A Prefeitura de Belém (PMB) tem muito a explicar sobre os indícios de irregularidades na compra de ventiladores pulmonares junto à GM Serviços Comércio e Representação. Em um programa televisivo, a dona da GM Serviços e o secretário municipal de Saúde, Sérgio Amorim, afirmam que a compra desses ventiladores ocorreu em janeiro deste ano e que ela não tem qualquer relação com a pandemia de Covid-19.
Pode ser uma tentativa de explicar a confusa história dessas aquisições: a nova “versão dos fatos” contraria os documentos da transação, emitidos, aliás, pela própria empresária e pela secretaria. Além disso, a análise atenta dos documentos permitiu ao DIÁRIO detectar uma estranha movimentação no processo da compra desses equipamentos: ela ocorreu na calada da noite, mais precisamente às 01:36:55 do último 10 de agosto, ou seja, na madrugada de uma segunda-feira.
Ao que parece, a estratégia se deve ao cerco que vem se fechando sobre os envolvidos na transação, após as reportagens do DIÁRIO. A Diretoria de Combate à Corrupção (DECOR) da Polícia Civil abriu investigação sobre o caso.
A 1ª Promotoria de Defesa do Patrimônio Público e da Moralidade Administrativa do Ministério Público Estadual (MP-PA) ajuizou Ação Civil Pública de improbidade administrativa contra o prefeito Zenaldo Coutinho, pela falta de transparência nas aquisições para o combate à pandemia, e um dos fatos citados é a compra dos ventiladores, da qual o promotor Alexandre Tourinho não conseguiu localizar a publicação da dispensa licitatória. No MP-PA, também há pedidos para que sejam investigados os vários indícios de irregularidades da transação.
A repercussão tem razão de ser: esse é um caso que quanto mais se mexe, pior fica. Agora, o DIÁRIO descobriu que Genny Missora Yamada, a dona da GM Serviços, é mulher do fisioterapeuta Otávio Oscar Furian, gestor de Qualidade da UPA da Marambaia. E é para aquela UPA que teriam sido destinados alguns dos ventiladores da empresa, comprados pela Prefeitura, segundo afirmam a própria Genny e o secretário de Saúde, Sérgio Amorim, nesse programa televisivo. Na UPA da Marambaia, a empresa também presta serviços de lavanderia hospitalar, conforme certidão do InSaúde, datada de fevereiro deste ano. A ONG InSaúde receberá da Prefeitura cerca de R$ 17 milhões por ano, para administrar a UPA da Marambaia. No estado de São Paulo, a ONG responde a processo judicial por suspeita de ter fraudado o Chamamento Público que ganhou, para a administração de unidades de saúde do município de Mococa.
Atestado
O DIÁRIO também localizou um Atestado de Capacidade Técnica apresentado pela GM Serviços no Pregão Eletrônico 47/2020, para a contratação de serviços de lavanderia hospitalar para a Secretaria Municipal de Saúde (Sesma). O documento teria sido emitido pela Macedo Hospitalar Comércio, Representação, Importação e Exportação de Equipamentos Hospitalares Ltda. Em papel timbrado e datado de 18 de dezembro do ano passado, é assinado por uma pessoa de nome Flávio Ramos, do qual não consta o cargo.
Segundo a Receita Federal, a principal atividade da Macedo Hospitalar é o comércio atacadista de instrumentos e materiais médicos, cirúrgicos, hospitalares e laboratoriais. Mesmo assim, o documento atesta que a GM Serviços “é prestadora de serviços de lavanderia hospitalar, envolvendo o processamento de roupas e tecidos em geral, em todas as suas etapas, desde a utilização à coleta, o transporte para lavagem e o retorno em condições ideais de reuso, sob situações higiênicas sanitárias adequadas e com práticas de sustentabilidade, não havendo até a presente data nada que desabone sua conduta”.
Representante
Tem mais: a Macedo Hospitalar é a representante exclusiva da Mindray, no Pará e Amapá, e os ventiladores vendidos pela GM Serviços à Prefeitura são da marca Mindray. Mas em ofício enviado, no último 2 de julho, à Diretoria de Combate à Corrupção da Polícia Civil, a Secretaria de Estado da Fazenda (Sefa) afirma que não há registro da entrada desses equipamentos na GM Serviços e que não há como informar se eles ao menos entraram no Pará, o que levanta a possibilidade de que eles não existam ou estejam em situação tão irregular que nem poderiam ter sido comercializados.
Além disso, estranhamente, nas notas fiscais da transação, a GM Serviços usou códigos tributários. Não se sabe se isso foi intencional ou erro de preenhimento. E em todos os documentos (notas fiscais, notas de empenho e o Termo de Reconhecimento de Dívida) não há qualquer informação sobre as características e os números de série desses produtos. Tudo o que consta é que são da marca Mindray, o que dificulta a identificação deles.
Empresa
O DIÁRIO também obteve o Relatório de Fiscalização 20192379, publicado pela Controladoria Geral da União (CGU) em 02 de dezembro do ano passado. Na página 171, o documento traz a suspeita de que a GM Serviços teria participado de um conluio com a empresa RS dos Santos-Me, para repartir os lotes do Pregão Presencial 09/2018, realizado pela Prefeitura de Curralinho, para a aquisição de produtos médicos.
Aberta em 2012, a GM Serviços nasceu como uma cafeteria, cujo nome de fantasia era “Coffe Cake Doceria”, em um ponto comercial na Cidade Nova IV, em Ananindeua. Ao longo dos anos, passou por várias transformações até chegar às mãos de Genny Missora Yamada. Hoje, com um capital de R$ 400 mil, realizaria 35 atividades, incluindo psicanálise. Mas três meses antes de vender esses ventiladores à Prefeitura de Belém, a Secretaria Municipal de Meio Ambiente (Semma), de Ananindeua, concedeu dispensa de licenciamento ambiental à empresa “por tratar-se de uma sala administrativa”, cuja atividade fim “é apenas de serviços de fornecimento de uniformes (...)”.
No portal da Transparência, não há empenhos em favor da empresa, entre 2013 e 2018. No ano passado, há apenas um, de R$ 60 mil, referente a um Pregão da Sesma, para o fornecimento de rouparia hospitalar. Neste ano eleitoral, porém, a Prefeitura de Belém já empenhou em favor da GM Serviços mais de R$ 1,745 milhão, 66% por contratos sem licitação.
A compra dos ventiladores pulmonares também foi realizada sem licitação e até sem contrato, que foi substituído por um Termo de Reconhecimento de Dívida (TRD). Essa transação traz a suspeita de ilegalidade, a começar por esse TRD, cujos artigos citados como a sua base legal não têm qualquer relação com a compra desses equipamentos. O primeiro, o artigo 63 da Lei 8666/93, trata apenas do acesso aos documentos de uma licitação. O segundo, o artigo 37 da Lei 4.320/64, refere-se ao pagamento de despesas realizadas pelo Poder Público em anos anteriores e que não foram quitadas.
Documentos não confirmam afirmações
No programa televisivo, Genny Missora Yamada e o secretário Sérgio Amorim afirmam que esses equipamentos foram comprados em janeiro deste ano, para a UPA da Marambaia e para o Pronto Socorro do Guamá. Ela chega a afirmar que a entrega dos ventiladores ocorreu em 10 de janeiro, “no depósito da Prefeitura”.
Mas não é isso o que diz a documentação: o Termo de Reconhecimento de Dívida (TRD) e as Notas de Empenho, emitidos pela Sesma, estão datados de 01 de abril, e as Notas Fiscais, emitidas pela empresa, são de 31 de março. As Notas Fiscais trazem, inclusive, o atesto de uma funcionária da Sesma, Cláudia Matos, de que recebeu os equipamentos em 01 de abril.
O GDOC, o sistema de informações processuais da Prefeitura, também documenta que o processo de pagamento desses ventiladores (de número 8986/2020) teve início em 01 de abril. E é de lá também que surgem sinais sinais de possíveis irregularidades. Na tramitação processual, não consta que a transação tenha passado pelo Controle Interno e pela Assessoria Jurídica da Sesma. Além disso, apesar de as Notas de Empenho estarem datadas de 01 de abril, a tramitação mostra que o processo de pagamento só chegou ao setor de empenhos do Departamento de Administração (DEAD) em 3 de abril.
Celeridade
Também chama atenção a celeridade com que foi consumada a transação. As Notas Fiscais foram emitidas as 13h10, 13h18 e 13h26 de 31 de março. E já no dia seguinte, às 8h58 de 1 de abril, era protocolado o pedido de pagamento, na Sesma. Três minutos depois, o pedido foi despachado para o Gabinete do secretário de Saúde. Lá chegou às 9:15:02. E 18 segundos depois, às 9:15:20, era despachado para a Diretoria Geral da secretaria. Como o TRD foi assinado em 1 de abril e não há sinal de que o processo tenha retornado ao Gabinete do secretário naquele dia.
Processo
Porém, o mais instigante viria depois. Desde 7 de abril o processo estava guardado no DEAD. Mas em 5 de agosto voltou a se movimentar: foi enviado para o secretário de Saúde e para o diretor geral da Sesma. No dia seguinte, uma quinta-feira, foi encaminhado ao Chefe de Gabinete. Só que ele só teria recebido o processo à 01:36:55 de 10 de agosto, ou seja, na madrugada da segunda-feira. E o chefe de Gabinete, por incrível que pareça, teria despachado o calhamaço 3 minutos depois, à 01:39:35, para o DEAD, onde, apesar de tanto esforço, só foi recebido em 12 de agosto.
Naquele dia, 4 minutos depois do recebimento, o DEAD enviou o processo ao secretário de Saúde, que ficou com ele até 2 de setembro, quando foi reenviado ao DEAD. No portal da Transparência, consta que a Sesma pagou a terceira e última parcela desses ventiladores no último 11 de setembro. Ao todo, eles custaram mais de R$ 740 mil.
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