Graciele dos Santos Lopes e sua amiga estavam sentadas na calçada em frente a um comércio na avenida Dalva, no bairro da Marambaia, em Belém. Era final da tarde de 27 de julho de 2012 quando as duas conversavam animadamente sobre as férias daquele mês e planejavam uma viagem para desfrutar o tempo que restava. Graciele, infelizmente, não pôde aproveitar desse tempo. A jovem de 19 anos — que concluía os estudos e sonhava em se tornar médica veterinária — teve a vida interrompida pela violência. Ednelson Silva de Oliveira não estava satisfeito com as recusas da moça frente aos assédios que ele cometia. Revoltado, invadiu a calçada com o Palio Fire cor vinho e atropelou as meninas. Graciele foi arremessada contra a parede e morreu na hora; a amiga dela sofreu ferimentos nas pernas.
“É difícil conviver com aquela pessoa e ela ser tirada de você de uma hora pra outra. Era uma pessoa cheia de vida e isso provoca uma dor muito grande. É uma perda pra todos nós”, desabafa do outro lado da linha Nilza dos Santos Lopes, irmã de Graciele.
Nilza não teve tempo para processar o luto. Foram dias e noites lidando com papeladas e tentando acompanhar o caso da irmã. Ela mora próximo ao local onde o acidente aconteceu e frequentemente observa Ednelson caminhando livre pelas ruas, uma liberdade que foi privada à Graciele. Nas poucas vezes que o viu por lá, garante que não se deixa intimidar.
“É revoltante você ver o assassino da sua irmã e não acontecer nada com ele ou ele fazer pouco com a tua cara. Não sei nem o que dizer. A gente procura a lei e a lei não tá nem aí pra gente”.
A indignação na voz prevalece à medida que conta essa história. Nilza lembrou do julgamento de Ednelson Silva de Oliveira em 20 de setembro de 2021. Nele, a promotoria sustentava a acusação de que Ednelson cometeu homicídio qualificado — a pena prevista é de 12 a 30 anos. Contudo, os jurados acataram por maioria dos votos a tese dos advogados de defesa. Ednelson foi sentenciado a pena de dois anos e quatro meses em regime inicial aberto por homicídio culposo.
Essa decisão, porém, foi anulada e Ednelson será julgado mais uma vez. A desembargadora Maria Edwiges de Miranda Lobato acolheu, em 8 de agosto de 2022, o pedido do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA). O processo tramita pela 3ª Vara do Júri sem uma previsão para o novo julgamento.
Nilza está frustrada, mas não se deixa esmorecer. Não tem um dia que não lembre da irmã e da vontade de oferecer um descanso digno para ela.
“Qualquer vacilo pode custar a vida”
Natássia Ferreira e seu amigo desciam a avenida Assis de Vasconcelos em uma motocicleta depois de aproveitarem uma festa badalada na Cidade Velha. A madrugada se aproximava do fim — o relógio marcava 5h — e os dois seguiam até o Ver-o-Peso para renovar os ânimos com um bom café da manhã nas tradicionais barraquinhas do maior cartão-postal da capital paraense. Próximos do cruzamento com a Rua Municipalidade, viram que o semáforo estava verde e seguiram em frente, mas não foram capazes de ir muito longe. Um carro de passeio surgiu em alta velocidade, atingindo a traseira da moto e a perna direita de Natássia.
“O motorista não prestou socorro. Quem ajudou a gente foi um casal que também tava de moto. A gente nunca descobriu quem fez isso, nem a placa do carro deu pra anotar. Fiz um boletim de ocorrência, mas não fui adiante. Acho que na época tava muito envolvida na recuperação”, lembra.
“Falam do uso do capacete e do cinto de segurança, mas depois do acidente a gente percebe que qualquer vacilo pode custar a vida. Eu te confesso que nunca mais subi em uma moto. A única vez foi dentro da UFPA, saindo da beira do rio até o portão pra pegar o ônibus”.
O acidente mudou tudo. Natássia ficou uma semana internada no hospital depois de ter quebrado a fíbula e a tíbia. Ela perdeu alguns centímetros na perna direita e sua mobilidade foi restringida. Interrompeu a faculdade e só voltou a estudar no ano seguinte. O processo de recuperação durou cerca de dois anos, alternando entre muletas e calçados com saltinhos até que estivesse pronta para dar início ao alongamento ósseo — procedimento cirúrgico que corrige a diferença entre os membros inferiores.
Quase 13 anos se passaram desde aquela madrugada. Natássia cumpre sem dificuldades as tarefas que antes eram mais difíceis, além do autocuidado que observou ser necessário naquele tempo de recuperação. As cicatrizes na perna direita permanecem, mas não a incomodam. Hoje elas servem a uma história que Natássia se sente confortável em contar.
A CURA PELA PALAVRA
Apesar de distintas, Nilza e Natássia são protagonistas de uma história dolorosa escrita pela imprudência e a violência no trânsito. Nilza confessou que até hoje não conseguiu processar a perda da irmã. Natássia confidenciou que não se sente mais segura em andar de moto. As duas sofreram à sua maneira e hoje carregam machucados invisíveis, representados por um turbilhão de sentimentos não processados ou momentos de gatilho.
“É preciso cuidar da dor do ser humano. Quando se trata de um acidente de trânsito, a pessoa primeiro cuida do físico, mas é importante que seja incluído o atendimento emocional porque aquele acidente pode desencadear outros gatilhos”, explica Niamey Granhen, psicóloga e professora da Universidade Federal do Pará (UFPA).
O psicólogo percorre um longo caminho ao lado do paciente que sofreu traumas físicos ou do familiar que perdeu seu ente querido. O processo inclui fazer a pessoa expor sentimentos e reviver memórias que, a princípio, pode julgar não serem relevantes a ponto de justificar aquele acolhimento.
“Apesar dos machucados visíveis desaparecerem, podem permanecer os medos, mas a nossa cultura é a do ‘se tá bem, já passou’”, esclarece Niamey.
“Às vezes, o gatilho de uma situação desperta algo que você já tinha. Nada é de repente. É só a gota d’água. Existe um processo até que o seu organismo não aguenta, então transborda. Nesse sentido, dizemos que algumas pessoas são resilientes e outras não.”
A pressa caminha na contramão dessa jornada de cicatrização interna. Trata-se de um processo singular que exige paciência do personagem principal e dos demais que o acompanham. O contexto de vida e a personalidade também impactam no tempo que se leva até ser possível processar o luto ou falar sobre o trauma sem se ver obrigado a reprimir sentimentos.
Por fim, Niamey defende: “Não é errado falar sobre o que sentimos. A gente tem que respeitar o contexto de vida de cada pessoa. Trabalhar os medos e incluir a família nesse processo de recuperação porque somos singulares, cada pessoa tem o seu funcionamento”.
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Conteúdo:
• Psicólogo responde: por que somos imprudentes no trânsito?
• Morremos jovens na contramão da imprudência
• Vítimas de trânsito e as cicatrizes invisíveis
• Delegacia de Trânsito: um sonho de justiça e reparação
• Princípios da educação para um trânsito mais seguro
Reportagem: Fernanda Palheta
Edição: Gustavo Dutra
Multimídia: Emerson Coe e Vicente Crispino
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