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HISTÓRIA

Os negros paraenses que lutaram contra a escravidão

Confira as trajetórias de Agostinho dos Reis e de João da Cruz, homens negros que tiveram uma atuação importante na luta abolicionista no Estado do Pará.

Imagem ilustrativa da notícia Os negros paraenses que lutaram contra a escravidão camera Agostinho dos Reis | Divulgação

As experiências da liberdade no século XIX no Estado do Pará guardam a atuação de personalidades históricas peculiares, mas que nem sempre estão no foco da historiografia tradicional. Homem negro liberto que viveu sua vida entre as cidades de Belém e do Rio de Janeiro, o engenheiro e professor paraense José Agostinho dos Reis (1854-1929) é uma dessas figuras que despertam interesse e intrigam pela atuação incomum para uma pessoa negra liberta no Brasil do final do século XIX e início do século XX.

Não é à toa que José Agostinho dos Reis acabou não recebendo, ao longo dos anos, o devido destaque nos relatos sobre a história do Brasil. A historiadora, professora da Universidade de Brasília (UNB) e integrante da Rede de HistoriadorXs NegrXs, Ana Flávia Magalhães Pinto pesquisa a trajetória de Agostinho dos Reis, assim como de outros abolicionistas negros, e considera que o fato de a maioria da população não lembrar de uma figura como o Agostinho tem a ver com o fato de sujeitos como ele não se encaixarem nos lugares pré-estabelecidos pelas políticas de memória. “São indivíduos negros que não reafirmam essa imagem congelada da pessoa negra escravizada”.

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A professora aponta que há um esforço entre historiadores e historiadoras para destinar um olhar mais atento para essa documentação que por muito tempo serviu para reforçar a ideia de uma não agência das pessoas negras, seja na escravidão ou na liberdade, e para, inclusive, explicitar o quanto que os esforços de pessoas negras em defesa da liberdade produziram trajetórias como as do Agostinho dos Reis e do João da Cruz, outro homem negro que teve uma atuação importante na luta abolicionista no Estado do Pará.

“O José Agostinho dos Reis é uma figura emblemática, com uma história que tem vários elementos que justificam a gente chamar a atenção sobre a trajetória dele, apesar de ele não ter sido a única experiência”, aponta. “Ele é um sujeito que não cabe em nenhuma das caixinhas que a gente estabelece para visualizar a trajetória de uma pessoa negra nesse período da segunda metade do século XIX e início do século XX”.

Nascido em Belém em 1854, José Agostinho dos Reis construiu a sua vida entre a cidade natal e o Rio de Janeiro, onde veio a falecer em 1929. Segundo relatos do próprio Agostinho, ele nasceu escravizado e foi alforriado pela mãe. Ainda em Belém, tem a formação educacional inicial em espaços escolares católicos, relação que, inclusive, permitiu que ele conseguisse sair do Pará e ir para o Rio de Janeiro cursar engenharia. No Rio, se torna professor da Escola Politécnica e do Liceu de Artes e Ofícios, sem perder relações com Belém. “É muito interessante que esse seja um sujeito absolutamente bem relacionado, que viveu em duas cidades durante toda a vida. Ele era funcionário público no Rio de Janeiro, mas construiu uma vida política a partir do Pará, a partir de Belém”.

Ao longo de mais de 70 anos de vida, o paraense conseguiu feitos que não estariam autorizados legalmente a alguém que, como ele, nasceu escravizado. Ana Flávia explica que a Constituição do Império de 1824 estabelecia uma série de interdições à cidadania das pessoas negras. Pessoas africanas que, uma vez submetidas à escravidão, conseguissem a alforria não tinham reconhecida automaticamente a cidadania brasileira, se tornavam apátridas. No caso dos libertos, pessoas que nasceram escravizadas já no Brasil e que depois foram alforriadas, tinham um regime de cidadania parcial, poderiam ser eleitores de primeira instância, já que, no Império, as eleições aconteciam em duas fases, uma prévia e uma definitiva.

Os eleitores autorizados a participar desta segunda fase eram apenas as pessoas nascidas livres. Pessoas libertas não poderiam participar e, muito menos, se candidatar a cargos elegíveis. Apesar dessa proibição legal, José Agostinho dos Reis construiu uma trajetória em que conseguiu, ainda que não tenha sido eleito, burlar essa regra.

BELÉM

Segundo explica a historiadora, é importante considerar que Belém, assim como outras cidades do século XIX, era um espaço em que as condições originais das pessoas não eram esquecidas. Inclusive, era comum que ressaltassem o vínculo com a escravidão para constranger pessoas negras. Todo esse contexto deixa a atuação de Agostinho dos Reis ainda mais intrigante.

“O mais interessante, e que eu estou buscando entender, é como o José Agostinho consegue justamente viver uma experiência de, por um tempo, silenciar a sua condição de liberto nos espaços onde ele circulou. A revelação de que ele tinha nascido escravizado só aconteceu – pelo menos publicamente - em 1883, durante um discurso proferido por ele no Rio de Janeiro, quando ele já tinha se tornado não só bacharel, como doutor em engenharia, professor da Escola Politécnica. Mesmo depois disso, ele segue com a ousadia de, inclusive, se candidatar em vários pleitos eleitorais”.

Durante o período do Império, José Agostinho seguiu filiado ao Partido Conservador até que, já nos primeiros anos da República, se junta ao Partido Republicano Democrático, um partido constituído no Pará. “Esses são indícios que apontam que essa é uma figura que soube costurar muito bem suas relações porque ele não circulava apenas entre os figurões do Partido Conservador. Ele era alguém muito bem relacionado com abolicionistas vistos como mais radicais. Ele, inclusive, tinha um discurso bastante radical”, explica Ana Flávia.

“Ele atuava em muitas frentes. Em Belém, temos notícias de ele propondo obras de calçamento, de drenagem das águas e uma série de outras obras nesse campo da engenharia porque ele esteve articulado com essa política do Império e da República”.

Uma vez estabelecido como engenheiro, Agostinho entra para o Clube de Engenharia do Rio de Janeiro. Ao longo da vida, ele inclusive se torna presidente do Clube de Engenharia por algumas vezes e, já na República, quando Albert Einstein vem ao Brasil, Agostinho estava na direção do clube e recepcionou Einstein.

O paraense também foi um dos finalistas, por exemplo, do concurso para a escolha do Cristo Redentor, apresentando uma proposta que acabou não sendo a vencedora. Propôs, ainda, projetos de moradia popular e pouco antes de falecer, conseguiu a concessão para a construção de uma estrada de ferro que ligaria Cuiabá, no Mato Grosso, a Santarém, no Pará. “Essa obra não se concretizou porque ele morre, mas ele era alguém que estava articulado a esse nível”, considera a historiadora.

João da Cruz

Dentro dessa perspectiva, outra figura emblemática que atuou no Pará foi o abolicionista negro João da Cruz. Apesar de ter nascido no estado do Maranhão, João da Cruz constrói a sua atuação política e enquanto abolicionista no Pará. Diferente de Agostinho, o que as pesquisas demonstram é que João da Cruz era filho de uma mulher escravizada, mas que ele próprio já nascera livre.

Professor de História na Região Bragantina, o historiador Helder Lameira de Lima aponta que, ainda no Maranhão, João da Cruz passa a integrar a Guarda Nacional e é a partir dessa atuação que se muda para o Pará. “Ele, inclusive, consegue uma patente de Alferes e é nessa condição que ele vem para o Pará. Ele pede transferência da Guarda Nacional do Maranhão em 1874 e chega ao Pará em 1875”.

Além de Alferes da Guarda Nacional, no Pará ele também atua como advogado, se tornando o que se chamava de Solicitador, um advogado não diplomado. “Ele é um negro que vai defender outros negros no tribunal e é até atacado por isso. Ele defendia e conseguia libertar esses negros livres, pobres, que estavam em condições precárias e que acabavam cometendo alguns crimes”, explica o professor Helder. “Aqui no Pará ele também vai se tornar dono de jornal, o Correio do Norte”.

Também em Belém, João da Cruz passa a fazer parte de clubes abolicionistas, apesar de a maioria desses clubes, como o maior clube abolicionista no Pará, que é o chamado Felipe Patroni, não permitirem a entrada de ‘homens de cor’. “Ele era um homem que transitava nos dois mundos: ia ao Teatro da Paz, mas também estava no cortiço. Estava na Tabacaria, que era um local que a elite frequentava no século XIX, mas também no Ver-o-Peso. Ele é um homem negro que estava em locais onde, em tese, alguns inimigos brancos não gostavam dele”.

Morto em 1887, em Belém, vítima de um ataque cardíaco, João da Cruz não chega a presenciar a abolição, mas deixa na figura de um dos filhos um legado. “Ele deixa um filho que se forma médico na Bahia e major do Exército, então, o filho dele também vai quebrar um paradigma, que é pensar um negro doutor no início da República”, aponta o professor. “O João da Cruz não deixou, em nenhum momento, de exercer a sua cidadania e fala muito sobre essa relação de homens negros, livres, intelectuais que falam e exercem a sua cidadania, mas que foram invisibilizados ao longo da história”.

Várias formas de luta

Outro ponto de bastante interesse na trajetória de Agostinho é a participação de sua mãe, Leonarda Maria de Jesus Portugal. “Essa mulher é outra figura a ser lembrada com muita atenção porque ela, na década de 1870, tem um ato de muita ousadia: diante do falecimento de uma mulher que era proprietária de uma casa em Belém e da qual ela tinha a posse de uma hipoteca, Leonarda anuncia nos jornais para alertar que nenhum herdeiro ou qualquer outra pessoa tentasse fazer negócio com aquela casa porque aquela casa era da propriedade dela”, relata Ana Flávia.

“O que eu vou descobrir depois, conversando com o historiador Marcelo Lobo, é que esta casa onde ela, inclusive, vai estabelecer uma quitanda foi a casa onde ela foi escravizada junto com o Agostinho dos Reis. Isso ilumina a agência histórica de mulheres negras na escravidão e na liberdade e que a gente pouco fala”.

Membro do Grupo de Estudos e Pesquisas da Escravidão e Abolicionismo na Amazônia, o historiador Marcelo Lobo aponta que tal informação é relatada em uma carta escrita pelo próprio José Agostinho dos Reis. Na ocasião do 13 de maio de 1888 [data da sanção da Lei Áurea pela Princesa Isabel], o engenheiro escreve uma carta para João Alfredo, chefe do gabinete ministerial que fazia frente aos processos abolicionistas, e relata que teria a honra de pendurar um quadro de João Alfredo na casa onde ele e a mãe dele foram escravizados, e que passou a pertencer a ela.

“É claro que isso levanta muitas questões, afinal de contas, como é que sujeitos conseguiam sair de uma condição de submissão e domínio e galgar esses espaços dentro da sociedade paraense? E aí estão as várias formas de luta que podemos pensar, desde as brechas criadas pela legislação emancipacionista e, principalmente, a partir da Lei do Ventre Livre”.

Marcelo Lobo aponta que, no Pará, a Lei do Ventre Livre criou brechas que permitiram a quebra do poder senhorial sobre a alforria. “A Lei do Ventre Livre permitia brechas que possibilitavam o cativo poder comprar a alforria com o pecúlio doado por terceiros e, no Pará, a gente vai ter uma atuação significativa desses sujeitos escravizados, principalmente das mulheres, entrando nos tribunais para conseguir comprar alforrias, suas ou de seus filhos”, explica. “A gente tem uma atuação feminina para fora do abolicionismo dos jornais ou do espaço público mesmo”.

INFLUÊNCIA

A partir da história de Agostinho dos Reis, o historiador destaca a necessidade de se pensar também situações do cotidiano como estratégias de libertação de sujeitos escravizados. “A gente tem uma trajetória gigantesca de pessoas que experimentaram, de alguma forma, uma série de mecanismos de interdição e que atuaram nem que seja no cotidiano. Falamos no Agostinho dos Reis, mas existem outras figuras também emblemáticas para pensar essa influência na sociedade paraense”, aponta.

“Esses sujeitos negros, livres, libertos e mesmo na condição de escravizados, atuaram politicamente nos jornais, nas agremiações abolicionistas ou em associações de classe e também dentro do cotidiano em formas de resistência que vão para além da fuga. Tudo isso ajuda a gente a pensar que a construção das noções de cidadania teve uma influência gigantesca dessa população negra não só do Brasil, mas do Pará também”.

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