Sete homens o seguraram enquanto ele dizia sete vezes, entre os dentes e de olhos revirados, que era o diabo. A plateia ao redor não se conteve e riu. Horas antes, de manhãzinha, havia passado com seu andar típico, de pescoço projetado para frente e sandálias arrastadas na piçarra, no rumo da Marquês. Ia comprar o pão e parecia absolutamente tranquilo.
Agora, subjugado pelos vizinhos, estava transfigurado. Ainda
assim, o riso do entorno era mais de descrença do que de nervoso. Ninguém
botava fé que o cão em pessoa pudesse aparecer por ali. Tampouco escolhesse Zé
para cavalo, logo o Zé de Deusinha. Ainda que fosse um dia de um incandescente agosto,
propício para aparição do Satanás, demoraram a acreditar.
Da porta de casa, reparei na situação pela fresta. Estava sem
camisa, a carne magra retesada, a cara suja de terra. Grunhia e se debatia dentro
das cordas de sisal que alguém tirou de uma escápula de rede para domar o
Sete-peles.
Era morador antigo, porém sempre passou batido pelo pessoal.
Não à toa, o nome dele era associado de imediato à mulher, num apagamento do
próprio ser. Zé não era apenas Zé em si mesmo. Não era um formal José, não era
chamado por um pomposo sobrenome proparoxítono. Nem atendia pelo econômico
apelido de apenas duas letras. Só não se bastava. Era de alguém, como se
sozinho não existisse, e a existência fosse mera questão de posse. Por ironia,
foi na possessão que reforçou que era Zé coisa nenhuma. Berrava com todo gás, como
nunca dantes, ser outrem.
- Sou o diabo. – Ele dizia babujado com outra voz, outro tom, outra expressão, outra força, outro trejeito e outra luz, em nada parecido com o que sempre foi: calado, quieto, sutil, invisível. De nova identidade, no entanto, agora era o antagonista de Deus, espalhafatoso, histriônico, escalafobético, exuberante, pirotécnico, exibido. Se estivesse livre, tiraria alguém para dançar às gargalhadas antes de abrir uma fenda no chão e sumir em meio à lava quente.
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Zé era um dos pioneiros da Passagem dos Inocentes. Chegou
quando era tudo mururé e as águas do Igarapé da Maria dos Anjos ainda eram
límpidas. Veio na leva de nordestinos que chegaram em Belém nos anos 1970, como
meu pai, e se acomodaram como foi possível naquele pântano de então, numa troca
extrema da seca pelo igapó. Casou-se de terno com Deusarina, a Deusinha, filha única
do icônico viúvo Fontana, também vindo do sertão e dono de uma das mercearias
mais sortidas do lugar no tempo em que essas bodegas eram melhores que os
supermercados.
Fontana andava sempre de branco, com a camisa pra dentro
das calças e meias até o meio das canelas. Uma pluma no meio de tanta lama. Ostentava
um armado topete e era reconhecido em todo o lugar pela sua velha Monark sempre
limpa e enfeitada e por expor caloteiros em um sistema de som moderno para
época instalado no segundo andar da casa; o comércio dele atendia bem com um modelo
próprio de medidas: uma quarta de café, dois dedos de mortadela, uma colher e
meia de azeite, dois palmos de corda pra varal, metade de meio pão massa fina
com manteiga, tudo adequado à miséria local.
Quando José e Deusarina se casaram, o velho era considerado
rico. E os fofoqueiros acusaram que Zé havia feito um bom negócio, porque
herdaria a venda e os terrenos que o sogro teria espalhados em outras
passagens. Na realidade, o comerciante não tinha nada além da taberna e da casinha
na esquina da Inocentes com o Beco do Arreia-Calça, que cedeu à filha antes de
morrer.
Era um casebre de madeira pintado de amarelo queimado, em
muito desbotado pela umidade, fedido de húmus e merda humana, com as tábuas
podres e soltas e o assoalho cheio de falhas tal boca banguela. Dentro, quase
nenhum móvel nem sinal de santos nem cruzes.
Chegou a quase ruína muito depois da morte de seu Fontana.
Nesse tempo, a família de Zé e Deusinha já contava sete membros com a escadinha
de filhos, todos com R na inicial dos nomes, convencionais e inventados por
misturas esdrúxulas.
Os vizinhos contam que Deusinha havia sido uma musa
incontestável. Longos e esfuziantes vestidos, manicure e pedicure em dia, muita
maquiagem e longas madeixas castanha-escuras. Fontana dava de tudo a ela. No
dia em que Zé recebeu o demônio, ela já deixara a vaidade que chamava atenção
pelas ruas da Pedreira. Restou a cabeleira comprida, mas a pobreza e as
tribulações levaram o tempo bom e parir tantos rebentos lhe transformou em uma mãe
feroz. Dia após dia, ouvia-se, na hora do almoço ou do bê-á-bá, a mulher aos berros com a renca de filhos à beira de um ataque de nervos.
De Zé, não se escutava nenhum pio. Quando se manifestava era
para surrar algum dos meninos com o cinto. Tinha olhos muito escuros de um brilho
opaco de fome, herdado pelos moleques, e um rosto alongado com zigomas
protuberantes, a boca sem lábios e dentes ruins. A voz nunca ouvi, exceto no
dia da incorporação. Parecia um ronco de porco, mas em estado normal a fala dele
era branda e pausada, de alguém que está apartado da nossa realidade, é o que diziam.
No episódio satânico, as coisas começaram com uma discussão besta,
que se converteu em gritaria da mulher e, em seguida, choro das crianças e,
mais adiante, quebra-quebra dentro da casa com a pouca louça e as panelas amassadas
da cozinha. A rua se alarmou e o casebre sacudiu, tremeu, como se fosse se
acabar de vez em uma montanha de paus úmidos e apodrecidos. O som era de 50 pessoas
numa festa, numa guerra, numa romaria, confinadas numa cova funda, amontoadas num porão de navio sufacadas em cal, numa correria de bodes contra
uma ventania em direção ao desfiladeiro.
Aos poucos, os meninos e meninas saíram para rua e Deusinha
também, que largou o encapetado a sós para que ele descarregasse o ódio, o rancor
e as ausências e escarrasse os silêncios de tantos anos e chorasse a escassez diária
no estômago. Minutos depois, a Passagem dos Inocentes inteira começou a ouvi-lo.
Primeiros os urros, depois algo similar ao latim e, na sequência, a declaração
de que era o Belzebu.
Os vizinhos entraram na casa e os primeiros foram derrubados ainda
na porta. Só na invasão em grupo é que puderam conter o irreconhecível
Zé. A muito custo os sete o imobilizaram. Deusinha olhava de longe o marido no
chão. As duas mãos dela unidas de preocupação. Foi deixado sozinho atado às
cordas no meio da rua. Dizia obscenidades, ria, xingava os moradores por nome e defeito específico.
Mandou o pastor Floriano tomar no cu e só não fez o mesmo com o velho padre Sadeck,
porque o sacerdote não chegou a tempo.
Até que começou a se acalmar e normalizou os fungados enquanto
a multidão o cercava, curiosa.
De repente, cerrou as pálpebras, como quem desfalece e parou.
Então, a mulher furou a muralha de gente e começou a desamarrá-lo sozinha.
Alguém ensaiou impedir e ouviu um deixa ela. Desatou os nós e levantou o Zé pelas
mãos. O povaréu abriu espaço e eles caminharam até a casa. As crianças entraram
ajudadas pelo irmão mais velho. A mulher trancou a porta e ninguém arredou o
pé. Especularam até o começo da noite. Era isso, era aquilo, era aquilo outro. Até
que cansaram e foram arrumar o que fazer.
Zé surgiu de manhã cedinho, com a trouxinha de mercadorias e
uma rede nas costas, pronto para mourejar com seu passo lento de mascate sob o
olhar dos poucos moradores acordados àquela hora. Seguiu silencioso, como sempre.
Era dia de missa, mas ninguém da rua foi.
Anderson Araújo é escritor, jornalista da equipe do Dol e
escreve às quintas.
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Outros contos como esse podem ser lidos no blog Daqui te Escrevo.
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