Como deve ser a magistratura no século XXI? É esta a discussão que será travada entre magistrados de todo o país em novembro, aqui em Belém, durante o Congresso Nacional de Juízes, que está sendo elaborado pela Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) em parceria com as associações estaduais dos magistrados. O presidente da AMB, desembargador Nelson Calandra, esteve em Belém na semana passada, onde se reuniu com os dirigentes locais da magistratura, e também com os presidentes dos tribunais de Justiça e governador do Estado.
Calandra afirma que sua gestão trabalha incessantemente pela interiorização do Judiciário e na busca constante de interlocução entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. A modernização da magistratura é o passo fundamental para que a sociedade tenha acesso ao Judiciário, segundo o presidente da AMB, que concedeu entrevista às repórteres Aline Brelaz e Cintia Magno, onde Calandra também fala sobre a dificuldade do ofício dos juízes em todo o país e critica a atuação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Leia a seguir:
P: A AMB vai realizar um evento em Belém, em novembro, qual a importância desse encontro de magistrados para o país?
R: O evento envolverá cerca de 1.5 mil magistrados de todo o Brasil para tratar do que deve ser a magistratura do século XXI. Moderna e comprometida. A escolha do Pará se deve ao trabalho importante desenvolvido pelo colega Heyder Ferreira (presidente da Associação dos Magistrados do Pará - Amepa), pelo tamanho e importância estratégica que tem para o país o Pará e não fosse um país, seria um Estado, tal sua importância. A ideia é trazer para cá um debate que interessa a todo brasileiro, como modernizar a magistratura. Em 2011, em Brasília, tivemos uma comissão no Senado e Câmara para aprimorar a
justiça no Brasil.
O Judiciário é constantemente acusado de morosidade, que lida ainda com um monte de papel, enquanto os setores da sociedade estão totalmente informatizados. A mudança de paradigma no Judiciário exige investimento, especialmente, aqui nesta região. A intenção é discutir a justiça moderna, mudanças nos códigos de Processo Civil e Penal, o que será o Estatuto da Magistratura brasileira, a função do CNJ, relacionamento com advocacia, Ministério Público, poderes Legislativo e Executivo. Será um debate muito amplo e para isso traremos para cá as maiores expressões brasileiras em matéria de cultura jurídica no Brasil.
Na oportunidade vamos visitar escolas para falarmos sobre justiça para os estudantes do ensino fundamental e ensino médio.
P: Essa comissão na Câmara de Deputados e Senado Federal trata da reforma dos códigos Penal e Civil?
R: Nós pretendemos atuar reformando pontualmente alguns aspectos que o povo brasileiro já não aguenta mais. Por exemplo, assassinato de autoridades. Temos que combater essas atrocidades cometidas contra juízes, jornalistas, promotores, inclusive, no Pará. Não podemos combater essas organizações criminosas com um Código Penal da década de 1940. Para enquadrar a quadrilha que assassinou a juíza Patrícia Acyoli, no Rio de Janeiro, em agosto de 2011, temos ali a mesma lei que punia alguém que roubava um cavalo do tempo do meu avô. Isso é uma gravidade completa. Organizações criminosas dentro de presídios coordenando execuções de juízes e promotores, jornalistas. Temos que parar, barrar isso.
Precisamos de rigor penitenciário, penas efetivamente cumpridas, onde presídios não sejam transformados em depósitos de presos. Se violam os direitos humanos dos presos, os maltratam dentro dos presídios, eles não terão nenhuma chance de reinserção social, que saem do presídio vão agredir novamente a sociedade, até mais gravemente ainda que antes.
P: Efetivamente como transformar a justiça em menos morosa, mais eficiente para a sociedade?
R: Todo o processo tem de ser mudado. Tem que haver investimentos em contratação de novos servidores, juízes, reciclagem dos servidores, programas de atualização do Judiciário.
P: Essa realidade de um Judiciário ultrapassado é em todo o país?
R: Olha, em São Paulo houve uma época em que a verba de modernização constante no orçamento do Tribunal de Justiça era R$ 1. A gente até sorri quando fala em uma coisa dessas, mas não faz nem dez anos dessa realidade. Como um investidor estrangeiro vai olhar para um país que investe R$ 1 em modernização do Judiciário? É preciso mudar, discutir esse tema de modo mais profundo com a classe política. Judiciário rápido, que seja capaz de atender aos reclamos da sociedade, precisa ter um amparo. Judiciário é muito mais que um juiz com um martelo na mão batendo sobre uma ferramenta na mesa. Tem que ser amparado por outros segmentos, como uma polícia eficiente, um Ministério Público e Defensoria Pública equipados, uma advocacia comprometida, vinculada ao compromisso ético, forte.
P: Os casos de corrupção no Judiciário também serão discutidos?
R: Os casos de corrupção no Judiciário são casos isolados, comprovados pelo próprio CNJ. O Coaf passou dez anos investigando os magistrados e ficou comprovado que 99.99% dos juízes e desembargadores são honestos. O CNJ mandou monitorar a vida de 217 mil brasileiros. Foram dez anos de monitoramento. Foram encontradas 326 pessoas com movimentação atípica. Quando foram apurar a maior parte dos fatos que envolvia magistrados já havia sido excluído da carreira, perdido o cargo e sido condenado criminalmente. Os que restaram, muitos deles são servidores, não juízes do tribunal do Rio de Janeiro e são funcionários que na vida profissional anterior haviam trabalhado no mercado de dólares, portanto, nenhuma reação com o tribunal. Passou uma ideia de violação que não existia e não existe.
P: Mas, de certa o monitoramento foi bom para a magistratura, já que comprovou que apenas a minoria se corrompeu, que é a exceção?
R: É, neste aspecto sim. O que existe são exceções, que são punidas, excluídas e isto já fazia antes do CNJ existir. O CNJ é importante, mas deve ser um órgão plural que não deve falar por uma boca só. Tem que falar através de todos os seus membros e plural, transparente e democrático, como é dever de cada um de nós. Para investigar e punir os magistrados existem as corregedorias dos próprios tribunais.
P: Mas, o senhor bem sabe que em muitos casos as corregedorias dos tribunais não atuam como deveriam. Há casos em que sequer aceitam instaurar a investigação para apurar alguma denúncia contra juízes...
R: Mas, a questão não é essa. É possível que isso ocorra. O fato é constitucionalmente a função do CNJ não é essa de agir como está agindo, fazendo caça às bruxas. Primordialmente, a função do CNJ é contribuir com a gestão administrativa e financeira dos tribunais. Seria muito interessante, por exemplo, que o CNJ fizesse cursos especializados na área de gestão financeira, administrativa para acompanhar os presidentes dos tribunais juntos aos governadores para que pudesse promover mais investimentos. Isto tudo é uma questão política o encaminhamento de uma lei orçamentária anual, lei de diretrizes orçamentária, seria muito interessante se o CNJ se fizesse presente nestes momentos, porque este é o papel real do conselho. Contribuir nas negociações com os poderes Legislativo e Executivo. Muitas vezes as corregedorias são muito mais rigorosas que o CNJ.
P: Mas, quando as corregedorias não funcionam o CNJ não passa a ser fundamental?
R: Lógico. É o que nós queremos que se recorra. Quando um juiz decide, ele não está preocupado em agradar a opinião pública. Ele julga em cima de provas, de fatos. O problema é que os juízes atuam naquilo que diz a imprensa e aquilo que dizem os autos. A justiça tem que dá o veredicto técnico. É preciso materialidade, prova de autoria. O processo do mensalão, por exemplo. A opinião pública quer ver todo mundo condenado. Mas, dentro do processo tem que se verificar se o Ministério conseguiu provas suficientes para condenar os réus, porque se não tiver, com certeza eles serão absolvidos por falta de provas consistentes. A justiça convive com isso. Para condenar não basta apenas a vontade da opinião pública.
P: O senhor acha que a forma como foram divulgadas as informações sobre desvios dos tribunais pelo CNJ prejudicou a imagem da magistratura?
R: Eu fui auditor financeiro de banco e muitas vezes inspecionava bancos grandes e encontrava uma série de irregularidades. Imagine se eu viesse fazer uma inspeção, como fiz aqui em Belém em um grande banco e chegasse aqui no jornal e publicasse o relatório da auditoria para o povo saber. O banco faliria no dia seguinte.
Porque banco se nutre de confiança e o Judiciário também se nutre de confiança. Ocorreram algumas declarações por parte do CNJ, um órgão que deveria defender a independência, autonomia do Poder Judiciário e levar a população a acreditar que nós temos aqui um estoque de maldade e de bandidos. Não existe isso. Abalou a credibilidade do Judiciário. Para se ter uma ideia, mais de 68 milhões de brasileiros bateram nas portas do Judiciário e mais de 24 milhões de sentenças foram dadas em 2011. Uma coisa é o debate na mídia e outra é a realidade.
P: Vocês pretendem expor todos esses aspectos à sociedade a partir do congresso?
R: Por isso, não vamos fazer um congresso fechado no centro de convenções. Vamos participar de sabatina com estudantes, mostrar a cara do Judiciário nas escolas. Queremos desenvolver uma capilaridade maior na sociedade. Sabemos que as críticas existem, fazem parte da nossa atividade. Também somos vítimas, temos registro de assassinatos de promotores, de juízes, um deles aqui no Pará, em pleno exercício de sua função. Temos que nos unir e esse congresso é uma iniciativa para mostrar nossa boa vontade com o povo brasileiro.
P: A realidade da justiça nos Estados é diferente dos outros órgãos da justiça federal?
R: A justiça dos Estados vive um paradoxo. Ela tem uma missão enorme para realizar e o governo federal pouco ou nada investe nos tribunais estaduais. No próprio CNJ temos quinze cadeiras e a maior justiça do país que é a estadual, só dispõe de duas cadeiras. Temos no CNJ pessoas que nunca julgaram ninguém pra julgar juízes, promotores, advogados, representantes de Câmara de Deputados e do Senado. É preciso que a justiça estadual não fique limitada a duas cadeiras, sem voto suficiente para julgar de forma adequada as questões da magistratura estadual. (Diário do Pará)
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