"Nefasta, horrenda e anacrônica". Assim foi definida, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), de autoria do PDT, a medieval tese de “legítima defesa da honra”, que durante séculos liberou aos homens o direito de matar mulheres. Ao decidir por unanimidade, no dia 13 de março de 2021, que a tese é inconstitucional e não pode ser mais levada aos tribunais, o Supremo Tribunal Federal (STF) avançou na luta secular contra a impunidade, responsável por estatísticas que destroem famílias e envergonham o Brasil. O feminicídio é “nefasto, horrendo e anacrônico” por ser um crime sem defesa moral, alimentado pelo desejo de vingança, pelo sentimento de posse, pelo total desprezo à figura da mulher.
Combater o feminicídio é uma guerra sem trégua. É luta diária, constante, que as mulheres do município de São Sebastião da Boa Vista, no norte do Arquipélago do Marajó, Estado do Pará, decidiram encampar ao criarem o “Movimento Mulher - Elas por Elas”, adotando como representação visual o símbolo universal de luta feminina contra a desigualdade de gênero: mãos cerradas em posição de embate.
Sem nenhuma ligação político-partidária, o movimento repudia qualquer tipo de discriminação, seja de raça, gênero ou religiosa, se aliando à luta contra a violência doméstica, que invariavelmente culmina com o assassinato de mulheres.
Identidade visual - Criado em 2019, o movimento foi se fortalecendo até chegar, em fevereiro de 2021, à marca “Elas por Elas”. Por sugestão da pedagoga Paula Rodrigues, Cleia Pereira elaborou a primeira identidade visual do coletivo das marajoaras. O desenho, representando a união das mulheres, destacava uma flor branca, símbolo da força, da união e da delicadeza da mulher, que precisa ocupar, sem temor, seu espaço na sociedade.
No dia 4 de março de 2021, por solicitação de representantes do grupo, a marca ganhou o nome do município, e a flor cedeu o espaço para o desenho de quatro mãos fechadas, representando uma luta que deve ser de toda a sociedade.
Responsável pelas alterações, Shirley Corrêa, acadêmica de Ciências Contábeis, conta que a inspiração nasceu de um trabalho acadêmico, escrito no ano passado por ela e um grupo de amigas, denominado “Contabilidade Feita por Elas”.
“Usamos várias imagens, inclusive essa. O trabalho era sobre uma pesquisa que aponta que 66% das mulheres exercem a profissão contábil no Brasil”. Para a autora, a participação feminina no setor da Contabilidade tem crescido, e essas mulheres apresentam diferencial no exercício da profissão. “Somos mulheres, e a igualdade sempre será a nossa bandeira”, completa.
Das palavras às ações, as mulheres de São Sebastião da Boa Vista foram às ruas em dezembro de 2020 ecoar suas vozes contra o crescimento exponencial dos casos de feminicídio durante a pandemia de Covid-19. “Parem de nos matar!”, suplicaram as participantes, obedecendo às normas de prevenção à Covid-19, como uso de máscaras, álcool em gel 70% e distanciamento.
O objetivo foi começar a conscientizar a população sobre os danos físicos, psicológicos e sociais causados pelo feminicídio e por qualquer outro tipo de violência contra a mulher.
Portando cartazes e as mãos pintadas com um “X” vermelho, as participantes abordaram várias questões relativas ao tema, citando casos recentes de feminicídio no Marajó e em outras regiões do Brasil, como o assassinato de Leila Arruda, candidata à prefeita de Curralinho (município próximo a São Sebastião), pelo ex-marido; o da pescadora Michele Gomes, 27 anos, boavistense morta em 2020 pelo ex-companheiro, e o da vereadora carioca Marielle Franco, executada a tiros em 2018, na capital do Rio de Janeiro – crime que permanece sem punição e identificação dos mandantes.
“A marca nas mãos simboliza um basta! O ‘X’ na cor vermelha é a marca que fica na vida da mulher violentada”, ressalta Paula Rodrigues, que reforça o apartidarismo do movimento. O símbolo do coletivo também esteve presente nos cartazes alusivos ao Dia Internacional da Mulher – 8 de Março. Banners foram distribuídos em locais públicos, fortalecendo a campanha virtual “Separadas mas Conectadas”, voltada à mobilização e ao alerta à sociedade.
Protagonismo
Há dois anos morando em São Sebastião da Boa Vista - município com uma população estimada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) em 2020 acima de 26 mil habitantes -, com atuação nas zonas urbana e rural como coordenadora da Pastoral da Criança pela Paróquia de São Sebastião da Boa Vista, Nilzete da Conceição conta que tem vivenciado os extremos com as famílias atendidas: momentos de alegria, com as mães e crianças, mas também de tristeza e dor, causadas principalmente por maridos e companheiros.
“Vendo tudo isso, participamos de um encontro com a Sejudh (Secretaria de Estado de Justiça e Direitos Humanos) e nos organizamos de maneira a formar esse grupo de apoio. Nos sentimos impulsionadas e fortalecidas para ter aqui na cidade um órgão, um instrumento de ajuda para evitar mortes prematuras destas mulheres que sofrem tanto, mães que lutam no dia a dia para ver suas famílias bem. Vemos com muito pesar muitas delas vivendo torturas psicológicas e físicas de seus companheiros. E algumas acabam perdendo a vida”, relata a religiosa.
Segundo ela, o movimento “Elas por Elas” pretende ser esse elo entre as mulheres e os órgãos das esferas públicas que possam atendê-las em suas demandas pela preservação da vida. Nilzete da Conceição afirma que pretende somar a este trabalho, que reúne mulheres que há anos estão nessa luta no município.
Ela reitera que o Movimento Mulher de São Sebastião da Boa Vista não tem partido político em sua formação e organização: “É apartidário, e também não tem em sua formação apenas mulheres católicas. Estamos falando de companheiras que sofrem. Queremos ajudar umas às outras”. O grupo, diz ela, é de socorro e escuta para esse grito, para que as mulheres não sofram sozinhas, sem uma palavra e um gesto de solidariedade.
“Mais que isso, as ações vão libertar essa mulher da situação em que vive. Quando juntamos nossa voz, somos fortes. Quando estamos juntas, ninguém nos para. Viemos não para tentar ganhar a luta, mas para ganhar!”, garante Nilzete.
Origem
A formação do movimento no município surgiu durante o evento “Mulheres Marajoaras”, que promoveu, em 2019, palestras e ações sobre cidadania na cidade, com a participação de profissionais da Sejudh e do Sebrae-PA (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), uma iniciativa do governo do Estado com apoio da Prefeitura de São Sebastião da Boa Vista e da iniciativa privada.
A partir desse evento, um grupo de mulheres começou a vislumbrar formas de mudar o cenário de violência no município, através de várias ações, como o mapeamento de denúncias e casos de violência contra a mulher, da libertação da dependência financeira e a necessidade de apoio institucional para essas demandas.
Conselho
Por meio de uma comissão formada após o encontro, composta por seis mulheres, a criação do Conselho da Mulher Boavistense deve ser concretizada em breve. “Gostaria de parabenizar o Movimento Elas por Elas pela brilhante iniciativa de estar dando continuidade a um movimento que iniciou no Projeto Mulheres Marajoaras, implementado pela Coordenadoria de Integração de Políticas para Mulheres da Sejudh”, ressalta Márcia Jorge, titular da Coordenadoria de Integração de Política para Mulheres da Secretaria e presidente do Conselho Estadual da Mulher, que mês passado se reuniu com um grupo de mulheres na cidade.
Márcia Jorge observa que, hoje, o movimento debate pautas relevantes para o município, destacando as propostas de criação do Conselho Municipal de Defesa dos Direitos da Mulher e da Coordenadoria de Políticas Públicas para as Mulheres. Segundo ela, são “dois instrumentos legítimos para que a gente possa institucionalizar a política pública no município de São Sebastião da Boa Vista, visto que as pautas que as mulheres hoje têm enfrentado apenas com o Movimento (Elas por Elas), podem ter a articulação com a rede municipal e com a rede estadual, para que desta forma o atendimento às mulheres, principalmente em situação de violência doméstica, seja formalizado no fluxo de rede e por meio de protocolo de atenção também pelos serviços".
Estatísticas
A violência contra a mulher ainda é uma chaga social no Pará, atestam os dados oficiais. O Pará surge nas estatísticas como o segundo estado brasileiro com mais assassinatos de mulheres durante a pandemia, em 2020. A terceira e última etapa do monitoramento ‘Um vírus e duas guerras’ foi realizada por um consórcio de veículos de mídia independente, e mostra a realidade em 24 estados e no Distrito Federal. Na Região Norte, o Pará registra o maior número de casos de feminicídio.
De acordo com dados da Secretaria de Estado de Segurança Pública e Defesa Social (Segup), no ano passado ocorreram 65 feminicídios, contra 45 em 2019, o que representa um aumento de 44%. O Mato Grosso teve o maior aumento, em número absoluto, com 62 casos em 2020, contra 39 no ano anterior. Na comparação com os meses da pandemia, de março a dezembro, o monitoramento aponta que o Pará registrou 49 mortes (em 2019 foram 42), uma alta de 17%, com isso caindo para segundo lugar, sendo superado por Pernambuco, no nordeste brasileiro, com 61 feminicídios.
Agressões em Belém - O Ministério Público do Pará (MP-PA), por meio da Promotoria de Justiça da Mulher, realizou em 2020 quase 5 mil atendimentos. A Promotoria de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da capital, do MP, divulgou em março um relatório sobre os atendimentos realizados a mulheres vítimas de violência em 2020 – um total de 4.712.
Os dados mostram que vários fatores, incluindo baixas renda e escolaridade e filhos no relacionamento, são comuns nesse cenário de violência. Cerca de 40% das mulheres afirmaram não ter nenhuma renda e 51% têm pelo menos um filho com o companheiro violento. Além disso, um terço das vítimas e dos agressores não terminou o ensino fundamental.
Em mais da metade dos atendimentos feitos pelo MP, vítimas contaram episódios de violência frequentes no relacionamento atual. Já entre os agressores, 51% eram ex-companheiros das mulheres agredidas, e 37% estavam em algum relacionamento com as vítimas. Em Belém, os bairros com os maiores índices de casos de violência contra a mulher são Jurunas, Guamá e Pedreira.
Segundo dados da Frente Feminista do Pará, em matéria publicada no Portal Catarinas, “89,9% das mulheres mortas em 2019 foram assassinadas por seus companheiros ou ex-companheiros; 66,6% das mulheres mortas são negras, e, mesmo sendo um dado subnotificado, é inaceitável que haja, segundo registros oficiais, uma agressão física a cada 2 minutos”.
Trauma para toda a vida
Tristeza, abalo psicológico e quatro crianças órfãs estão no rastro das consequências do assassinato da boavistense Michele Gomes e Gomes, no dia 8 de julho de 2020. Quase um ano após a tragédia, o pai da vítima, morta por seu ex-companheiro, teve seu quadro de depressão agravado, enquanto a irmã e a mãe de Michele se dividem nos cuidados com as quatro crianças que ficaram órfãs de mãe: duas meninas e dois meninos, que têm 3, 5, 8 e 11 anos. A família sobrevive com o benefício do “Bolsa Família” e da renda oriunda de um pequeno comércio mantido em frente à casa onde mora.
A situação dessa família – uma entre milhares espalhadas pelo País – é um dos retratos mais cruéis das sequelas econômicas, sociais, psicológicas e afetivas deixadas pelo feminicídio, um crime covarde e insano, que vai muito vai além da perda de uma vida e da prisão do culpado, quando ocorre, para que responda pelos seus atos perante a Justiça.
A ausência materna marca para sempre a trajetória dos filhos, que são privados da convivência com a mãe e obrigados a conviver com a imagem de um pai assassino. A maioria não tem sequer o apoio psicológico para amenizar um trauma dessa dimensão. Para mães, pais e outros parentes de uma mulher assassinada, a brutalidade da perda motiva revolta e constante sofrimento.
A família de Michele vem aprendendo a conviver com a dor se apoiando mutuamente, já que as crianças e o restante da família não receberam ajuda especializada ou financeira até o momento, contando apenas com o suporte de amigos e demais familiares. “Meu pai já sofria de depressão antes de acontecer, e a gente vê que agravou. Nem sair de casa ele consegue”, lamenta a estudante Júlia Gomes, irmã de Michele, que recorda as agressões físicas e as ameaças feitas à irmã antes do assassinato. A família, conta Júlia, vivia apreensiva, por isso fez várias denúncias aos órgãos competentes do município.
As ameaças estendiam-se aos familiares da vítima e aos próprios filhos do casal, que já havia se separado quando o crime ocorreu. A medida protetiva, acrescenta Júlia, não conseguiu evitar a tragédia anunciada: “Chegou no dia que ela foi assassinada. Ela não chegou a ver. A medida chegou de manhã e ela foi assassinada à noite”.
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