Em 9 de outubro do ano passado, o tenente-coronel da Polícia Militar, Afonso Geomárcio Alves dos Santos, teria tentado intimidar os policiais civis que cumpriam uma ordem judicial de busca e apreensão no apartamento da mãe do então secretário municipal de Saúde de Belém, Sérgio Amorim, suspeito de participar de uma “associação criminosa” que teria desviado mais de R$ 1 milhão dos cofres públicos. Além de filmar os policiais, Geomárcio chegou a pedir o “nome completo” da delegada que comandava a operação, e a dizer, diante dos protestos dos colegas sem farda: “Eu sei o que tenho que fazer, tá certo?”. Também afirmou que realizava a filmagem a mando “do doutor Gilberto”. Aparentemente, o Procurador Geral de Justiça (PGJ) do Pará, Gilberto Valente Martins, de quem Geomárcio é assessor. Explique-se: Gilberto é casado com uma irmã de Amorim.
O caso provocou escândalo, pelo comportamento de Geomárcio e pela revelação dos laços familiares entre Gilberto, chefe do Ministério Público do Pará (MP-PA), e Amorim, na época, braço direito do então prefeito tucano, Zenaldo Coutinho. Mas, também, pela possibilidade de Gilberto ter usado de seus poderes, para atrapalhar o cumprimento de uma ordem judicial, comportamento talvez nunca visto em um PGJ. Agora, o maior temor é que, apesar da gravidade dos fatos, tudo acabe em pizza. A Corregedoria da Polícia Militar do Pará concluiu que há indícios de crime e transgressão disciplinar na conduta de Geomárcio. Mas o seu indiciamento não foi nem por abuso de autoridade nem por obstrução da Justiça, como se poderia imaginar. O indiciamento foi com base no artigo 324 do Código Penal Militar, que trata da “inobservância de lei, regulamento ou instrução” e que dá, no máximo, detenção de 6 meses, ou suspensão do posto por 1 ano.
Salta aos olhos, é claro, o corporativismo de alguns membros da PM, que diante da inevitabilidade de punir um de seus integrantes, foi buscar um enquadramento light&diet, em relação aos fatos. Mas esse não é o maior problema. O xis da questão é mesmo o Ministério Público, o chamado “titular da ação penal”, porque é ele quem decide se alguém será ou não processado. “Na verdade, é o MP quem dá o enquadramento final e decide se denuncia ou não alguém à Justiça. Ele pode, também, pedir novas diligências, pedir o arquivamento do caso, ou até enviá-lo à Justiça comum”, explica um advogado criminalista, que pediu para não se identificar. E é aqui que a “porca torce o rabo”. A Justiça Militar Estadual só possui duas promotorias. E adivinhem quem é o titular de uma delas? Ele mesmo: o “doutor” Gilberto Valente Martins. Hoje, ela é exercida, interinamente, por uma promotora indicada por ele. Mas nada impede que Gilberto retorne a essa promotoria, assim que deixar de ser PGJ, no próximo abril.
Não é difícil que o caso de Geomárcio caia no colo de Gilberto ou da atual promotora. Há a probabilidade de 50 por cento de que isso ocorra, já que são apenas duas promotorias militares. Mas se isso se concretizar, o escândalo pode acabar virando um incêndio. Até porque, se houve crime de Geomárcio, então o que dizer daquele que seria, em tese, o mandante, ou seja, o próprio Gilberto? Ele não sofrerá nem mesmo uma investigação? “O MP Militar pode, sim, encaminhar cópia dessa denúncia ao próximo PGJ, para que ele apure a possível responsabilidade do doutor Gilberto Martins”, explica o advogado criminalista, que também critica o “enquadramento corporativista” do suposto crime de Geomárcio, pela Corregedoria da PM. “Artigo 324? Isso não vai dar em nada”, prevê.
O advogado salienta que tudo dependerá, é claro, daquilo que está no inquérito e de outros fatos que o MP vier a apurar. Mas, observa: “Pelo que eu vi em vídeos e postagens na internet, é possível, sim, que tenha havido abuso de autoridade, obstrução da Justiça, prevaricação, ou até constrangimento ilegal por parte desse tenente-coronel”. Segundo ele, é preciso ouvir a delegada que comandava a operação policial de 9 de outubro (e que fez até um Boletim de Ocorrência relatando o comportamento de Geomárcio), para saber se ela não se sentiu intimidada. Aliás, na opinião dele, certo mesmo era ter dado voz de prisão ao tenente-coronel, naquele dia. “Se fosse com a Polícia Federal, ele (Geomárcio) jamais teria feito o que fez. Mas acho que a delegada acabou se sentindo intimidada, até porque ele citou o nome do doutor Gilberto”, comenta. A seu ver, nem mesmo a explicação posterior de Gilberto, de que Geomárcio estava ali como segurança de sua esposa, justifica o comportamento do militar: “Se ele estava apenas fazendo a segurança da esposa do doutor Gilberto, não deveria ter filmado os policiais ou entrado no apartamento. E se ele desaparecesse com alguma prova?”.
Laços
O caso provocou escândalo, pelo comportamento de Geomárcio e pela revelação dos laços familiares entre Gilberto, chefe do Ministério Público do Pará (MP-PA), e Amorim, na época, braço direito do então prefeito tucano, Zenaldo Coutinho. Mas, também, pela possibilidade de Gilberto ter usado de seus poderes, para atrapalhar o cumprimento de uma ordem judicial.
Também foi aberto um processo administrativo
A decisão da Corregedoria da PM foi publicada em um boletim reservado, no último 11 de fevereiro. Segundo o documento, o corregedor geral, coronel Albernando Monteiro da Silva, concordou “em parte” com a conclusão do Inquérito Policial Militar (IPM), aberto em 13 de outubro do ano passado, com base em um relatório da Divisão de Inteligência da PM. No relatório, consta que postagens e vídeos nas redes sociais mostravam, em tese, uma conduta “irregular” de Geomárcio, “uma vez que não era parte da ação ali deflagrada por integrantes da Polícia Civil”. Ele teria até interferido diretamente na operação, “inclusive questionando a atuação da equipe envolvida”.
Com base nos documentos e depoimentos juntados ao IPM (um calhamaço de 133 páginas), o corregedor concluiu que “há indícios de crime e transgressão da disciplina policial militar a ser atribuído ao tenente-coronel Afonso Geomárcio Alves dos Santos, o qual está à disposição do Gabinete Militar do Ministério Público do Pará”. Assim, abriu um Processo Administrativo Disciplinar (PAD) contra ele e enviou os autos, “para as providências de lei”, à Justiça Militar Estadual, onde eles chegaram na última quinta-feira. No entanto, o boletim não esclarece qual o crime e a transgressão disciplinar do tenente-coronel. Mas tais informações foram fornecidas pela Assessoria de Comunicação da PM.
O artigo 324 do Código Penal Militar classifica como crime “deixar, no exercício de função, de observar lei, regulamento ou instrução, dando causa direta à prática de ato prejudicial à administração militar”. A pena é de detenção de até 6 meses, “se o fato foi praticado por tolerância”; e de suspensão, de 3 meses a 1 ano, do posto, graduação, cargo ou função, “se por negligência”. É muito mais leve do que obstrução da Justiça, na qual a pena pode chegar a até 8 anos de detenção; ou do abuso de autoridade, que, além de cadeia ou penas restritivas de liberdade, pode levar à perda de cargo público e à inabilitação para ele por até 5 anos.
Já a transgressão disciplinar é a prevista no artigo 37 do Código de Ética da PM: “todas as ações ou omissões contrárias à disciplina policial-militar, especificadas a seguir”. Só que o artigo possui 160 incisos, além de um parágrafo “guarda-chuva”, mas a Assessoria não informou em qual situação se enquadra o tenente-coronel. As possíveis punições estão previstas no artigo 39 e vão da simples repreensão à demissão, passando por prisão disciplinar, por exemplo.
Operação Quimera
A Operação Quimera, realizada pela Polícia Civil em 9 de outubro do ano passado, cumpriu mandados de busca e apreensão, expedidos pelo juiz Heyder Tavares da Silva Ferreira. O objetivo era coletar mais provas, para robustecer os graves indícios já então detectados, acerca de um leque de crimes que teriam sido cometidos pela Secretaria Municipal de Saúde de Belém (Sesma), na compra de ventiladores pulmonares e de outros produtos médicos, junto à GM Serviços Comércio e Representação. Muitos deles sem licitação e com sinais de superfaturamento.
Um dos principais alvos da operação foi o então secretário municipal de Saúde, Sérgio de Amorim, responsável por essas aquisições. Os policiais estiveram em 3 endereços ligados a Amorim, um deles um apartamento na avenida Nazaré, em Belém, onde residia a mãe dele, e que acabou sendo palco das ações de Geomárcio. Segundo o boletim de ocorrência 00608/2020.100037-9, registrado pela delegada que comandou a busca e apreensão naquele endereço, o tenente-coronel já chegou “com um aparelho celular em mãos, filmando os policiais e afirmando que iria acompanhar as buscas, assim como filmar o procedimento policial, o que de fato fez”.
A Quimera levou à exoneração de Amorim, quatro dias depois. Em dezembro, ele e mais dois empresários foram indiciados, pela Polícia Civil, por fraude licitatória e associação criminosa. A polícia concluiu que os ventiladores pulmonares foram comprados sem nem mesmo dispensa licitatória, entre outras irregularidades. Amorim também foi indiciado por modificar sistema de informações e ordenar despesa não autorizada. Tudo somado, pode pegar até 18 anos de reclusão. Mas, ainda em dezembro, a polícia enveredava por outras linhas investigativas, a partir do material que coletou durante a Quimera, o que pode complicar ainda mais a situação do cunhado do chefe do MPE, Gilberto Martins.
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