A assistente social Gisele Mendes, de 40 anos, mora no bairro da Sacramenta, mas uma de suas maiores paixões está um pouco mais adiante, na Vila da Barca, onde ela fundou o projeto Barca Literária (@barcaliteraria no Instagram), uma biblioteca itinerante e comunitária. O trabalho é completamente voluntário, embora conte com apoio da Fundação Cultural do Pará (FCP) em algumas ações, e começou há oito meses, em um momento de alta de casos da pandemia da Covid-19. A iniciativa é vinculada ao Projeto Comissão Solidária Vila da Barca, cujo lema é: divulgando a cultura e cidadania para construir sonhos nessa periferia.
“Umas moças do bairro da Marambaia que desenvolvem um projeto de biblioteca itinerante e comunitária chamado Bombomler foram lá entregar cestas básicas às famílias, e essas cestas vinham com livros dentro. Eu era catequista na área e passei a conhecer a realidade das crianças e adolescentes de lá naquele momento. Pedi a elas que me ensinassem a metodologia que desenvolviam, porque eu queria fazer mais do que a entrega de cestas”, relata.
De lá para cá, o projeto cresceu e está prestes a ter uma sede em uma das palafitas na área, alugada a muito custo e que ainda precisará passar por algumas melhorias - ela já negocia com outros moradores e voluntários uma ajuda para ajeitar o imóvel. Já são 18 lideranças adolescentes em treinamento para alfabetização comunitária e criativa com crianças menores, mães voluntárias no apoio e cada dia mais o trabalho é aceito pela comunidade e mesmo pelos membros do tráfico de drogas, uma realidade do local. Todas as sextas são realizadas atividades presenciais com empréstimo e devolução de livros, presença de convidados especiais falando sobre cidadania e direitos humanos, e uma vez por mês um evento maior reúne teatro e música em um mini-espetáculo.
Gisele é assistente social de um hospital particular e trabalha durante a madrugada, então desenvolve as ações da Barca Literária durante a tarde e à noite. Atualmente está cumprindo um turno extra de trabalho, porque se prepara para passar uns dias em Natal (RN) com representantes do Instituto Gerando Falcões (um ecossistema de desenvolvimento social que atua em rede para acelerar o poder de impacto de líderes de favelas de todo país), de São Paulo, porque estuda para conseguir incluir o Projeto Comissão Solidária Vila da Barca nesse movimento coletivo.
“Tudo o que fazemos é sempre escutando o coletivo e valorizando a democracia, mostrando que é pelo diálogo que se faz a mediação para escolhas positivas na vida”, detalha a fundadora da biblioteca. “Quando vi o projeto da Bombomler eu fiquei encantada, porque penso que educação é base de transformação. Não queria que parasse na entrega das cestas, mas transformar vidas”, afirma.
O espaço de leitura acaba se movimentando por toda a Vila da Barca, com alguém que empresta uma garagem, um grafiteiro na comunidade que ajuda a fazer uma arte em um muro para transformar aquele ponto em um local de encontro das crianças e adolescentes assistidos pelo projeto - que aos poucos também se tornam agentes desse trabalho.
“O resultado a gente sente no dia a dia, a amorosidade, a afetividade. A gente trabalha pela cultura da não-violência, e penso que temos resultados positivos. As crianças e os adolescentes estão organizando e tomando a frente. Quando o ser humano é oportunizado, faz a diferença na vida dele e na do coletivo”, garante a assistente social.
“Em meio a um projeto de morte, decidimos viver”
Foi só em 2018 que a professora de Língua Portuguesa, Lília Melo, foi reconhecida nacionalmente com o prêmio Professores do Brasil, e internacionalmente, com a indicação ao Global Teacher Prize, mas essa história começou 20 anos antes, ainda na graduação em Letras pela Universidade Federal do Pará (UFPA), quando ela criou um cursinho popular na sala de estar da casa da mãe, no bairro da Cremação. Nunca mais parou de desenvolver projetos sociais tanto em instituições públicas como privadas.
“O que hoje entendo como missão se intensificou no momento em que eu percebi que atuar diretamente com a comunidade periférica é uma questão realmente de vida ou morte. A chacina de novembro de 2014 de Belém terminou com a maioria de mortos sendo do bairro da Terra Firme e jovens, foi quando eu criei o projeto Juventude Preta Periférica - Do Extermínio ao Protagonismo, como forma de combater essa violência nas comunidades”, relata. O projeto é desenvolvido na Escola Brigadeiro Fontenelle, na Terra Firme, e além da produção audiovisual, tem dança inspirada no movimento hip-hop, teatro e cinema.
Lília é enfática em afirmar que o impacto do projeto é direto por conta da ausência de políticas públicas destinadas à periferia. “Não é somente um investimento na questão do lazer e da segurança, mas na questão do esporte, da arte em si. A Educação precisa ser esse instrumento que valoriza e que reconhece a nossa identidade sócio-histórica-político-econômica, e que valorize também os saberes ancestrais, que não são vistos como científicos e não são utilizados dentro das instituições escolares”, lamenta a professora.
O reconhecimento de Lília é inédito porque nunca uma mulher educadora amazônida afro-indígena ribeirinha e periférica havia sido indicada a uma premiação nacional e internacional. Porém, isso não significou ou significa menos dificuldades no que diz respeito à credibilidade da metodologia do trabalho desenvolvido.
“Muitos questionavam porque, em vez de eu estar ministrando um conteúdo específico para o [Exame Nacional do Ensino Médio] Enem, porque sou professora de Ensino Médio, eu estava na rua articulando com coletivos culturais, trabalhando nos fazeres comunitários a questão da articulação cultural do bairro. Tudo isso foi colocado em descrédito. Mas a partir do momento que o Ministério da Educação reconheceu que o projeto é eficaz, que o alcance é interessante e que a trajetória é correta, obviamente que todos os outros passam a também olhar diferenciado, então ajudou muito e tem ajudado”, admite.
DESAFIO
A pandemia impôs um enorme desafio ao projeto, já que muito de sua existência é relacionada à coletividade que ocupa as ruas. “Isolamento social em casas que não comportam todos os que nelas moram, violência no meio familiar, problemas financeiros, a pandemia potencializou muitas mazelas, e abriu a necessidade de desenvolver várias estratégias de superação. E superamos, porque conseguimos escrever documentário, fazer intervenção com a arte urbana de grafite nos muros, aprendemos a desenvolver reuniões remotas, cursos on-line, fizemos festivais, sarau virtual, tudo com muita dificuldade. Uma das coisas que a gente mais aprendeu, e que na verdade a gente já sabia, é que a periferia consegue superar as dificuldades quando se une”, orgulha-se.
Com muita dificuldade, mas sem desistir
Há 30 anos, Edna Maria Alves Dias, de 49 anos, ou simplesmente Dona Edna, está à frente de uma iniciativa cultural, iniciada pelo avô-pai, Mestre Palinha, de carimbó, boi, ladainhas, pássaros juninos em Salinópolis, no nordeste paraense. Guardiã da cultura popular, ela gera trabalho e senso de vida comunitária, e até criou, em 2019, um grupo de carimbó só de mulheres, porque o que o avô criou é só de homens. Atualmente é também presidente da associação de carimbó do município.
“A cultura traz alegria, amor, paz, comemora a diversidade. Pela cultura que desenvolvo do festejo de São Benedito, que existe há 62 anos, também foi tocado pelo meu pai(-avô), a gente tem folias, ladainhas, carimbó popular e carimbó da realeza, pássaros, bois, dança marcada. Amo o que faço, para mim o espírito está no sangue, e sigo passando esse conhecimento para futuras gerações que ainda virão”, declara-se.
Sem apoio das autoridades locais, Dona Edna conta que foram muitas as dificuldades financeiras durante a pandemia. “Foi muito difícil, e a gente sem poder tocar, se apresentar. Levamos como deu. Só gosta da Cultura mesmo quem tem força e vontade. Infelizmente, nosso poder público de Salinas não teve esse olhar diante das coisas que enfrentamos”, revela.
Ela é uma das cinco entrevistadas no projeto “Mulheres do mar”, focado em detentoras e protetoras de saberes culturais ancestrais preservados pela oralidade, da jornalista e ativista cultural Erika Morhy, contemplado pelo Edital de Multilinguagens – Lei Aldir Blanc Pará, e que deu origem a livro e podcast narrativo. Este último será lançado no próximo dia 9, em evento no Sesc Boulevard, em Belém.
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