No momento em que o Brasil discute a possibilidade de finalmente trazer à tona todos os fatos ainda nebulosos do período da Ditadura Militar e entender o quanto a violência, escancarada ou indireta, ainda afeta a vida dos que sofreram torturas, perseguições, censura, cassações ou outro tipo de arbitrariedade no regime ditatorial, os relatos dos torturados começam a ser investigados mais profundamente por psicólogos e psicanalistas interessados em contribuir com a Comissão da Verdade. É o caso da coordenadora do Grupo de Trabalho Direito à Memória e à Verdade, Jureuda Guerra, psicóloga especialista em saúde mental e pública e mestranda em psicologia social. Ela lembra que os traumas e sequelas físicas e emocionais ainda acompanham as vítimas da Ditadura e os parentes mais próximos. Por isso é necessário cada vez mais elucidar fatos sobre os anos de chumbo. Falar sobre o assunto é imprescindível para que os traumas deixados pelo regime militar se tornem públicos - e é por meio da subjetividade que a psicologia tentará ajudar a sanar os abalos emocionais que perduram na sociedade brasileira. “Nós somos uma sociedade adoecida, que banaliza a violência e tenta resolver as coisas de uma forma pessoal. Vivemos hoje práticas de torturas que, eu não tenho dúvida, são remanescentes da Ditadura Militar”, ressaltou Jureuda Guerra em entrevista cedida ao DIÁRIO, através dos repórteres Ismael Machado e Thamires Figueiredo. Confira:
P: Por que uma comissão pela verdade da psicologia?
R: Por que nós somos uma geração influenciada. Uma geração que não podia falar nesse assunto. Porque a gente observou que nesses 40 anos de Ditadura, ou então vamos falar só de 85 pra cá, ou de 79 com a Lei da Anistia, mesmo assim o medo foi instituído. As pessoas não falavam nisso. E eu fui observando, como trabalhei na área de saúde mental, que as pessoas iam dizendo que era um delírio e que quando eu começava a atender um ou outro paciente na casa mental e eu vi que o surto se deu, que a pessoa estava em tratamento mental, mas que a base não era pura ficção, puro delírio, tinha uma base do adoecimento em função de uma perseguição.
P: Traumas desse período?
R: Traumas desse período de torturas, ou em si ou de familiares. E a aí eu fui observando isso e me toquei, mas não era uma coisa que a gente pensava (...). Desde o governo Lula foi se pensando e construindo a possibilidade de se criar a nossa Comissão de Direito à Memória e à Verdade e a presidente Dilma conseguiu instituir de fato. A gente pensou no que a psicologia tem a ver com isso e como é que a gente pode contribuir, ou psicólogos que tiveram envolvimento durante a Ditadura, psicólogos que foram vítimas da Ditadura ou que atenderam no consultório pessoas que a gente possa juntar isso e contribuir para a Comissão Nacional [da Verdade]. A nossa intenção é possibilitar a Comissão Nacional.
P: E de que forma vai acontecer essa junção?
R: A gente tem um formulário no nosso site do CRP10 para as pessoas se inscreverem, porque existe uma escuta diferenciada. Não é uma escuta de muito tempo, como a gente vai ter um prazo. Pessoas que tenham relação com a Ditadura se inscrevem nesse site e a gente tem uma equipe de psicólogos clínicos que estará fazendo uma escuta das pessoas que quiserem fazer seu relato sobre a Ditadura. A gente chama de clínica política, que foi pensada pelo Grupo Tortura Nunca Mais, da Cecília Coimbra, que também é psicanalista.
P: E se a gente for falar no coletivo nacional, digamos uma memória nacional em relação a esse período, como é que vocês avaliam que a sociedade brasileira viveu, conviveu e convive com isso. Quais os traumas que a democracia brasileira tem em virtude disso?
R: Nós somos uma geração que precisa falar desse assunto, porque os nossos pais morriam de medo quando viam um carro da polícia, quando tinha mais de cinco pessoas juntas. Transformaram e ainda fazem isso. Eu acho que a sociedade brasileira tem isso: ela criminaliza os movimentos sociais e, para mim, isso é uma herança da Ditadura. ‘São os anarquistas, os terroristas, os baderneiros’.
P: Ou seria a forma que a Polícia Militar trata isso?
R: Há práticas de torturas ainda existentes em qualquer delegacia. Sabemos de pessoas que serviram o Exército na região da Guerrilha Araguaia que estão espalhados ainda ocupando cargos de secretários de estado de segurança pública, como é o caso do secretário de Alagoas. A gente vive hoje práticas de torturas que são remanescentes da Ditadura Militar, eu não tenho dúvidas disso.
P: O que a tortura pode trazer para alguém?
R: São as mais variadas formas de traumas. São pessoas que vão ter, claro, consequências emocionais na sua forma de lidar com as suas relações afetivas. Nós somos uma sociedade adoecida, que banaliza a violência e tenta resolver as coisas de uma forma pessoal. A gente tem medo dos aparatos de justiça e criou no nosso subjetivo, nas nossas relações, que a Justiça não resolve, que ela é pra poucos. E isso pode ser uma consequência histórica, por que a gente tá falando da Ditadura. A gente pensa de 1964 pra cá, mas o bacana da Lei da Comissão da Verdade é que ela vai lá pra trás, ela vem desde a Era Vargas. Então vai pegar um período longo da história brasileira.
P: Quando se fala de sociedade adoecida, o Brasil está atrasado em relação ao Uruguai, Argentina, Chile. Ainda vive a dicotomia de que não deve falar sobre isso por que é revanchismo. Como você avalia isso?
R: Eu acho um grande equívoco. Porque a gente negou que era um estado racista, mas como tratou os negros a partir de 14 de maio de 1888? Como tentou embranquecer a raça brasileira quando a gente autorizou a imigração europeia e nega o negro até hoje? A gente trata a política de cotas como privilégio, quando não é. É uma reparação. Essa é a formação do povo brasileiro. Por que foi tirada a palavra justiça da Comissão Nacional da Verdade? Porque a palavra justiça incomodava. Por que a gente ainda quer falar sobre isso?
P: Por que incomodava?
R: Incomoda por que a gente quer uma justiça mais ou menos. Só quer saber onde estão os corpos dos desaparecidos, não quer punir e nem dizer quem são os torturadores. A Lei de Anistia era geral e irrestrita para todo mundo, para os torturadores e torturados. Ouvi uma frase que muito me impactou: só existiu torturador por que tinha torturado. Os terroristas, os comunistas estavam fora de uma ordem brasileira já estabelecida. Mas quem estabeleceu essa ordem? Isso é um golpe.
P: O que esse evento significou?
R: A gente tira do âmbito só da Justiça, como se fosse uma coisa só para ser resolvida pelo revanchismo. As pessoas que promoveram a tortura, muitos que estavam só cumprindo ordens e tiveram que cometer essas atrocidades, conviveram com isso e têm traumas. Esses traumas, que se estabelecem após um evento marcante, são chamados de estresse pós- traumático. Tem traumas que o indivíduo carrega consigo por muito tempo. Eles costumam nos acordar de madrugada. Fazem com que se tenha sonhos recorrentes.
P: O Estado dá possibilidade para as pessoas tratarem esses traumas?
R: Não, porque ninguém falava nesse assunto. Um monte soldados, de pessoas da época, está sofrendo com isso e a gente precisa falar pra eles que eles têm que falar, por que é através da fala que você trabalha a perspectiva do não adoecimento. A gente quer possibilitar essa escuta, essa subjetividade que foi trancafiada e que formou a nossa geração, com medo, sabendo que não existe justiça no Brasil, sabendo da impunidade.
(Diário do Pará)
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