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DAQUI TE ESCREVO

Como era bela e banguela aquele quase primeiro amor

O que trazem os reencontros? Mais traumas ou novas chances? Leia o conto de Anderson Araújo, o jornalista e escritor por trás da Daqui te Escrevo. Os textos literários da coluna são publicados a partir de hoje às sextas-feiras no DOL. Leia!

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Loira, esguia, cara de brava. Chamava atenção ainda criança, apesar da falha na arcada superior, consequência de um desmaio por anemia. Da queda nasceu o rombo naquela beleza indomável e sobressalente na multidão morena que a cercava.

Em um dia de fevereiro qualquer, ela reparou nele, um sujeito torto de tão magro. Um amigo em comum os aproximou e eles conversaram. A menina se bestificou com o palavrório manso e a firmeza na voz do moleque.

Por parte dele, a beleza desbotada dela já o havia arrebatado. Havia quase um ano, ele prestou atenção nela durante um jogo de vôlei na quadra da escola e sentiu o peito se espatifar. Mas, nunca chegou nem perto da nova musa.

Quando decidiram se encontrar, olhos nos olhos, dente por dente, o destaque do incisivo ausente o perturbou. Não tirava os olhos daquela boca, que fechada era de mel e aberta era a casa de um gato preto e diabólico.

Despediram-se, mãos nas mãos, aperto firme e delicado. Foram-se sem beijo, sem acordo, sem promessas, apesar de que o próximo encontro estava implícito.

Nunca aconteceu.

Ela ainda enviou a ele cartinhas, recados: não teve jeito. O ex futuro namorado se encolheu na carapaça de tatu-bola. A loirinha demorou para compreender o motivo. Jurou um dia dizer poucas e boas àquele ridículo, no entanto, deixou pra lá.

Anos depois, namorou o cara mais lindo do cursinho para afagar a própria autoestima. Não demorou para entregar a virgindade ao galãzinho e foderam muitas vezes, felizes. Até ela cansar da plasticidade, das repetições e daquele pau que não a preenchia. Saiu fora sem dar maiores explicações.

Mais dois pares de anos à frente, casou-se por amor com um bruto. Viveu os apertos que a vida traz com algum controle, inclusive quando perdeu um dos meninos, afogado em um julho de férias. Refez-se do pranto na marra e guardou a imagem viva do garotinho. Assim, vedou aquele buraco dentro da alma do jeito que pôde. Encontrou conforto no marido que, por aquele tempo, já estava com a cabeça nevada e coração amolecido sem saber do câncer que lhe comia a próstata e lhe levaria em menos de dois anos.

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As tragédias e poucas alegrias ao longo dos anos a transformaram. A pobreza extrema, a falta de perspectiva, outro filho perdido, agora pra cocaína, o diabetes e a solidão, o estresse no caixa de supermercado.

Foi com Deus que se apegou ao entrar na Igreja Universal do Reino de Deus. Teve uma convulsão no meio do templo. Ou um desmaio de fome ou um pico de pressão? Não soube. Acordou amparada pelos irmãos e pôs na conta do espírito santo.

Já estava habituada ao ambiente castiço, fizera amizade com as crentes mais velhas, sentia-se à vontade, acolhida, em paz. Até que, em um sábado, na cerimônia do óleo ungido para pagamento de dívidas, um ódio antigo veio à tona. Viu um fantasma: era o moleque, o torto, o da escola. Agora reencarnado no filho de uma das fiés, velha e barriguda, de enormes cabelos quase até a panturrilha. Era igual àquele outro, como se fosse o mesmo, trazido do passado.

Voltaram antigos medos e as velhas perguntas.

Tinha sido mesmo por causa do dente? Preferia pensar que fora a timidez, afinal, ele andava tão encolhido, tão sozinho pelos cantos. Às vezes, imaginava uma homossexualidade. Só podia ser veado, aquele filho de uma puta, pensava ela, às vezes com raiva. “Já deve ter morrido”, torcia.

Notícias dele ela nunca teve. Até gostaria só que nunca chegou nada. Não teve conhecimento que, por exemplo, depois do Segundo Grau, ele partiu para outra cidade para fazer Direito, nem que implodiu a timidez, ganhou algum dinheiro, contraiu (como uma doença) matrimônio e se divorciou (como uma cura), nunca teve filhos.

Depois de ter corrido o mundo, ele voltou para se estabelecer no lugar em que nasceu, já sem o entusiasmo da juventude. Não fazia mais questão de muita coisa. Mantinha um contato insosso com a ex-mulher. Protegido em apartamento de rico, ele se afundava em pensamentos. Voltava-se para as recordações mais puras para mais tarde colocá-las no papel, quem sabe.

Passava noites e noites a ouvir música e lembrar os tempos de advogado. Recordava ainda que foi pela profissão que conheceu a ex-esposa, perfeita nos primeiros anos e uma cobra, mais tarde, cada vez mais venenosa até a separação.

Numa noite de sexta, embriagado, se embrenhou pelas lembranças da universidade, longe de casa, da família, dos amigos de Belém. Em um retorno incansável ao fosso sem fundo da memória, até bater no tempo de menino, faquir, isolado, famélico, desconfiado, com medo até de falar. Lembrou-se dela, a boca extraviada, cabelos amarelos, o encontro, a falta de coragem para assumir aquele quase primeiro amor. Como era mesmo o nome dela?

Por onde, ela andava? Por que não teve coragem para aceitá-la? Declarou-se tolo e permaneceu pensando no quadril redondo, no umbigo perfeito, na bunda pequena, nos olhos verde-água, no fevereiro perdido em que conversaram pela primeira e última vez.

Era um homem sem tarefas, com mais dinheiro que poderia gastar, e agora cercado pelo vazio, que aplacava com voltas ao supermercado de madrugada. Foi em uma dessas compras, mais uma vez, para aplacar o tédio, que ele se surpreendeu. Desceu até a garagem, ligou o carro e foi pra outro bairro, onde o supermercado era mais variado, tinha mais gente e fica 24 horas aberto.

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Depois de abarrotar o carrinho, meteu-se em uma fila incompreensível para o horário. No único caixa aberto, olhou para a pobre operária, atolada de trabalho por causa de tanta gente com o péssimo vício de fazer compras naquela hora imprópria.

O peito dele trincou de novo, como no dia em que a viu jogando vôlei de pernas descobertas e rabo de cavalo. Reconheceu a mulher pelos olhos, com o brilho miraculosamente conservado.

A cor dos cabelos, agora, era quase a mesma, só que um pouco mais queimado pela tintura, mais agressiva. As raízes cinzas e brancas apareciam e ele se crispava, como se a coisa mais óbvio do mundo não fosse envelhecer. O rosto brilhoso de suor e de tanta labuta estava sulcado pelas rugas. Era uma velha robusta, atarracada de pouco pescoço, nenhuma cintura e grandes e flácidos seios. Ele chegou mais perto, olhou as mãos: maltratadas, esmaltes descascados, pareciam calejadas e ásperas.

A espera na fila rendeu um mergulho no passado em comum e imprimiu uma ternura que nenhum ser humano havia despertado nele até então. Na verdade, sentia pena, mas preferia chamar de algo mais nobre. Queria ajudá-la por acreditar que seu dinheiro corrigia os males do mundo. Primeiro arrumaria para ela um emprego melhor, depois a mandaria a um salão de beleza, a um amigo cirurgião plástico, a um SPA, a um esteticista, ao diabo. Recuperaria a menina que deixou para trás sem maiores explicações havia uns 40 anos. Dinheiro havia.

Preparou-se para lhe falar quando chegasse sua vez.

Entretida com latas de leite, geleias, frutinhas, patês, queijos finos, biscoitos caros, vinhos de boa safra, quilos de cebola, sacos de arroz e com o entra e sai do dinheiro, ela não se deu conta do coroa com pinta de bem nascido que, na frente dela, lhe perguntou sem cerimônia:

- a senhora se lembra de mim?

No reflexo, ela levantou a cabeça e demorou cinco segundos para processar. A pausa acessou uma memória quase apagada. Depois quase reconheceu os olhos de índio acanhado dele e só com as marcas de acne que o coração ficou em suspenso. Era ele, estava diferente, mas era ele, obviamente. A pele esticada, a expressão fixa dos procedimentos estéticos, um implante capilar, mas era o menino, sim, aquele mesmo.

Era a visagem que a assombra de vez em quando, estática ao lado da sua caixa registradora, sorriso familiar, aparição parida pela máquina do tempo da memória.

Não atingiu o ódio que planejou nas vezes que lembrou dele. Muito pelo contrário. A ela, pareceu que estavam na escola, mãos nas mãos, como na despedida sem ressentimento.

- Sim, me lembro, sim, do senhor.

Ela riu atrapalhada, passando os itens um a um na leitora de código de barras, entre feliz e constrangida, já com medo de provocar irritação no restante da fila e receber uma advertência do gerente. A nota saiu da máquina e foi entregue ao velho conhecido, que, quase ao mesmo tempo, passou a ela um anacrônico cartão de visita do seu antigo escritório.

- Quando puder, me manda um zap. Vou adorar.

Na resposta envolta na formalidade dos estranhos, ela entregou o melhor sorriso que tinha.

Novo susto para ele.

Por pouco não puxou o cartão de volta. No entanto, respirou e se recompôs. Passou, de forma inconsciente, a língua para conferir os próprios polidos, restaurados e branqueados 32 dentes.

A caixa mantinha os lábios arqueados e entreabertos, movimento que lhe realçava ainda mais a velhice.

A saúde bucal estava miseravelmente pior: um canino abatido por cárie na arcada superior e um pré-molar desertor na parte de baixo, o restante tomado de cárie e tártaro.

O advogado sentiu as tripas, virou às costas e ouviu a operadora de caixa dizer mais tarde te mando um oi.

Entrou rápido no carro, deu a partida e parou. Coração descompassado. Nos olhos vazios, a constatação atravessada: ainda era banguela.

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Anderson Araújo é escritor e jornalista do equipe do DOL e publica às sextas.

O conto foi adaptado do texto “Banguela”, publicado no livro “Bêbado Gonzo e outras histórias”, lançado em 2013.

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