
Há eventos que deveriam servir como pontos de convergência global, mas acabam revelando fraturas internas - sociais, culturais e, no caso do Brasil, regionais. Desde que o Profissão Repórter da última terça-feira (29) exibiu sua edição sobre os preparativos de Belém do Pará para a COP30, o que deveria ser um debate sobre logística, infraestrutura e protagonismo climático virou palco de comentários xenofóbicos e ataques ao povo do Norte nas redes sociais.
O programa da TV Globo mostrou os contrastes da cidade que, ao mesmo tempo em que recebe investimentos bilionários em infraestrutura, ainda abriga comunidades com serviços básicos precários. Também foram abordados temas como a crise de hospedagem, a especulação imobiliária e a corrida por acomodações durante o evento, marcado para novembro.
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Mas, em vez de fomentar um debate construtivo, a reportagem desencadeou uma onda de comentários preconceituosos. "A paraense falando sem vergonha nenhuma em rede nacional que aluga o quarto por R$ 350 e que na COP será R$ 6 mil. Essa galera do Pará está completamente fora da casinha", escreveu o perfil @santoskazarv. Outro usuário foi além: "Como pode um lugar ser tão podre? O Brasil tem tesão em mostrar seus piores lados pro mundo", postou @bardobardolino. Já @annnaduarte chamou os paraenses de "patéticos" e "gente esquisita".
COBERTURA MIDIÁTICA TEM VIÉS NEGATIVO
Para Ana Toni, CEO da COP30, as reações nas redes não são apenas críticas desmedidas: são sintomas de um preconceito profundo. "Sim, tem preconceito. Nacional e internacionalmente. É lamentável ver a falta de um debate mais profundo sobre as relações de poder que cercam essa COP", afirmou ela, durante o Congresso Internacional de Jornalismo Investigativo.
Segundo Toni, os veículos de comunicação têm focado quase exclusivamente nos desafios logísticos, enquanto os verdadeiros temas da COP, como o enfrentamento da crise climática e o papel da Amazônia, estão sendo deixados de lado. "Claro que há temas importantes ali, como os preços de acomodação, mas a imprensa não está conseguindo mostrar a real dimensão política e ambiental do que está em jogo na COP30", avaliou.
O SUCESSO DOS DOMOS ECOLÓGICOS DE AÇAÍ
Ana Toni também lembrou que Belém tem experiência em acolher grandes multidões, como no Círio de Nazaré, e que soluções vêm sendo implementadas para dar conta da demanda da conferência. "Estão sendo construídos e reformados hotéis, casas estão sendo adaptadas, e plataformas de hospedagem alternativas estão prestes a ser lançadas", disse.
Uma das alternativas mais criativas é a instalação de domos ecológicos desenvolvidos pela startup paraense Amazônia Domos, vencedora do prêmio Inova Amazônia. Essas estruturas geodésicas são feitas de madeira jatobá e contam com cobertura térmica composta em 65% por material reciclado. Parte dela, inclusive, utilizando caroço de açaí no revestimento interno. Com seis metros de diâmetro, banheiro privativo e capacidade para até seis pessoas, os domos oferecem conforto aliado a um conceito de sustentabilidade regional. Totalmente desmontáveis, entre 80% e 90% de seus componentes podem ser reaproveitados em novas instalações, permitindo flexibilidade ao empreendedor.

SOLUÇÕES ALTERNATIVAS DE HOSPEDAGEM
Embora já estejam alugados para um grupo de São Paulo, os domos representam apenas uma das várias soluções alternativas que surgem em Belém. A cidade também prepara hostéis temporários, navios de cruzeiro ancorados na baía do Guajará e até escolas públicas estaduais, que serão adaptadas provisoriamente para acolher participantes do evento.
Segundo Jorge Bentes, diretor da Plataforma 091, as medidas mostram que houve esforço de antecipação para atender grandes delegações com alternativas criativas e sustentáveis. "Só que muitos deixaram pra depois, e aí tudo fica mais caro e com limitações de execução. Esse é um ponto importantíssimo que vale a pena destacar", comenta Jorge Bentes, diretor da Plataforma 091.
Além disso, de acordo com especialistas do setor de turismo e eventos, os grandes grupos que se anteciparam conseguiram garantir boas estruturas com preços mais viáveis. Já quem preferiu esperar ou subestimou a demanda, agora encontra custos mais altos e limitações na execução de seus planos.
BOLHAS DE ESPECULAÇÃO FORAM SUPERADAS
Ainda de acordo com Bentes, os primeiros valores divulgados, como pacotes de até R$ 25 milhões ou diárias de até R$ 2 milhões por 15 dias, não passaram de bolhas de especulação. "Ninguém pagou esses valores. Foram bolhas criadas por ganância e falta de orientação", afirmou.
A Plataforma 091 atua para regular o mercado de hospedagem de forma ética, conectando casas adaptadas, hotéis reformados e acomodações comunitárias. Os preços atuais, segundo o diretor, estão dentro da média de eventos similares, variando entre US$ 600 e US$ 1,5 mil por diária.
FISCALIZAÇÃO PARA INIBIR ABUSOS
O cenário também levou a Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) a intervir. Foram notificados 24 hotéis e o sindicato do setor para explicações sobre possíveis práticas abusivas. Na Conferência de Bonn, preparatória da COP30, delegações alertaram para diárias acima de cinco vezes o teto de reembolso da ONU, de US$ 145.
Outro efeito colateral da especulação é o despejo de inquilinos: muitos moradores relatam que estão sendo retirados de seus imóveis para que proprietários façam alugueis de curta duração a preços exorbitantes durante o evento.
"BELÉM MERECE RESPEITO"
A crítica de Bentes não poupa a narrativa que insiste em associar Belém ao improviso. "Estão vendendo uma imagem de um povo explorador, despreparado, o que é injusto. Belém está tentando se organizar e merece ser tratada com seriedade."
Para ele e para Ana Toni, a COP30 é mais do que um evento: é uma chance histórica de colocar a Amazônia no centro das decisões ambientais do planeta. Mas isso exigirá mais do que planejamento: exigirá respeito. "Não se trata de defender abusos. O que a gente quer é mostrar a realidade como ela é. (…) Belém está se organizando. E merece respeito", finaliza Bentes.
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