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“Originalmente lançada para explodir a cerca de 500 metros de altitude, a primeira bomba provocou efetivamente um clarão, um flash nuclear [...], clarão do qual a luz se infiltrou em todos os locais, nas residências e até nos porões, deixando sua impressão nas pedras. O mesmo ocorreu com as roupas e os corpos, pois o desenho dos quimonos tatuou a pele das vítimas”. (Paul Virilio. “Guerra e cinema”, 1984).
Ainda existem dúvidas se Robert Oppenheimer passava ou não informações do projeto Manhattan para os russos. E parece que essa é a grande preocupação do filme de Christopher Nolan e seu “Oppenheimer”.
O prometeu norte-americano teria sido um patriota arrependido de ser o “destruidor de mundos”, ou suas ligações com a esquerda da época apontavam para um traidor?
Nolan não deixa dúvidas. Seu filme procura provar que aquele genial sujeito franzino foi ao mesmo tempo um homem de sua época que cumpria seu dever e, depois, um sujeito destroçado por algum sentimento moral.
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É provável que a intenção central do filme tenha sido essa. Porque se você vai ao cinema à procura de um show de imagens sobre o poder de destruição atômica que assombrou o mundo em 1945, refaça seu espírito. Isso não existe nesse filme.
Estamos aqui diante de um fenômeno não incomum do cinema. A expectativa de que teremos uma pirotecnia que repetiria as trucagens, frases de efeito e plots inesperados que tanto marcaram a obra do diretor britânico.
Mas esse não foi o objetivo de “Oppenheimer”. É certamente o filme histórico de Nolan mais preso à realidade, digamos. Ou pelo menos à realidade à qual o longa-metragem toma.
Mais do que “Dunkirk” (2017) no qual ainda podemos ver algumas das famosas confluências temporais no ritmo de vai e vem que tanto encantaram os espectadores.
Se você quer ter um fundo mais prático para verificar essa “base de realidade”, veja o documentário “To end all war: Oppenheimer & the atomic bomb” (2023).
Nele, além de vários depoimentos, temos as falas dos autores, Kai Bird e Martin J. Sherwin, do livro no qual o filme se baseia, “Oppenheimer: o triunfo e a tragédia do Prometeu americano” (2006), e a participação do próprio Nolan. Depois de ver essa “prova de realidade” você poderá compreender melhor a ficção.
E compreenderá não porque ela é difícil, mas porque as disrupções temporais, tão caras à trajetória do diretor, que mostram o passado do protagonista, seu tempo já no projeto da bomba e sua posterior inquisição pela política norte-americana, confundem um pouco o espectador não habituado ao tema.
É certo que se a ideia do filme era representar Oppenheimer (Cillian Murphy) em suas contradições ele vai bem. Mas fica-se com a impressão de que um momento histórico tão decisivo da história da humanidade poderia ter uma representação melhor.
Por exemplo, a Conferência de Potsdam, que definiu as diretrizes da administração da Alemanha, assim como outros acordos com os países envolvidos na II Guerra, desaparece. Ela surge unicamente em um telefonema do General Leslies Grooves (Matt Damon) para o presidente norte-americano, Harry Truman (Gary Oldman).
Como se sabe, essa carta na mão foi decisiva para os interesses dos Estados Unidos, exatamente porque o teste da bomba realizado com sucesso na região desértica de White Sands se dá um dia antes, 16 de julho de 1945, do início da reunião em Potsdam. Com essa informação, Truman poderia barganhar mais poder diante de Stalin.
Tudo bem, é ficção e o foco talvez não fosse esse. Mas em outros momentos tão importantes daquele período, resta ao espectador ou buscar por sua memória, ou fazer conjecturas diante da quantidade de informação que poderia dar, ainda mais, um fundo de realidade mais compreensível. Em estética isso se chama verossimilhança.
Essa capacidade de representação mais convincente, persuasiva, que pode ser tomada como realmente algo possível, no filme, por vezes, se prende muito mais a algumas representações quase obrigatoriamente clichês.
A atuação de Cillian Murphy está longe de ser um desastre, evidentemente. Mas em quase todo filme Oppenheimer, um homem com tamanho poder, parece que vai se quebrar não por uma explosão, mas apenas por um vento que balança os lençóis de um varal no deserto (vendo o filme você vai entender essa metáfora).
Talvez Oppenheimer não coubesse na ideia caricata que muitas vezes cientistas (malucos com cabelos em pé, baseados na imagem midiática de Einstein) são mostrados por Hollywood.
É verdade também que os depoimentos históricos demonstram que o nível de tensão, provocado por um tipo e uma quantidade de trabalho extenuantes, não poderia fazer sempre sujeitos vívidos, nem sujeitos que ignorassem por completo o que estava sendo construído.
Era impossível ignorar o que estava sendo construído. Mas mesmo as justificativas pelo fim da guerra, entoadas de modo vacilante pelo físico, não atingem na narrativa seu propósito de convencimento. E não creio que o filme teve vontade de, em algum momento, abordar essa questão com profundidade.
Edward Teller (no filme, Benny Safdie), o pai da bomba de hidrogênio, que na narrativa implora o apoio de Oppenheimer para continuar as pesquisas com a bomba H, demonstraria sua angústia sobre o projeto.
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Max Hastings, em “Inferno: o mundo em guerra 1939-1945” (2011), transcreve um trecho de uma das cartas do pesquisador a um colega: “não tenho a menor esperança de limpar minha consciência. As coisas nas quais estamos trabalhando agora são tão terríveis que nenhuma quantidade de protestos ou de justificativas políticas salvará nossas almas”.
Os efeitos da bomba sobre as cidades japonesas não surgem, em imagens, em nenhum momento do filme. O foco é a expressão de Oppenheimer ao ver um conjunto de slides mostrados por um grupo de ativistas descrevendo a tragédia.
O pai da bomba está desolado. Em um auditório, no qual ele é recebido de modo eufórico com pessoas gritando Oppie! Oppie! Oppie!, ele ensaia um discurso patriótico. É vacilante. Os rostos das pessoas refletem um clarão, um flash nuclear, e começam a se desintegrar.
Como no mito, Prometeu está acorrentado.
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