considera símbolo de resistência.
Ontem, 25, foi lembrado o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha. A data é celebrada desde 1992, quando realizado o “I Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-caribenhas” em Santo Domingo, capital da República Dominicana, e marca a resistência e luta internacional da mulher negra no continente. No Brasil também é celebrada nessa data Teresa de Benguela, líder do quilombo de Quariterê no século 18.
“Essa data foi forjada num processo de luta do feminismo negro na América e no Caribe. No Brasil, o Dia Internacional da Mulher Afrobrasileira Americana e Caribenha foi instituído em 2014. É uma data simbólica, resultado da luta transnacional das mulheres negras da diáspora – negros que foram sequestrados de seus lugares de origem e colocados aqui na condição de escravos”, explica Zélia.
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Geralmente, para marcar a data, ela conta que são feitas marchas e fóruns de debate no Brasil inteiro, mas, em decorrência da pandemia do novo coronavírus, ocorrem lives e encontros virtuais. “O racismo nunca deixou de existir desde que o colonizador aqui chegou. Essa ausência de mulheres negras em espaços de poder, não só no Brasil, é resultado de racismo. Nós temos uma sub-representatividade das mulheres negras nesses espaços”, lamenta, destacando que, por outro lado, isso revela um dado paradoxal: “Nós somos mais da metade da população – isso contando pretos e pardos, que são em torno de 9,4% e 46,8%, respectivamente no Brasil, de acordo com os dados do ano passado do IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística]”.
PARADOXO
Embora, a pesquisa retrate essa realidade, quando se compara o número de pessoas em espaços de tomada de decisão a desigualdade é latente. “Isso é resultado de um racismo enraizado. A maioria das mulheres negras são empregadas domésticas. Seria por que elas não sabem fazer outra coisa? E quando olhamos o CEP dessas mulheres, elas residem onde? Quantas dessas mulheres estão nas direções das universidades ou ainda nas telas? Lá é que elas não estão. O grande papel delas nas novelas, por exemplo, é de serviço”, critica.
Produções audiovisuais que têm como temática as mulheres negras são muito poucas, diz. “Quando a gente compara a iniciativa das paraenses da Negritar com a websérie ‘Pretas’, percebemos que é válida, mas ainda é a única a tratar dessa temática, a elencar mulheres pretas para as telas. O racismo é tão cruel que nós já teríamos sucumbindo, se não fôssemos otimistas. Mas como diria Conceição Evaristo [escritora], ‘eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer’”, cita, fazendo referência à websérie realizadas por jovens, como a atriz e jornalista Joyce Cursino, para abrir espaço a essa representatividade da mulher negras no audiovisual paraense, na frente e por trás das câmeras.
Websérie mostra a realidade das mulheres negras
A websérie “Pretas” marcou a produção audiovisual local exatamente por colocar mulheres negras como protagonistas. A primeira temporada está disponível no YouTube e narra, em nove episódios, vivências dessas mulheres em diferentes contextos, abordando temas como desigualdades socioeconômicas, luta da mulher negra pela sobrevivência, dentre outros.
A segunda temporada vem aí com cinco episódios, contando a história de uma mulher em cada e será gravada de forma inovadora e virtual, que atenda aos protocolos de segurança da Organização Mundial de Saúde. A produção da obra será realizada pela Negritar Filmes e Produções, da cineasta Joyce Cursino, que participou como atriz e roteirista da primeira temporada realizada pela Invisível Filmes, além de produzir o circuito de exibições em escolas públicas que a série percorreu. Agora ela assume a direção geral da obra que intitula de Edição Emergencial.
“Essa data [Dia Internacional da Mulher Negra Latino-americana e Caribenha] significa luta, posicionamento, reafirmação de nossa auto-organização enquanto seres políticos e sujeitos pensantes que estão se movimentando em busca de direitos, contra a sociedade racista e machista”, explica Joyce. “A gente demarca esse espaço por ser a maioria da população brasileira e não ter a representatividade necessária nos espaços de poder. O audiovisual vem como reflexo disso. A gente não tem, no Brasil, um número de mulheres fazendo direção e roteiro, é muito pequeno. Se formos comparar, a maioria das produções são comandadas por homens brancos. O cinema, como espaço de demarcação de território, de poder e identidade, é um espaço muito urgente e necessário para onde a gente vai colocar essas narrativas e demarcar essa história, que é de luta e de resistência da população negra, sobretudo da mulher, que sofre essa dupla opressão”, diz Joyce Cursino.
Em fase de produção, a nova websérie “Pretas na Pandemia” surge para mostrar como essas fissuras sociais já existiam e ficaram ainda mais graves com a pandemia, afirma a cineasta. “Essas mulheres continuam desassistidas pela estrutura, porque não interessa para o sistema que a mulher negra, que é a base dessa pirâmide, tenha voz, visibilidade ou ocupe esses espaços, porque isso seria reverter o tipo de estrutura que foi baseada a construção desse país, tendo como conceitos o racismo e machismo”, pontua.
“Só o fato de ser uma mulher negra viva nesse país já é uma vitória e mostrar essas vivência por meio do audiovisual é, de alguma forma, falar com outras mulheres negras que, sim, é possível ocupar outros espaços”, defende Joyce.
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