O carnaval de Belém já passou por muitas mudanças, desde local de desfile até o surgimento e o fim de escolas de samba. São histórias feitas de gente que se conhece de outros carnavais, e que tem sua vida inteira embalada pelo ritmo do pandeiro e cavaquinho. Creuza Gomes, tema do próximo desfile da escola Guerreiros do Samba e do Amor, da Pedreira, pode ser apontada como uma ilustre representante dessa “Velha Guarda” - como respeitosamente são reconhecidos aqueles que dedicaram décadas a colocar agremiações na avenida.
Ainda muito jovem, Creuza começou como cantora de rádio para em seguida se tornar uma das vozes da seresta na Rádio Clube do Pará, antiga PRC-5. “Depois eu casei e parei. Não deu certo, separei. E certa vez, trabalhando em uma residência, foram atrás de mim pra cantar com o maestro Rubens”, conta.
Já de volta à ativa, ela foi convidada a cantar pela primeira vez em uma escola de samba, o Rancho Não Posso Me Amofiná. “Eu era dos pássaros juninos, a Feiticeira do Pássaro Rouxinol. Por isso, o professor Laércio lembrou de mim, me convidou para o Rancho e, em 1974, eu saí pela escola com o Osvaldo Garcia cantando ‘Yaô, uma Homenagem ao Rei Nagô’. Daí não parei mais”, conta.
As próximas experiências foram na Universidade de Samba Boêmios da Campina, que ficava na rua Carlos Gomes, e no Bloco Xavante, do qual se tornou puxadora oficial nos carnavais de 1975 e 1976.
“O intérprete oficial era a grande estrela e só chegava em cima da hora. A gente tinha que entrar na avenida Presidente Vargas, onde os desfiles ocorriam, e nada dele chegar. Eu era o segundo microfone e perguntaram: ‘por que não coloca a Creuza pra puxar?’. O João Bosco Moisés [criador do bloco] perguntou: ‘minha filha, você se garante?’. Eu disse: ‘com certeza’. Ele pegou o microfone número 1, me passou e entrei cantando: ‘Brilhou uma estrela lá no céu…’. Foi a glória, um momento muito importante para mim puxar mais de 200 ritmistas!”, orgulha-se.
ROUXINOL
Nos anos seguintes, Creuza passou a ser intérprete oficial do Unidos de Vila Farah, e viveu um ping-pong entre o Quem São Eles e o Rancho, com uma pausa de seis anos dedicando-se à música sertaneja, outra paixão. Ao todo, são 21 troféus de melhor intérprete até hoje e o título de “Rouxinol da Amazônia”, dado de supetão pelo compositor Fernando Aflalo.
“Quando puxei um samba dele, fizemos uma gravação, um pout-pourri dos sambas da Vila Farah, e ele colocou na capa do EP ‘Creuza Gomes, o Rouxinol da Amazônia’. E pegou”, explica.
Para além do talento vocal, a simples presença de Creuza no Carnaval, em um meio majoritariamente masculino, de intérpretes e puxadores de samba-enredo, já fez história. “Participei de um show em dezembro representando nacionalmente as mulheres do samba, porque sou a segunda puxadora de samba no Brasil todo, e a primeira em Belém.Eu me sinto muito feliz de ser uma referência para as mulheres, por reconhecerem meu trabalho, minha luta, porque não é fácil. Todo mundo achava que eu era garota de programa por estar naquele meio, enfrentei uma barra, como hoje a gente ainda enfrenta. Hoje temos mais meninas cantando, e ainda assim é difícil nossa situação como mulheres no samba. Brinco que tenho um metro e noventa [de altura], sempre tive atitude de ‘quero fazer e vou’”, avisa.
Atualmente, Creuza é intérprete oficial da Embaixadores Azulinos e vai compor os times de intérpretes de outras cinco escolas para o próximo carnaval, incluindo Os Colibris, que acaba de subir para o Grupo Especial de Belém, e a Gaviões do Samba de Outeiro.
Ademar, o eterno Cidadão do Samba
“Eu sempre gostei de música e de carnaval, minha mãe vivia me colocando de castigo porque eu fugia pra ver os blocos e escolas passando”, conta Ademar Carneiro, com seus quase 40 de carnaval. “Eu comecei compondo, meu amigo pediu pra fazer música para um bloco que existia na Domingos Marreiros, o Unidos do Samba, ele levou a letra e no sábado passou em casa pedindo pra eu ir lá cantar porque gostaram, mas ninguém sabia cantar. Tinha tipo um concurso, eu cantava olhando pro chão, era tímido (risos). O samba foi escolhido, foi pra avenida. Depois foram em casa me buscar pra cantar em um evento de carnaval na Pedreira e a coisa foi mais atribulada, aí que deu mesmo a timidez, era na bateria, não tinha cavaquinho, quando me espantei já era cantor oficial”, recorda este outro membro da Velha Guarda do carnaval paraense.
Nesse mesmo carnaval, Ademar foi convidado a cantar nos diversos bailes da Assembleia Paraense. “Eu só sabia cinco músicas. Fui obrigado a aprender mais algumas. E fui ficando. Quando vi, fui convidado para o bloco dos Piratas da Batucada [que hoje é uma escola de samba]. Também nesse mesmo ano, fui cantor no Quem São Eles. Logo depois, surgiu o Arco-Íris e como o Quenzão estava passando por uma reforma na sede, não ia atuar, me pediram emprestado. O Arco-Íris pagou algo pra eles e não me devolveu (risos). Isso foi por volta de 1982, ganhamos três ou quatro carnavais”.
Ademar também cantou na Piratas da Batucada de Macapá, que lá, sim, já era escola de samba. “Fomos pentacampeões, e eu sempre conciliando com o bloco Piratas daqui, que tinha uma rivalidade fortíssima com o Unidos do Reduto, era quase um RExPA!”.
É sempre bom lembrar também como essa turma tão longeva no carnaval acaba deixando sua marca. Se hoje os intérpretes vão lá com toda potência ao lado da bateria, muito bem sincronizados, pode-se agradecer a Ademar.
“Eu estava na Embaixada de Samba do Império Pedreirense. Naquela época, os intérpretes cantavam em cima de um carro e a bateria ia lá embaixo. aquilo ali me incomodava, dava um eco entre os dois. Um dia, na Doca de Souza Franco, quando o carnaval era lá, eu disse ‘não vou subir’. E todo mundo me chamou de louco, ‘tu vai cantar embaixo?’. E nós passamos direitinho, minha voz junto da bateria, o Danilo [outro intérprete] lá em cima, enquanto eu escutava o cavaquinho, tudo. No outro ano, todo mundo desceu para ir do chão. Não era eu o louco?”, provoca.
LÁGRIMAS
Ademar também foi intérprete oficial da Grande Família, pela vontade do então puxador oficial Theo Pérola Negra. Hoje, um dos orgulhos de Ademar é ter carregado por alguns anos o título de Cidadão do Samba.
“Até vem lágrima. Foi uma das primeira emoções fortes, vencer esse concurso, eu nunca esperava, mas as pessoas que me encorajaram. Na época, eu era um rapazinho, e quando você está no momento só quer que dê tudo certo; depois, quando vai assistir o que você fez, é que cai a ficha, aí sente a importância do que a gente estava fazendo”, analisa. Mesmo com tanta bagagem, Ademar tem expectativas de que ainda tenha muitos sambas e desfiles em seu futuro e no de Belém.
“Hoje não sei nem em que classificação estamos, mas que é bonito é o nosso carnaval, e agora a gente torce para surgir novos puxadores. No meu caso, acho que ainda dá pra puxar por uns 10 anos (risos)”, brinca.
Bosco, o remista recordista de samba-enredo
Bosco Guimarães é daqueles que dispensam apresentações no carnaval de Belém. Começou como compositor de festivais, concursos, e sendo intérprete também de suas letras. O primeiro concurso de samba-enredo disputado por ele foi em 1982, em Manaus, pela Escola Acadêmicos do Rio Negro. “Concorri pela primeira vez, ganhei um ano superdisputado com o pessoal do Rio de Janeiro, eu supernovinho. Aí me empolguei”, diz.
Natural de Curuçá, Bosco passou a adolescência em Manaus, retornando ao Pará em 1983. “Sempre morei no Umarizal e por ali conheci o Quem São Eles. Passei a frequentar e conheci David Miguel [que hoje dá nome à Aldeia Cabana], Paes Loureiro, Alcyr Guimarães, doutor Alfredo Oliveira. Tive essa honra de concorrer com eles e já ter ganho dessa turma”, diz. O primeiro prêmio em Belém foi o do Quem São Eles, em 1989, que ajudou a escola a abocanhar o segundo lugar no Grupo Especial. Depois de ganhar por três anos seguintes do Quenzão, Bosco conta que “garoto novo” ficou amuado quando perdeu.
“Então fui disputar no Rancho, que é concorrente do Quem São Eles, e ganhei por nove anos seguidos. Eu vou morrer e ninguém vai quebrar esse recorde, porque hoje as regras mudaram, não deixam concorrer para ganhar mais de três”, justifica. Houve ano em que quatro escolas do Grupo Especial concorreram com sambas dele.
Como recordista nacional de samba enredo - foram mais de mil sambas sendo levados para a avenida - Bosco e seus parceiros habituais, como Neno Freitas e Fernando Gogó de Ouro, ainda foi um dos primeiros paraenses a ficar nas finais da Mangueira, no Rio de Janeiro, por três anos consecutivos. “Quando a Imperatriz homenageou o Pará, fomos vencedores da região Norte para disputar lá, ficamos em segundo. E sempre foi importante pra mim isso, levar o nome do Pará. É muito legal, porque pelo menos no carnaval as pessoas vão lembrar”, diz ele.
Mas se for pra puxar mesmo na memória, torcedor azulino que é, Bosco conta que o momento que mais o emocionou foi ver a torcida do Remo aplaudi-lo de pé no Baenão. “A Embaixada de Samba do Império Pedreirense já fazia 50 anos que não ganhava o carnaval e fiz o samba ‘O Pará Chama Verequete!’ [2003]. Eu caprichei.. E a Embaixada foi campeã, a avenida foi à loucura. Na outra semana, teve jogo do Remo. Quando subi na arquibancada, fui aplaudido de pé e não sabia por que, fiquei emocionado, cheguei a imaginar que era porque fiz o samba do Rancho pelos 100 anos do Remo, mas daí vi um pessoal com a bandeira da Embaixada e entendi. Eu nunca vou esquecer que, por causa do ‘Chama Verequete!’, eu, remista, fui aplaudido pela torcida”.
Para o próximo carnaval, Bosco já garante o samba da escola Coração Jurunense, que vai homenagear o bairro da Condor. “Eu sinto que às vezes querem se esquecer de mim. Dou moral pra juventude, mas não esqueça de quem começou. Como olhar o futuro se não tem alguém em quem se inspirar? Tenho certeza que o carnaval 2023 vai ser grande, o povo com saúde, e vou estar na avenida, como coordenador geral do carro som do Quem São Eles também. Quero encerrar minha carreira lá, onde comecei. Sei que o Rancho vai ficar magoado, mas tenho de terminar lá”, diz Bosco.
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