Escalpelamento é o arrancamento brusco e acidental do couro cabeludo. Esse grave acidente costuma ocorrer em embarcações de pequeno porte em diversos municípios do Pará, quando, por descuido, os cabelos compridos, em sua maioria de mulheres e meninas, se enrolam em eixos e partes móveis dos motores, causando a lesão parcial ou total na cabeça das vítimas.
Em muitos casos, as vítimas têm orelhas, sobrancelhas, pálpebras e parte do rosto e pescoço arrancados, o que causa grave deformação e pode levar a morte. O longo tratamento consiste em cirurgia plástica reparadora e implante capilar, além de acompanhamento psicológico.
A nota técnica “Menina, mulher e ribeirinha da Amazônia paraense e o acidente em embarcações com escalpelamento”, produzida pela Fundação Amazônia de Amparo a Estudos e Pesquisas (Fapespa) traz levantamentos sobre esse tipo de acidente e constata como as políticas públicas no Pará contribuem na erradicação dos casos.
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Para composição da nota, além de revisão bibliográfica, desenvolvida pela Diretoria de Estudos e Pesquisas Socioeconômicas e Análise Conjuntural (Diepsac), foram consultados dados públicos, como os fornecidos pela Capitania dos Portos da Amazônia Oriental (CPaor) da Marinha do Brasil. E uma visita de campo à “Casa de Apoio Espaço Acolher”, vinculado à Santa Casa de Misericórdia do Pará, foi crucial para a conclusão dos estudos. O local, que é referência no Estado pelo acolhimento de vítimas de escalpelamento, mantém fichas de atendimento datadas de 1964 a 2023, permitindo um amplo panorama sobre o histórico de acidentes.
“A Fapespa, através dos seus estudos, desempenha um papel social muito importante que é o de informar a população, as autoridades, aos tomadores de decisão sobre dados importantes, que permeiam a nossa população. No caso do escalpelamento, conhecer a realidade, acompanhar esse número de casos, as suas causas, as medidas que estão sendo tomadas e os seus efeitos é fundamental para sabermos se estamos no caminho correto de solucionar o problema. Além disso, os dados nos permitem saber quais outras ações devemos tomar”, explica o presidente da Fapespa, Marcel Botelho.
Amazônia
Assim, com os levantamentos, foi possível constatar que apenas três Estados registram escalpelamento: Pará, Amapá e Amazonas. Peculiaridades da região contribuem para o surgimento de casos. A Região Amazônica tem a extensão de 8 milhões de km², com a maior bacia hidrográfica do planeta. Na Bacia Amazônica está concentrada 20% da água doce superficial, além dos maiores rios do mundo, como Tapajós, Trombetas, Xingu, e claro, Rio Amazonas, o mais extenso do mundo.
Nesse contexto, percorrer áreas de grandes ou de pequenas extensões de rios, igarapés e furos, requer o uso de embarcações. Para ribeirinhos, grupo reconhecido como povos tradicionais que mora às margens dos rios da Amazônia, o processo é habitual, sendo pelas águas, muitas vezes, o único caminho possível para conseguirem realizar deslocamentos cotidianos.
Ocorrências
Segundo a Capitania dos Portos, o Pará registrou a existência de 21.232 mil embarcações, dentre as quais 6.163 seriam somente de uso para o transporte de passageiros. Todavia, estima-se que aproximadamente 40 mil embarcações naveguem em condições clandestinas. Fatores que contribuem para situações de escalpelamento em pequenas embarcações de transporte de passageiros Estado. De 2006 a 2022, a instituição constatou 173 episódios de acidentes de escalpelamento. O ano de 2009 foi o que apresentou o maior número de acidentes na série histórica, com 22 casos. A partir deste ano, os números alcançaram patamares mais baixos, fechando 2022 com 7 ocorrências no Pará e Amapá.
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Com base nos materiais disponibilizados pela Casa de Apoio Espaço Acolher, foi possível coletar informações ainda mais aprofundadas. Como os registros englobam um maior espaço de tempo, iniciando em 1964, o número de casos de escalpelamentos é, consequentemente, maior: 207 episódios em 41 municípios do Estado do Pará. Na análise por Regiões de Integração (RI) do Pará, a maioria das ocorrências foram na RI Marajó, com 111 casos; seguida da RI Tocantins, com 53 casos; e posteriormente, com 19 situações, a RI Baixo Amazonas.
Considerando o ranking por municípios, a primeira posição é ocupada por Portel, com 24 casos, sendo as vítimas de escalpelamento 100% mulheres; seguido de Breves, com 22, também o acidente tendo ocorrido somente com mulheres; Curralinho, com 16 casos, sendo 15 mulheres e 1 homem; Cametá, com 15 casos, registrando 14 mulheres e 1 homem; e Melgaço, com 12 acidentes, com 11 mulheres e 1 homem.
As vítimas
A ocorrência dos acidentes com escalpelamento ocorre, majoritariamente, com mulheres que ainda são meninas, residentes às margens dos rios e furos de rios da Amazônia paraense. O estudo identificou que 98% das pessoas vítimas de acidentes com escalpelamento são mulheres e 2% são homens. A causa pode estar relacionada à preponderância do número de mulheres ribeirinhas que habitualmente escolhem ter cabelos compridos, podendo estar associado ao fato de 56,5% serem praticantes da religião evangélica.
Outro aspecto é que, além de serem mulheres, 67% das vítimas são crianças e adolescente entre 2 e 18 anos de idade. Pessoas adultas e idosas corresponderam a 33% dos casos. Ao verificar os percentuais por faixas etárias, com base nos atendimentos feitos pelo Espaço Acolher, percebeu-se ainda que o maior número de eventos de acidente de escalpelamento envolve crianças de 7 a 9 anos de idade, correspondendo a 24%; seguido de crianças de 10 a 12 anos, com 19% das situações; e, posteriormente, 10% dos casos correspondentes a crianças de 13 a 15 anos.
Para Marcio Ponte, diretor da Diepsac, é imprescindível a continuidade e aprimoramento dos processos de garantia dos direitos humanos das vítimas escalpeladas. “Para além desta nota, objetivamos enfatizar que as meninas e mulheres ribeirinhas acometidas pelo escalpelamento em embarcações nos rios do Pará, durante o trágico evento, não têm arrancados somente seus cabelos e couro cabeludo, mas têm agravadas suas condições de vida, que antes do episódio já poderiam apresentar um contexto de vulnerabilidade social. Com um acidente como este, a vida tende a ficar mais difícil, em um cenário já desfavorável pelo estigma de ser mulher e de ser ribeirinha”, aponta.
Rede de apoio
A marca de impacto do acidente é proporcionar às vítimas um sofrimento inimaginável, reverberando em expressivo sofrimento físico, psicológico e social para toda a vida. A proteção das vítimas vem em forma de políticas públicas e uma consistente rede de proteção e atenção social.
Seja durante e depois do acidente, a nota mostra como essas ações são capazes de reduzir as sequelas físicas e mentais do escalpelamento. Em Belém, o atendimento às vítimas de escalpelamento ocorre, desde 2002, na Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, por meio do Programa de Atendimento Integral às Vítimas de Escalpelamento (Paives).
Dentro das ações governamentais na luta pela erradicação do acidente, foi criada a Comissão de Erradicação dos Acidentes com Escalpelamento (CEEAE) em embarcações do Pará, que aglutina a cooperação de várias instituições do Estado na perspectiva de intervenção intersetorial na questão, a partir de abordagens multiprofissionais.
Já a Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sespa), tem como atribuição realizar ações de prevenção, capacitação de profissionais, articulação e mobilização de colaboradores do estado e sociedade civil para o enfrentamento da questão. A Secretaria de Estado de Assistência Social, Trabalho e Renda (Seaster) atua viabilizando o acesso de vítimas a programas, projetos, serviços e benefícios da política pública.
Outro recurso de atenção às vítimas de acidente com escalpelamento no Pará, é a Casa de Apoio Espaço Acolher. O local caracteriza-se em uma residência de acompanhamento prolongado, tendo em suas dependências classe hospitalar, a partir da atuação da Secretaria de Estado de Educação (Seduc), com relativas condições de infraestrutura para a garantia de mínimo bem-estar às vítimas de escalpelamento em tratamento na cidade de Belém. O Espaço Acolher, como é popularmente conhecido, atende pessoas e famílias de diversos municípios, sendo a maioria oriunda das regiões ribeirinhas, assim como as vítimas de escalpelamento.
A lei
O ano de 2009 marcou negativamente a luta contra o escalpelamento. Momento em que o Pará registrou o mais alto índice de casos desse tipo de acidente, com 22 vítimas. Mas foi neste mesmo ano que também tudo mudou, a partir da criação da lei federal de proteção e atenção às vítimas de acidente de escalpelamento. A norma foi criada determinando a obrigatoriedade no uso de proteção do eixo do motor e de partes móveis de embarcações. No ano seguinte, outra lei reforçou a luta, estabelecendo o dia 28 de agosto como o Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento.
Nesse processo há ainda a participação da Marinha do Brasil, através da Capitania dos Portos, que desenvolve várias ações, como fiscalização de embarcações, instalação gratuita da cobertura do eixo de pequenas embarcações, campanhas de prevenção, entre outras.
De 2009 a 2022, a Marinha implantou 5.339 eixos de cobertura de embarcações. A instalação da cobertura do eixo nas pequenas embarcações é um procedimento crucial pela sua eficácia na erradicação dos acidentes com escalpelamento. Vários outros órgãos ancoram serviços e ações para o enfrentamento aos acidentes com escalpelamento.
Os estudos também demonstram que ações conjuntas de instituições são fundamentais na construção de uma rede e circuitos de leis, programas e projetos no Pará para o mesmo objetivo: erradicar o escalpelamento. “Os nossos estudos são baseados em dados oficiais, em fontes oficiais, que por conseguinte, têm credibilidade e propiciam tanto o controle social por parte da nossa população, como embasam uma melhor tomada de decisão por parte das nossas autoridades”, avalia o presidente.
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