
Segundo o Pew Research Center (2020), a perseguição religiosa se faz presente na maioria dos países do mundo, sendo os cristãos e os muçulmanos os grupos religiosos mais perseguidos em termos numéricos absolutos. Essa intolerância religiosa marca uma violação contra os direitos humanos, afetando diretamente as liberdades fundamentais e a dignidade da pessoa humana.
Na semana passada, mais precisamente no dia 25 de março, terça-feira, Belém foi palco de um momento que prova o tanto que tolerância, o respeito e até a união entre as religiões pode significar um enorme ganho para a sociedade como um todo - embora ainda existam tantos membros dessa própria sociedade que preferem ignorar e até mesmo maldizer isso.
De representações religiosas diferentes, o padre paulistano Júlio Lancellotti, pároco da paróquia de São Miguel Arcanjo (na Mooca, bairro da capital de SP), e a Mãe Juci D’Oyá, da Casa de Mãe Herondina, na capital paraense, foram participantes de uma mesma edição do Sem Censura, programa de entrevistas da TV Cultura do Pará que vai ao ar ao vivo no início da tarde, de segunda a sexta. E lá, ele pediu à mãe de santo que lhe desse a bênção, e ela prontamente o atendeu. O momento foi registrado em vídeo e fotos e compartilhado nas redes dos dois, e da própria emissora.
Conteúdos relacionados:
- Padre Júlio Lancellotti chega a Belém para evento sobre população de rua
- Padre Lancellotti ouve população em situação de rua em Belém
Nos comentários, muitas pessoas enaltecendo o exemplo de respeito e amor dado pelos dois na atitude, e também verdadeiros ataques de ódio pelo simples fato de dois grandes representantes de suas religiões muito bem conviverem e ainda se reconhecerem grandes naquilo que creem e difundem.
“Como é bonito que as religiões de matrizes africanas têm a reverência a Nossa Senhora de Nazaré. Isso é muito bonito, né? Assim como a gente vê na história de Santa Dulce como ela era amiga da Mãe Menininha do Cantuá. É inaceitável que, em nome de religião, se ataque os terreiros de candomblé e que sejam desrespeitados os templos da religião africana. Porque todos somos irmãos, pois somos filhos do amor. E é só olhar esse olhar para vermos a paz”, declarou o padre à Mãe Juci, depois do rito de bênção, que ocorreu no estúdio mesmo, após o fim da exibição do programa.
ESPONTÂNEA
“O encontro não foi planejado por nós. Acredito que tenha sido planejado por Deus, por nossos ancestrais”, avalia a mãe de santo, em entrevista concedida ao DIÁRIO esta semana. Ela conta que a entrevista ao programa já estava marcada, e lá ela falaria sobre gastronomia afrodiaspórica e comida de terreiro, que é seu trabalho principal. Quando Pe. Júlio chegou, eles se cumprimentaram, e ao final de tudo, quando pediram para que os participantes tirassem uma foto, ele pediu a ela a bênção, muito naturalmente.
“Quando nos pedem benção, nós, que somos do axé, não podemos negar. Assim como ele não me negaria se eu pedisse, mesmo sendo mãe de santo. Foi simples. Abençoei pedindo proteção, era uma terça-feira, dia que reservamos a saudar Ogum, que no sincretismo é São Jorge. E eu pedi para que as armas de Ogum o protejam dessas perseguições que ele sofre, assim como nós, de matriz africana também sofremos. A foto foi compartilhada e repercutiu”, conta.
Segundo a Ialorixá, foram centenas de comentários maldosos e racistas nas redes sociais em função deste momento de união e respeito. “Vivemos em um país de racismo religioso não velado. As pessoas cometem sem medo de condenação, pois nossa Justiça ainda é falha. Vivemos em um país que segregou meu povo, o povo negro, e hoje nós pensamos ter liberdade de expressão religiosa, mas ainda são muitos os ataques”, lamenta ela.
Quer saber mais notícias do Pará? Acesse nosso canal no Whatsapp
“O padre tem uma luta de defesa de pessoas em situação de rua, sem comida, sem cobertor, e é atacado porque faz ato de caridade cristã. Nós sofremos porque as pessoas nos demonizam, porque não entendem nossa fé, nossa cultura africana trazida pelos sequestrados por portugueses. A repercussão é muito dolorosa. Houve um sensacionalismo em cima de um ato de amor, de troca, de respeito entre nós, um abraço, um cuidado - essa é a palavra. Minha mãe diz que Jesus foi assassinado em nome de Deus. Vivemos hoje uma guerra religiosa em nome de Jesus, que só pregou a paz. Assim como Júlio, assim como eu, somos disseminadores da paz”, analisa Mãe Jaci.
Em missa, padre criticou os ataques
Há alguns dias, em uma missa realizada em São Paulo, o padre Júlio Lancellotti agradeceu ao povo de Belém pela acolhida nos dois dias que esteve aqui, e mandou um recado para “a mãe de santo que me recebeu, que me abençoou”. “Fica tranquila, nós passamos por tempestades. Temos que acolher a todos, todas, e acolher as pessoas de diferentes religiões não significa abjurar a sua fé. Você tem que conversar, não pode dizer que só conversa com quem for de sua religião. É uma coisa absurda”, anunciou, fazendo questão de reforçar que o encontro entre eles, além de não ter sido programado, não foi em nenhum tipo de celebração, e sim em um estúdio de TV.
“Eu sei qual a minha religião e ela sabe qual é a dela. Isso não significa que temos de ser indiferentes. E quando eu a saudei, ela me abençoou. A bênção não significa desrespeito”, declarou, em seguida declarando que na leitura do evangelho daquele dia se debruçaria em uma passagem sobre o Pai que não faz acepção de pessoas. “O racismo religioso é muito grave, é inaceitável. Que estejamos sempre atentos a não cair nesse pecado”, atentou.
Mãe Jaci faz questão de expressar o quão doído é se ver demonizada pelo episódio com o Pe. Júlio. “Disseram que o padre tomou banho com mãe de santo e por isso tinha que ser excomungado por ter encontrado o diabo. Isso dói, marca profundamente. Eu sou a Mãe Juci, mas sou o ser humano que tem filhos, netos, que vão ver esses comentários”, desabafa. “A gente aprende que só dá o que tem, e essa dádiva do amor não é para todos. Quem tem amor, dá amor. Quem tem ódio, dá isso, dá ignorância. E não é por falta de conhecimento, hoje tão acessível com a internet. Destila ódio quem só tem isso para distribuir”, avalia.
Intolerância é crime
Fique atento
A tolerância religiosa é o ato de aceitar e consentir sobre a existência de diferentes religiões, em que o respeito aos seus cultos e convicções são preservados. Como consequência, essa tolerância pode ser vista como fundamental para que a liberdade religiosa seja protegida e preservada. Milhares de pessoas perdem a vida devido à violência motivada pela intolerância religiosa - que, por sua vez, diz respeito ao repúdio de práticas religiosas, em que o comportamento discriminatório ganha força.
A intolerância religiosa não pode ser interpretada somente como um ato isolado e individual, mas também como um fenômeno social que envolve o sentimento coletivo de aversão à determinada religião ou religiões.
Nesse sentido, por questões sociais, históricas, culturais e/ou políticas, muitos indivíduos são induzidos a serem intolerantes com aquilo que muitas vezes desconhecem de forma profunda, indicando que a intolerância carrega em si o aspecto do preconceito.
No caso da intolerância religiosa, o preconceito se baseia em convicções em relação ao sagrado, em que os dogmas, cultos e divindades seguidos são tidos como moralmente “certos” e resultam na negação de outra crença.
Desde a publicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), em 1948, pela Organização das Nações Unidas (ONU), a liberdade religiosa é reconhecida em nível internacional como parte dos direitos humanos.
No Brasil, especificamente, a Lei nº 9.459 de 1997 configura a intolerância religiosa como crime, determinando a pena de um a três anos de reclusão e multa para o ato de discriminar alguém por motivos de raça, etnia, religião ou procedência nacional.
Em casos de intolerância ou discriminação religiosa, deve-se prestar denúncia para as autoridades competentes lidarem com o caso. Essa denúncia pode ser feita para o Disque 100 do governo federal, para o Ministério Público, para qualquer unidade policial, assim como para as Secretarias Municipais de Direitos Humanos.
Seja sempre o primeiro a ficar bem informado, entre no nosso canal de notícias no WhatsApp e Telegram. Para mais informações sobre os canais do WhatsApp e seguir outros canais do DOL. Acesse: dol.com.br/n/828815.
Comentar