Eles são usados como antitranspirantes, odorizadores de ar, animadores de festas e, surpreendentemente, também como drogas caseiras. Desodorantes, aerossóis, buzinas a gás e outros tipos de spray contêm, em sua maioria, substâncias químicas semelhantes. Não se sabe ao certo quando ou onde. No entanto, alguém descobriu que aspirar estes solventes, em pano embebido ou saco plástico, causa efeitos comparáveis ao consumo de inalantes como o lança-perfume. A informação foi passada adiante e, hoje, a “brincadeira” é imitada por incontáveis curiosos ao redor do mundo. Em Belém, muitos jovens estão reinventando o uso de produtos domésticos baforando gases pela promessa de encontrar a felicidade engarrafada. Há risco de intoxicação, vício e até de morte, alertam especialistas.
De sete adolescentes, entre 16 e 17 anos, ouvidos pela reportagem do DIÁRIO, cinco assumiram que já inalaram, ao menos uma vez, desodorante spray. Eles não aparentam ser viciados, não são pobres, nem enfrentam os riscos de morar na rua. Pelo contrário. São alunos do convênio de uma escola do centro da cidade que, basicamente, atende ao público pertencente à classe média alta. A prática, segundo os entrevistados, é comum entre alunos de vários colégios considerados “de elite” da capital. O uso frequente de drogas como álcool, cigarro e maconha, entre grupos de amigos, é mais comum do que muitos pais sequer desconfiam.
“Tu enrola um pano na mão, espirra o desodorante e depois suga com a boca. Sente o efeito na hora”, esclarece N.O, 16 anos. Os entrevistados garantiram que a prática de baforar sprays, entre eles, não é frequente e que a brincadeira é feita por curiosidade. “O problema é tu começar com desodorante, buscar algo mais forte, aí tu vai pra gás de buzina ou outras drogas mais potentes”, conta L.M, 16 anos, que confessa já ter experimentado aspirar “Bom Ar”. De clubes sociais frequentados pela alta sociedade a praias de balneários concorridos, a busca por inalantes, ao contrário do que muitas imaginam, não é algo do passado ou restrito a jovens em situação de vulnerabilidade social.
“Tu fica com vontade de girar, rodar e rir sem parar. A voz fica estranha e tu não sentes os braços ou as pernas. Mas o efeito dura muito, em cinco minutos tu já fica bem de novo”, explica L.M. De acordo com os jovens, gases de isqueiro e de buzinas causam efeitos ainda mais fortes no organismo. “Eu acho que não tem problema, se tu não usar direto. Às vezes tu não tem dinheiro pra comprar outra coisa e usa o desodorante mesmo”, diz J.V, 16 anos. Ele fala que não é dependente, mas admite que já “cheirou” antitranspirante diversas vezes.
Segundo E.P, 17 anos, as substâncias contidas nos sprays não são as principais fontes de diversão em festas ou reuniões de amigos. “Bebida e cigarro são até comuns já. Fora isso, rola muita maconha, pó, às vezes até dentro de casa. Eu sei de escolas que tem até traficantes estudando lá, pelo menos tinham”, denuncia. Segundo a adolescente, alguns traficantes aproveitam a proximidade dos colégios para se disfarçarem de ambulantes ou autônomos e comercializam seus produtos às escondidas. Para J.V, a discussão a respeito do uso de drogas deveria ser mais aprofundada para que o diálogo com os pais fosse feito de forma franca. “Não sou a favor da legalização, mas apoio a descriminalização”, diz.
ALERTA
A prática não é local ou isolada. Uma rápida pesquisa na internet mostra que casos de jovens e adolescentes brincando de baforar sprays já foram identificados em Estados como Goiás, Paraná, São Paulo, Rio de Janeiro e mesmo fora do Brasil. Sem uma legislação para regularizar a venda, feita de forma livre, o uso indiscriminado destes produtos é difícil de ser controlado ou identificado. E, pior, ele ocorre embaixo do teto de pais desavisados e, em certos casos, dentro das escolas.
No Youtube, um dos mais populares sites da internet, é possível encontrar diversos links de vídeos de jovens e adolescentes aspirando sprays ou desodorantes. Os títulos, também em inglês, sugerem que o mesmo que acontece aqui, acontece em outros países. Todos eles foram removidos do servidor e encontram-se indisponíveis, porém, ainda é possível ler comentários como: “eles jogam o gas do rexona na sacola prende e depois puxa isso ai da mó brisa (sic)” ou “bota numa tualha com duas voltas e chera (sic)”. Em fóruns de discussão na web, publicações datadas de anos atrás revelam que a prática não é recente.
Segundo o VI Levantamento Nacional sobre o Consumo de Drogas entre Estudantes do Ensino Fundamental e Médio da Rede Pública e Privada nas Capitais Brasileiras, o total de estudantes que relataram uso no ano de qualquer droga (exceto álcool e tabaco) foi de 6,2% para a rede pública e 8,7% na rede particular de Belém. O estudo foi produzido pelo Ministério da Saúde e Secretaria Nacional Antidrogas (Senad), tendo sido concluído em 2010.
Na capital paraense, 5,6% dos estudantes afirmaram que já consumiram inalantes, pelo menos, uma vez na vida, segundo o estudo. Depois de álcool (33,1%) e tabaco (8,9%), os inalantes aparecerem no topo do ranking de drogas utilizadas ao menos uma vez por ano, 3,1% dos alunos assumiram usar esporadicamente estes solventes. Em Belém, a pesquisa foi feita através de questionário aplicado a 2.067 estudantes, sendo 1.030 da rede pública de ensino e 1.037 da rede particular.
‘Festa não bomba’
“Sem a bebida, eles falam que a festa tá fraca, que não vai bombar. Sempre tem pelo menos um jovem que bebe tanto que precisa ser levado para o hospital ou volta carregado para casa. Eles não costumam ajudar os amigos, deixam lá e dane-se”, conta uma cerimonialista, com dez anos de mercado, que conversou com o DIÁRIO. Surpreendentemente, segundo a cerimonialista, em 90% dos casos são os pais que pressionam a organização para liberar o bar para os adolescentes em festas de 15 anos.
De acordo com a cerimonialista, o consumo de drogas mais pesadas como cocaína ou os próprios inalantes, se ocorre, não é de maneira visível. “Eu acho que deveria ter mais batidas nessas festas para fazer o flagrante desses jovens consumindo álcool. Nós não podemos fazer muita coisa, os pais precisam se conscientizar mais. São eles que pagam pela festa”, pondera.
Risco de morte
No recipiente de diversos sprays domésticos há alertas para que o gás não seja ingerido e orientações para o uso do produto de maneira correta. No entanto, não há informações sobre os efeitos que uma possível inalação causaria no organismo. Com R$ 8, qualquer pessoa pode adquirir um antitranspirante em uma farmácia, supermercado ou loja de conveniência. O diretor do Centro de Informações Toxicológicas (CIT) do Hospital Universitário João de Barros Barreto (HUJBB), Pedro Oliveira Pardal, diz que os pais devem ficar atentos e que a brincadeira pode levar à morte.
“Estes sprays contém substâncias, como o polueno, o benzeno e o álcool, semelhantes às encontradas em solventes como a cola de sapateiro. São produtos que contém clorofórmios e gases que, em grande quantidade, são tóxicos, como a amônia e o cloro. Os efeitos vão de alucinações graves à morte por parada cardíaca”, explica o diretor do CIT. Segundo Pardal, a maioria dos casos de intoxicação que chegam ao Barros Barreto são decorrentes da ingestão de solventes encontrados em casa.
Desmaio seguido de vômito reprimido, ação direta dos vapores dos sprays sobre os pulmões e taquicardia representam riscos reais tanto para quem faz uso isolado quanto para os usuários frequentes dos solventes. “O alerta precisa ser feito porque esse é um problema muito sério. Pais que tenham crianças pequenas devem deixar estes produtos em spray foram do alcance delas. No caso dos jovens, o ideal é conversar. Como o efeito passa rápido, a dependência psicológica do uso prolongado faz com que eles busquem outras drogas”, explica Pedro Pardal.
Vício e prostituição
O psicólogo Nelcy Colares, especialista em tratamento e prevenção da dependência química, já atendeu cerca de 8.000 pacientes ao longo da carreira. Ex-dependente químico, Nelcy é um dos vice-diretores do Centro Nova Vida. Há 17 anos, ele trabalha para minimizar e corrigir as consequências das escolhas erradas de milhares de jovens e adolescentes.
De acordo com Colares, a prática de inalar sprays caseiros não é nova e já houve, inclusive, um desodorante que foi retirado do mercado por conta do problema. “A facilidade de ter uma overdose consumindo esse tipo de produto é maior do que se a pessoa aspirasse cocaína, por exemplo. A droga vai direto para a mucosa pulmonar e o efeito é muito rápido. Os riscos de ter um Acidente Vascular Cerebral (AVC) ou uma parada cardiorrespiratória são grandes”, alerta.
Segundo o psicólogo, álcool e maconha, agora misturada a derivados da cocaína, como o ópio, continuam sendo as principais portas-de-entrada para drogas mais nocivas. Entre as histórias chocantes que Nelcy já ouviu estão as de dezenas de rapazes e moças que recorreram à prostituição para sustentar o vício. “Teve um rapaz que, para não ser pego pela polícia, engoliu o pacote de cocaína. Depois, ele tomou laxante, defecou o material e consumiu a droga que estava nas próprias fezes”, conta.
Para o especialista, a sugestão é uma só. “Não experimente. Esse discurso que diz que droga é ruim é balela. A pessoa vai experimentar, vai gostar e vai querer repetir. É melhor não ceder à curiosidade e à pressão do grupo porque as consequências a curto, médio e longo prazo, sem dúvida, não compensam”, completa.
EFEITOS DO USO
- Liberação de adrenalina e sensação de euforia;
- Impulsividade;
- Depressão do cérebro;
- Perda da coordenação motora;
- Perturbações auditivas e visuais;
- Voz pastosa, fala embaralhada;
- Náuseas, espirros, tosse e salivação;
- Dor de cabeça, cansaço, confusão mental, inconsciência e até convulsões, em casos mais severos.
OS RISCOS
- Dependência psicológica;
- Estímulo ao consumo de drogas ilícitas;
- Risco de paradas cardíacas;
- Desenvolvimento de problemas renais;
- Riscos de asfixias;
- Ansiedade e irritabilidade decorrentes da abstinência.
- Destruição de neurônios e lesões cerebrais.
APOIO
O Centro de Informações Toxicológicas (CIT) oferece atendimento gratuito a familiares e usuários de drogas. O serviço, feito especificamente por telefone, explica como identificar e que medidas devem ser tomadas para tratar a dependência química.
Telefones: 0800-722-601, (91) 3249-6370 e 3259-3748.
(Diário do Pará)
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