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Pará é líder no ranking do trabalho escravo

As cartas sempre diziam que tudo daria certo. E deu. Durante quase 10 anos, Marinalva Dantas, auditora fiscal do Ministério do Trabalho, integrou o grupo de combate ao trabalho escravo no Brasil, que libertou 50 mil pessoas no País, desde sua criação, em

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As cartas sempre diziam que tudo daria certo. E deu. Durante quase 10 anos, Marinalva Dantas, auditora fiscal do Ministério do Trabalho, integrou o grupo de combate ao trabalho escravo no Brasil, que libertou 50 mil pessoas no País, desde sua criação, em 1995.

Mais de um século após a assinatura da Lei Áurea, ela afirma que ainda há cerca de 150 mil pessoas trabalhando em regime de escravidão no Brasil. Marinalva é considerada uma das maiores combatentes da escravidão contemporânea e referência na luta por Direitos Humanos.

Tudo começou na década de 1960, quando ela, menina de família muito pobre, do interior da Paraíba, foi morar, aos 3 anos, com os tios, para ser tratada de crise grave de lombrigas. Ela não sabia, mas ali estava a grande oportunidade da sua vida.

Como os tios tinham condição financeira muito melhor do que seus pais, ela teve acesso à saúde, segurança e educação de qualidade.

Foi morar em Natal, estudou em bons colégios particulares e se formou em Direito, na Universidade Federal do Rio Grande do Norte - realidade bem diferente dos seus três irmãos, que moravam com os pais no interior e tinham de trabalhar desde cedo. Sem essa trajetória, Marinalva nunca teria feito tudo o que fez.

Dos 31 anos em que exerce a função de auditora, ela se dedica a combater o trabalho escravo e o infantil há mais de 20. Quando começou na luta contra a escravidão, eram cerca de 40 profissionais espalhados pelo País, em Estados como Mato Grosso, Maranhão, Rio Grande do Norte, Ceará, Piauí, Rondônia, Santa Catarina e Pará.

Graças a seu empenho e dedicação, ela libertou mais de 2.300 trabalhadores escravos, em fazendas e usinas dos rincões do Brasil. Eram homens, mulheres e crianças forçados a exercer funções pesadas, sem dignidade, em lugares onde há pouco controle sobre as relações de trabalho, abusos, humilhações, torturas e até assassinatos.

Deixou de lado a própria família e arriscou a vida enfrentando pistoleiros e fazendeiros, para libertar pessoas que sobreviviam em péssimas situações. Atualmente, ela coordena a equipe de combate ao trabalho infantil, outra missão pela qual tem recebido elogios de especialistas de todo o mundo.

Hoje aos 61 anos, Marinalva já poderia ter se aposentado. Mas a vontade de continuar combatendo o trabalho escravo e o infantil falou mais alto.

Pela bravura, coragem e entrega a causas tão nobres, Marinalva teve sua vida e seu trabalho contados no livro “A Dama da Liberdade”, do jornalista Klester Cavalcanti, diretor de Redação do DIÁRIO.

Nesta entrevista exclusiva, ela conta um pouco sobre o que viu e viveu nas operações pelo Brasil, muitas delas realizadas aqui, no Pará. E fala, também, da dor de abrir mão da relação com a família para se dedicar ao trabalho, da infância pobre e de como aprendeu a ler as cartas de tarô com uma tia - as tais cartas que diziam que tudo daria certo.

Diário do Pará: Por que você decidiu combater o trabalho escravo?

Marinalva Dantas: Era preciso. Não existe nenhuma pessoa que mereça ser insultada, humilhada, ofendida, agredida física e moralmente. E nem todos têm coragem, aptidão e firmeza para estar em lugares onde tudo isso acontece. É um trabalho cansativo e arriscado. Muitos fiscais desistiam logo na primeira operação.

Diário do Pará: O que mais marcou você nessas operações?

R: Ver crianças escravizadas me deixava paralisada. Não acreditava que alguém pudesse explorar uma criança de uma forma tão brutal. Criança é sinônimo de alegria e sonhos. As crianças escravizadas não têm nada disso. Outra situação que me deixava muito mal era saber de trabalhadores escravos assassinados. Era muito pesado.

Diário do Pará: Em algum momento, sentiu medo?

R: Nunca fui ameaçada cara-a-cara. Por que sempre fazíamos as operações com a colaboração de policiais federais. Mas a cidade que mais temi foi Redenção, no Pará. Eu me sentia insegura. O clima era muito pesado, víamos homens andando armados nas ruas, olhando para nossa equipe de forma estranha.

Diário do Pará: Onde ocorreu o maior número de operações?

R: Aqui, no Pará. O Estado ocupa o primeiro lugar no ranking do trabalho escravo no Brasil. É uma triste realidade. Principalmente, nas cidades do sul e sudeste, na região de Marabá.

Diário do Pará: Qual a sua avaliação do trabalho escravo hoje?

R: Hoje, é mais raro. Está mais perto, até mais urbano. É possível conseguir enxergar. Mas não deixa de ser uma deturpação grande da essência humana. É quando o lucro exacerbado é mais importante do que a dignidade humana. Ninguém deveria aceitar isso. Muitas vezes, a necessidade e a falta de oportunidades acabam levando as pessoas à escravidão. Há quem morra como escravo. Outros não conseguem enxergar um futuro melhor.

Diário do Pará: Que mudanças aconteceram no País, a partir dessa realidade mostrada pelo trabalho desse grupo do qual a senhora fez parte?

R: O Ministério Público está fazendo o resgate de ex-escravos. Alguns eram libertados duas, três vezes, porque voltavam para aquela condição pelo fato de estarem despreparados para o mercado, já que quase todos são analfabetos. Eles acabavam retornando até mesmo para ter o que comer.

Diário do Pará: A senhora teve de abrir mão de muita coisa para fazer esse trabalho tão relevante?

R: Sim. De muita coisa. A maior e mais preciosa delas foi a família. Fui ausente em momentos importantes da vida do meu ex-marido (eles se separaram por causa do trabalho dela) e dos meus filhos, por causa das viagens. A gente nunca tinha muito tempo. Não se pode ser ausente durante uma década. É arriscar muito nessas relações.

Diário do Pará: A senhora se arrepende por isso?

R: Eu me arrependo por não ter sabido equilibrar o meu trabalho com a minha família. Até hoje, meus filhos (um homem, de 33 anos, e uma mulher, de 31) e meus três netos são marcados pela minha ausência. Minha filha sentiu uma solidão profunda. Não sabia se eu ia voltar bem, se ia voltar no dia marcado. Essas coisas me deixavam abatida. Sinto que deveria ter estado mais presente na vida deles. Até hoje eles sentem muita mágoa. No casamento foi difícil. Sofri com piadinhas de colegas em relação aos nossos desencontros. A união não resistiu à distância. Depois de 20 anos de casamento, nós nos separamos. Acho que não repassei nem 10% do que aprendi na vida aos meus filhos.

Diário do Pará: Do livro “A Dama da Liberdade”, consta que a senhora aprendeu a jogar cartas de tarô com uma tia. A senhora jogou cartas quando estava em operações?

R: Sim. Quando começamos a sofrer pressões, cheguei a fazer duas vezes, para ver o nosso futuro. As cartas sempre me mostravam que o grupo iria se fortalecer muito. E foi exatamente isso que aconteceu. Aprendi a acreditar nas cartas, mas nunca deixei de ter os meus pés no chão.

Diário do Pará: Atualmente, a senhora se dedica a combater o trabalho infantil. Como é essa realidade?

R: Quando começamos, havia 5 milhões de crianças trabalhando no País. Hoje, são 3 milhões. Elas estão em situação perigosa e proibida. Há 93 tipos de trabalho que o Brasil considera proibido para menores. Os mais graves são o trabalho escravo, exploração sexual de criança e adolescente e o doméstico, que é o mais comum. Todos esses são intoleráveis pela Lei.

Diário do Pará: O que ainda é preciso ser feito para mudar essa situação?

R: É preciso ter vontade dos políticos e da sociedade. Essas lutas são grandes. Mas acredito que ninguém é pequeno demais que não possa lutar pelos Direitos Humanos. Em qualquer condição e posição que ocupe, a pessoa pode contribuir muito para a igualdade humana.

Diário do Pará: Sua infância foi diferente da dos seus irmãos?

R: Tive a sorte de encontrar tios que nunca tiveram filhos. Ficaram preocupados com a minha condição. Arranjei um pai e uma mãe para cuidar de mim. Eles mudaram a minha vida. Dos meus três irmãos legítimos (ela tem mais quatro irmãos, de outra relação do pai), somente um teve estudo. Quando estamos juntos, não falamos de trabalho. A gente só ri e se diverte.

Diário do Pará: Em meio a tanto conflito e dureza da zona rural, a senhora sempre andava maquiada, com o cabelo bem arrumado....

R: Nunca deixei a vaidade de lado. Geralmente, havia três mulheres no grupo. Eu sempre era a mais vaidosa (risos). Andava com uma frasqueira importada, com perfume francês, cremes e maquiagem. Se alguém dizia onde havia um cabeleireiro por perto, eu ia lá. Gostava de mostrar aos escravos que ainda existia um mundo bonito, limpo e civilizado lá fora.

Diário do Pará: Qual a sua opinião sobre o livro “A Dama da Liberdade”, que conta a sua história?

R: É uma obra que também se transformou numa forma de combate ao trabalho escravo, explicando muito sobre o assunto. Apesar de eu não estar hoje na linha de frente, sempre serei uma lutadora, sempre presente.

Diário do Pará: Aos 61 anos, a senhora já poderia ter se aposentado desde 2010. Por que continua trabalhando?

R: O trabalho é uma coisa muito importante para a minha vida. Quando você realmente gosta do que faz, o trabalho se torna quase um tratamento. Mas pretendo me aposentar em breve.

(Michele Daniel/Diário do Pará)

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