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REPORTAGEM ESPECIAL

Escalpelamento no Pará: infância roubada e corpos mutilados

É nas águas de rios, furos e baías que está um dos maiores perigos vividos pela população ribeirinha na Amazônia: o escalpelamento, cujas marcas sociais são silenciadas, reforçando o preconceito e a exclusão da sociedade.

Imagem ilustrativa da notícia Escalpelamento no Pará: infância roubada e corpos mutilados camera Reportagem especial traz um apanhado sobre um dos grandes dramas vividos pela população ribeirinha amazônica: o escalpelamento, que rouba a infância e mutila corpos. | Emerson Coe/DOL

Trauma. Incertezas. Dor física e emocional. Tratamento contínuo, com sequelas e marcas para o resto da vida, que vão além do acidente. Notícias de novas vítimas de escalpelamento representam para Denise, Ane, Regina, Larissa, Lana, Raíza, Ana Alice e tantas outras, um modo de reviver dias dolorosos e inesquecíveis. O desejo delas é um só: medidas de acessibilidade e de conscientização para evitar novos casos deste tipo de acidente no Pará.

Este ano, até o dia 1º de setembro, segundo a Marinha, já foram registrados 9 casos de escalpelamento no Pará. A vítima mais recente, uma criança de apenas 10 anos, que morreu após ter os cabelos presos ao eixo do motor deuma embarcação do tipo rabeta, no rio Pracuúba, em Muaná, no arquipélago do Marajó. Dez anos. Uma criança cheia de vida e com muitos sonhos pela frente.

Essa também era a idade de Larissa Lopes Paixão, hoje com 23 anos, quando o acidente aconteceu, logo após o Natal de 2008, em São Sebastião da Boa Vista, também no Marajó. O dia que era para ser de diversão em família e na companhia de outros primos, terminou em tragédia.

Depois do acidente Larissa passou seis meses internada na Fundação Santa Casa, referência materno-infantil de média e alta complexidade, que atua com Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamentos (Paives), com atendimento no hospital e amparo no Espaço Acolher, da Instituição, passando por mais de 15 cirurgias.

Um tratamento contínuo. Ane Almeida, hoje com 35 anos, sabe bem o que é isso. Ela já passou por 36 cirurgias depois do escalpelamento, onde perdeu toda parte da proteção do couro cabeludo, fratura facial e fratura em um dos braços. Na época do acidente, ela tinha 15 anos e morava no interior de Moju, no nordeste paraense.

Ane só teve consciência da gravidade da situação e do que havia acontecido com ela, quatro meses após o acidente. Desde o acidente muita coisa mudou. Ane precisou reformular toda a sua vida e sua rotina, para dar continuidade ao seu tratamento. Entre as mudanças, incluiu sua ida para o município de Abaetetuba, para ficar mais perto da capital paraense.

Mais que dar visibilidade à realidade das vítimas, mas intensificar o trabalho de conscientização pública para a prevenção novos acidentes de motor com escalpelamento. Esse é um dos desejos de Lana Paula, de 30 ano, que atualmente mora em Cametá, na região do Baixo Tocantins. Na época do acidente, ela tinha apenas oito anos.

ENTRE MOTORES E TRAGÉDIAS

O escalpelamento é o acidente provocado pelo eixo do motor de pequenas embarcações. Por falta de proteção no eixo, as vítimas - a maioria mulheres -, ao se aproximarem do motor, têm seus cabelos presos aos eixos e partes móveis dos motores, causando o arranchamento parcial ou total do couro cabeludo.

Em muitos casos, as vítimas perdem orelhas, sobrancelhas e parte da pele do rosto e do pescoço, levando a deformações graves e até morte. A maior parte das vítimas é moradora de comunidades ribeirinhas, onde o barco é o principal meio de transporte.

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Denise do Carmo Pereira, hoje com 48 anos, já passou por 11 cirurgias. Na época do acidente, ela tinha 19 anos e estava passando umas férias com a família em Cametá, no nordeste paraense.

E foi através do trabalho realizado pela Organização dos Ribeirinhos Vítimas de Acidente de Moto (ORVAM), ONG de Belém, que tem como objetivo acolher pessoas que sofreram acidentes de motor e perderam o escalpo, além de trabalhar na ajuda da autoestima e no combate ao preconceito contra as vítimas de escalpelamento, que Denise conseguiu se reerguer.

Além do atendimento e acompanhamento social e psicológico, a Orvam atua no resgate a autoestima das vítimas de escalpelamento, através da arrecadação de cabelos para a produção de perucas e cursos de capacitação para as integrantes.

A confecção das perucas é feita pela peruqueira da Orvam, Regina Formigosa, de 48 anos, que também foi vítima do acidente de motor. Na época do acidente, ela tinha 22 anos.

“UMA INTEGRANTE QUE TRAZ OUTRA”

A Orvam, entidade não governamental foi criada em 2011 e se mantém apenas por doações feitas por parceiros que ajudam nas despesas. A instituição atende mulheres do Pará inteiro, com o objetivo de ajudar no processo de ressocialização das mulheres pós-trauma, por meio da autoestima, empoderamento e inserção no mercado de trabalho.

A assistente social da Orvam, Alessandra Almeida, reforça a importância das doações de cabelos. Os cabelos devem estar cortados em mechas, com ligas, separadas e presas numa ponta. A doação das perucas às vítimas de escalpelamento é feita, segundo a assistente social, a cada seis mês a um ano.

Atualmente, a ONG tem 162 vítimas cadastradas, a maioria delas, com escalpelamento total. Para se ter uma ideia, para fazer uma peruca é necessário de quatro a cinco doadores.

TRANSFORMANDO VIDAS

Ajudar no resgate da autoestima das vítimas de escalpelamento, através da micropigmentação paramédica. É assim que a micropigmentadora Rosana Abreu vem “Transformando Vidas”.

É através do seu trabalho com os procedimentos, que ela consegue tirar uma parte para o projeto voluntário que - tem apenas um ano - visa reconstruir esteticamente as sobrancelhas após o acidente.

Vidas transformadas assim, como a da Raiza Oliveira, de 19 anos. Na época do acidente, em Curralinho, no Marajó, era uma criança, de apenas 9 anos. Ela teve perda parcial do couro cabeludo e perda da simetria das sobrancelhas por conta das cirurgias que foram necessárias.

"O meu acidente ocorreu na embarcação do meu pai mesmo. Ainda estava saindo de casa e indo para a igreja, para um evento. Antes de chegar lá, eu passei para a parte de trás do barco, que estava um pouco cheio e eu passei para trás para não ficar apertado. Eu tinha os cabelos bastante longos e estava com anéis no dedo. Quando estava próximo da igreja, percebi que tinha caído alguns anéis do meu dedo, eu resolvi pegar eles. Quando eu abaixei a minha cabeça, foi que meu cabelo enrolou e tirou", relembra Raíza Oliveira.

Com o escalpelamento parcial e a perda da simetria de suas sobrancelhas, um dos maiores desejos de Raíza, desde o acidente, era além de melhorar a estética, recuperar e melhorar a autoestima.

"Eu gosto muito de maquiagem, de todas essas coisas. Ver que dar para ficar parecida, ajustar para ficar igual, a autoestima com certeza fica mais em alta", garante a jovem.

SEQUELAS PARA A VIDA TODA

Uma dor registrada em dados. Em 2019, segundo a Orvam, foram 12 casos de escalpelamento. Este ano, até o final do mês de agosto, já são nove casos, ou seja, quase uma vítima por mês.

Houve ainda este ano, segundo a assistente social do Espaço Acolher, dois casos de escalpelamento em crianças: um por motor elétrico (uma menina que teve escalpelamento total e está sendo acompanhada pela Santa Casa) e outro por mordida de cão (um menino). E uma morte no município de Breves, no Marajó, cuja criança vítima de escalpelamento e fratura grave no crânio.

ESPAÇO ACOLHER

Acolhimento que faz toda diferença e para que as vítimas de escalpelamento entendem que apesar das dificuldades, é possível continuar. Mantido pelo Governo do Pará, por meio da Fundação Santa Casa de Misericórdia (unida de referência para os caos), o Espaço Acolher foi criado em 2006, para garantir o atendimento psicossocial às vítimas que possam meses na capital paraense enquanto aguardam cirurgias reparadoras ou outros procedimentos para melhorar o estado clínico e psicológico. A casa de acolhimento também recebe acompanhantes das vítimas, quando necessário e abriga pessoas de todos os projetos da Santa Casa.

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Maria Luzia de Matos, assistente social e coordenadora do Espaço Acolher, ressalta que o Pará inteiro possui mais de 500 vítimas de escalpelamento. No espaço, já foram atendidas mais de 210 pessoas.

PREVENÇÃO

Segundo a coordenadora do Espaço Acolher foi criada a Comissão Estadual de Enfrentamento aos Acidentes com Escalpelamento (CEEAE), composta por diversas instituições, incluindo a Marinha do brasil, com o objetivo de realizar ações educativas e intensificar a conscientização pública para a prevenção aos acidentes de motor com escalpelamento.

Zerar o número de escalpelamentos. Esse é o principal desejo da Ana Alice Maia Gomes, de 23 anos. Na época do acidente, ela tinha apenas 12 anos e teve a perda total do couro cabeludo. Até hoje, passou por 16 cirurgias.

Foi por meio do acompanhamento pedagógico, do acolhimento e dos estudos, que Analice conseguiu forças para seguir em frente após o acidente. Hoje, ela é universitária e está cursando Serviço Social.

ONDE BUSCAR AJUDA?

Espaço Acolher: faz parte do programa de atenção integral às vítimas de escalpelamento (PAIVES) na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará e atende as vítimas depois que recebem alta do hospital e que precisam continuar o tratamento na capital, já que a grande maioria dos acidentes acontece no interior do Estado.

ORVAM: instituição sem fins lucrativos, com a prestação de serviços na área da assistência social às vitimas de escalpelamento, pós-acidente. O objetivo da instituição é promover a autoestima, a inserção no mercado de trabalho, além de oferecer cuidados psicológicos. Para isso, são produzidas perucas, desenvolvidas oficinas de capacitação profissional, atividades de reintegração social e consultas médicas.

Reportagem: Andressa Ferreira

Edição: Enderson Oliveira

Edição de vídeos: Emerson Coe e Gabriel Caldas

Coordenação multimídia: Haynna Hálex

Coordenação Sênior: Ronald Sales

Coordenação Executiva: Mauro Neto

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