Durante o período de efervescência econômica impulsionado pelo ciclo da borracha, Belém teve no Theatro da Paz a sua grande vitrine cultural. Desde a inauguração, em 1878, a imponente casa de espetáculos não apenas recebeu temporadas de óperas e peças teatrais, como também se tornou um marco de um importante período histórico da capital paraense, com a memória preservada por meio das referências impressas em cada detalhe arquitetônico. Símbolo de orgulho e encantamento para os belenenses, o teatro agora tem a chance de ver seu valor reconhecido também como Patrimônio Mundial da Unesco.
A mudança política e econômica ocorrida em Belém a partir de 1863 foi o que possibilitou que o Theatro da Paz fosse construído. Na época, a borracha extraída da seringueira ultrapassou o cacau nas balanças de exportação, fazendo com que o látex passasse a ser o grande produto de exportação da Amazônia. Foi essa riqueza que financiou a construção da casa de espetáculos.
O historiador e docente do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Pará (UFPA), Aldrin de Moura Figueiredo, se dedica ao estudo das artes plásticas e literárias na Amazônia nos séculos XIX e XX, além do patrimônio histórico e da história social da intelectualidade na Amazônia entre os séculos XVIII e XX. Ele aponta que o Theatro da Paz foi a primeira grande obra erguida na cidade durante o ciclo da borracha. “O Theatro Paz é o mais rico, o mais suntuoso teatro brasileiro construído no Império. Ele foi inaugurado em 1878, então, ele ainda está ligado aos projetos imperiais”.
Enriquecida pela economia da borracha, a nova elite que emergia em Belém naquele período financiou, em parceria com a Província, a construção do Theatro da Paz. O professor Aldrin Figueiredo explica que ele veio substituir outro teatro que existia no então Largo das Mercês, chamado Teatro Providência. Era um teatro que mesclava alvenaria e madeira, mas que teve sua estrutura destruída por um incêndio. “Na década de 1860 se começa a construção do Theatro da Paz, assim como a Intendência (o Palácio Antônio Lemos) e uma série de melhoramentos públicos que ocorrem na cidade no mesmo período. Então, o Theatro da Paz é mais um desses melhoramentos públicos, desses equipamentos que tornariam Belém uma cidade nos modelos europeus”, contextualiza. “Mas o Theatro da Paz foi uma grande revolução no ambiente cênico e artístico paraense, e brasileiro também, pela modernidade da sua construção”.
O projeto arquitetônico do teatro, assinado pelo engenheiro militar pernambucano José Tibúrcio de Magalhães, foi inspirado no Teatro Alla Scala, de Milão, na Itália. Após a inauguração, a construção passou por um processo de embelezamento e decoração que ficou a cargo de vários artistas italianos que estavam trabalhando em Belém, na época, especialmente Domênico de Angelis, Giovanni Capranesi e Sperindio Aliverti. “Muitas encomendas foram feitas na Europa para artistas franceses, mas principalmente artistas italianos, que fazem encomendas de lustres, de estátuas de bronze, mármore. Já no início do Século XX, o Augusto Montenegro faz uma reforma, bem no início do período do seu Governo, entre 1902 e 1908, e traz principalmente um artista decorador da França, que vai fazer um trabalho incrível com parquetaria, com o uso do mosaico italiano”, explica Aldrin Figueiredo. “Por exemplo, aquele hall de entrada tem um lago de vitórias-régias todo em estilo Art Nouveau, com referências orientais. Isso é resultado desse processo de modernização que o teatro vai passar. Você vai ver usos de ferro, do zinco fundido e toda essa modernidade que as artes aplicadas estão trazendo para esse mundo ocidental, coisas produzidas na Inglaterra, nos Estados Unidos, na França, na Bélgica, em Portugal, na Itália. Então, o teatro é quase uma espécie de síntese da modernidade arquitetônica, artística e cultural daquela época”.
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Toda essa riqueza, evidenciada pelos detalhes arquitetônicos e decorativos, pode ser observada assim que se entra no teatro. Muitos desses elementos, inclusive, guardam referências amazônicas, apesar de os materiais terem vindo de outros países. O impressionante mosaico presente no hall de entrada foi construído com peças vindas da Itália, mas que foram fixadas com grude de Gurijuba, um peixe nativo da região. Em outro ponto, no alto da grande escadaria que dá acesso ao primeiro andar da casa de espetáculos, duas estátuas representam cariátides, figuras femininas utilizadas na arquitetura grega clássica, mas que no Theatro da Paz fazem uso de colares indígenas, mais um exemplo dessa mescla entre as identidades europeias e amazônicas.Além das artes cênicas, o Theatro da Paz desempenhou um papel essencial na história cultural da cidade. Seu salão de entrada abrigava exposições de artistas locais, e o próprio edifício testemunhou o nascimento do cinema em Belém, sediando a primeira exibição cinematográfica da cidade. Também foi palco de reuniões científicas e políticas, além de bailes de Carnaval. “Ainda hoje, o Governo do Estado, as sociedades científicas, as universidades escolhem o teatro como lugar de abertura das reuniões, de eventos de toda natureza e principalmente eventos importantes, eventos grandes. Mas o teatro viu de tudo, viu apresentações incríveis e eu posso citar a vinda da bailarina russa, em 1918, a Anna Pavlova, com mais de 100 bailarinos. Era considerada, na época, a maior bailarina do mundo”, destaca o historiador Aldrin Figueiredo.
Além de Pavlova, o palco do Theatro da Paz recebeu artistas como Bibi Ferreira, Grande Otelo, Waldemar Henrique, além de peças de diretores como Maria Sylvia Nunes, grande diretora de teatro paraense. Assim como as referências arquitetônicas e artísticas presentes no espaço, essas e outras apresentações ajudam a formar a longa trajetória cultural e artística do teatro que ajuda a compreender a história da própria cidade de Belém. “Apesar do Ver-o-Peso ser considerado o grande cartão postal de Belém porque é um exemplo, talvez, da cultura popular amazônica, o Theatro da Paz tem esse olhar de fusão também de várias culturas. Ele tem esse modelo europeizado, mas que se aclimatou ao universo amazônico porque lá se apresentam desde artistas eruditos, como também artistas populares”, considera Aldrin. “Ele é muito mais que um prédio. Ele é o carimbo fisionômico de Belém, a gente tem o Theatro da Paz profundamente entrelaçado à fisionomia da cidade de Belém, à sua Belle Èpoque, a seu passado histórico e também ao seu presente”.
Ao lado do Teatro Amazonas, o da Paz é candidato a Patrimônio Mundial
A importância única desse patrimônio, agora, passará pela avaliação do Comitê do Patrimônio Mundial, formado por 23 países signatários da Convenção sobre a Proteção do Patrimônio Mundial, Cultural e Natural da Unesco. No último dia de janeiro deste ano, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) oficializou a candidatura dos Teatros da Amazônia - o Teatro Amazonas, em Manaus, e o Theatro da Paz, em Belém – à seleta Lista do Patrimônio Mundial da Unesco. Após a avaliação do cumprimento dos requisitos demandados, a candidatura dos teatros poderá compor a pauta do comitê para o possível reconhecimento do bem cultural.
Para que tal candidatura fosse oficializada, um dossiê foi elaborado por um grupo técnico de pesquisadores do Iphan, das secretarias de cultura do Amazonas e do Pará, além das secretarias de cultura dos municípios de Manaus e Belém. A secretária de cultura do Pará, Ursula Vidal, destaca que a própria construção desse inventário já é um legado. “Esse tem sido um trabalho muito meticuloso, não é simples elaborar toda essa documentação necessária para a submissão desse comitê dos países membros. Foi um trabalho longo e que contou com a formação de profissionais extremamente qualificados e apaixonados pelo patrimônio”, considera. “Para além do reconhecimento, que é o que todos nós estamos esperando, o próprio material recolhido ao longo desse processo de construção da relação desses dois teatros, desse momento econômico e cultural que a Amazônia viveu e que deixou um legado muito importante e que continua sendo um ponto de irradiação, inclusive, para toda a cena e vida cultural, seja do Amazonas, seja do Pará, esse trabalho já é um legado muito importante que nós deixamos para o compromisso do poder público com a preservação do patrimônio histórico”.
A secretária destaca, ainda, que o teatro é um patrimônio que marca a memória de artistas e espectadores que passaram por ele e dos que continuam passando, visto que a casa de espetáculos segue em pleno funcionamento. “O teatro tem uma vibração dentro desse palco que marca a memória dos espectadores, mas ele também, como um patrimônio arquitetônico, é uma joia muito cara para nossa população”, considera. “Tanto que ao longo desses seis anos do nosso Governo, essa é a terceira revitalização pela qual o Theatro da Paz passa, para que ele permanentemente esteja aberto, em condições de receber o público e sempre com esse cuidado renovado, com a preservação de todos os elementos artísticos, de todos os traços dessa arquitetura neoclássica que fazem dele um patrimônio que, agora, está com toda a documentação em dia, aguardando a chancela da Unesco para que seja reconhecido como Patrimônio Mundial, junto ao nosso teatro irmão, que é o Teatro Amazonas”.
PARA ENTENDER
DA PAZ
Quando foi inaugurado, o teatro foi chamado de Theatro Nossa Senhora da Paz, em homenagem ao fim da Guerra do Paraguai e às pessoas que haviam morrido em decorrência do conflito. Porém, à época, o bispo Dom Macedo Costa divergiu da ideia em razão da natureza profana de alguns espetáculos apresentados ali, o que fez com que o nome ficasse apenas Theatro da Paz, como é até hoje.
VISITA GUIADA
Além de assistir a espetáculos e eventos, é possível apreciar a importância histórica e patrimonial do Theatro da Paz através das visitas guiadas. Nelas, é possível conhecer um pouco mais das referências de elementos amazônicos empregados na decoração do teatro e, inclusive, refletir sobre como eles elementos decorativos ajudam a contar um pouco da história social da época, na medida em que o interior do teatro foi projetado para atender à hierarquia social daquele período. Normalmente, as visitas ocorrem de uma em uma hora, sendo a primeira às 9h e a última às 17h, sempre às terças, quartas, quintas e sextas-feiras. No momento, porém, o teatro passa por reforma, portanto, é necessário consultar o site (www.theatrodapaz.com.br) e as redes sociais (@theatrodapazoficial) do teatro para se informar sobre o funcionamento.
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