Com o fotolivro “Ouro”, que contém relatos sobre a discriminação de portugueses com brasileiros, o artista paraense Mauricio Igor participa da exposição “Anuário 20”, que reúne trabalhos que se destacaram no último ano, na cidade do Porto, em Portugal. Ele é o único artista amazônico presente na exposição.
“Ah, se pudéssemos comprar um desses, eu gostava tanto...” A frase, que parece atenciosa – ou carinhosa – sugere que alguém observou um objeto que admira e deseja adquiri-lo, não é mesmo, caros leitores? No entanto, foi proferida por uma senhora portuguesa ao se aproximar de uma criança brasileira. Chocante, não concorda?
A assustadora percepção, presente na obra “Ouro”, é do artista visual paraense Mauricio Igor, que participa da exposição “Anuário 20”, na cidade do Porto, em Portugal, aberta presencialmente desde o sábado (22 de maio). No total, a exposição reúne obras de 35 artistas, resultado de um trabalho de curadores que analisam e selecionam trabalhos que se destacaram ao longo do ano, em exposições de diversos espaços de arte da cidade.
“O trabalho Ouro foi realizado durante o período de estudos na Faculdade de Belas Artes da Universidade do Porto, intercâmbio realizado por meio de bolsas de estudos financiada pelo Banco Santander, em acordo com a UFPA. Dentre as disciplinas escolhidas, uma delas foi de práticas de fotografia, e dela que resultou a exposição ‘As Fotografias e o Resto’, onde o trabalho foi exposto primeiramente, no Museu da FBAUP. Fiquei muito feliz de saber que o trabalho será exibido novamente na cidade, pelo Anuário do Porto”, explica Mauricio.
Ouro é um fotolivro que traz reflexões sobre a relação entre Brasil e Portugal. Com design de Gil Monteverde, a obra é composta de retratos de alguns brasileiros que moram em Portugal, junto com uma publicação menor que apresenta relatos que envolvem preconceitos cotidianos. Há xenofobia, machismo, homofobia e racismo expressos em diversos contextos, mas sempre com os mesmos alvos: os brasileiros que estão na “Terrinha”.
Sobre isto, o artista apresenta o depoimento de uma estudante brasileira do curso de Licenciatura em História da Faculdade de Letras da Universidade do Porto durante uma aula: “o professor de cultura estava falando de uma Igreja da Bahia que ele visitou. Ele disse que é até triste quando a gente pensa na escravidão, mas se não tivesse acontecido não teríamos maravilhas como aquela. Eu fiquei chocada. Não foi apenas o que ele falou, que por si só já é um absurdo, mas principalmente a forma tranquila, como se não tivesse nada de errado”, relata. As ofensas não param por aí e nem diminuem conforme o grau acadêmico: “Faço mestrado em criminologia e ouvi de uma professora que ‘para uma brasileira até que sabes ler e escrever’”, contou outra brasileira ao artista.
Mauricio possui ainda outras obras que, em conjunto, ajudam a problematizar a tensa relação entre Brasil e Portugal. A videoperformance “De uma Belém a outra”, por exemplo, reflete sobre estes temas partindo do deslocamento da Belém amazônica para a portuguesa, apresentando práticas preconceituosas e reflexões sobre monumentos históricos que homenageiam figuras colonialistas, criados pelos europeus.
“Também fiz o trabalho ‘Don’t touch’, que envolve a relação de toques invasivos aos cabelos afro, e o trabalho ‘Como descobrir o que não é desconhecido?’ um objeto feito com um bordado em tecido junto a uma bandeira do Brasil, após ouvir repetidas vezes que ‘Portugal descobriu o Brasil’, ou que foram ‘bons colonizadores’, falas que ignoram as vidas que já residiam muito antes do período de colonização”, explica Mauricio.
Tal série de obras formam um caleidoscópio que, curiosamente, parece apontar ou mesmo sintetizar a mesma imagem. “Vejo a importância em perceber que as relações coloniais do passado se estabelecem ainda hoje, ainda que sob outra roupagem, por vezes. Os trabalhos artísticos são, então, um modo de problematizar e refletir sobre tais questões, o que por sua vez pode ocasionar mudanças em sociedade. Os debates raciais e territoriais têm sido presentes na atualidade, mas ainda há muito a ser mudado, como pode-se ver a partir dos relatos presentes neste trabalho”, destaca o artista.
A EXPOSIÇÃO
Com a rapidez no processo de vacinação em Portugal e por terem seguido de fato restrições mais duras ao longo de 2020 e início de 2021, a exposição pode ser visitada presencialmente. No entanto, o fotolivro, “Ouro”, não poderá ser manuseado. “Como proposta da curadoria, foram impressos 6 exemplares, que ficarão apresentados de forma aberta para os visitantes visualizarem e lerem algumas partes”, explica Mauricio Igor.
Na exposição, também participa o brasileiro Dori Nigro, que é de Pernambuco e mora há alguns anos na cidade portuguesa. A exposição alcança vários espaços culturais do Porto, como AL859, Armazém do Fundo, A Sede, Clube de Desenho, Espaço Birra, Ócio. A obra do paraense pode ser visitada no Atelier Logicofobista.
O ARTISTA
Mauricio Igor é licenciado em Artes Visuais pela Universidade Federal do Pará. Seu trabalho é focado em reflexões sobre o corpo não hegemônico, atravessando questões de identidades em temas como miscigenação, sexualidade e o cotidiano amazônico. Tais processos se desdobram em fotografias, performances, vídeos, textos, intervenções e instalações.
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Por meio destes, recebeu premiações como o Prêmio Rede Virtual de Arte e Cultura, da Fundação Cultural do Estado do Pará, Imagens Cotidianas - Incentivo às Artes Visuais e Fotografia 2021, promovida pelo SESC Pará. Também participou de exposições coletivas no Brasil e em Portugal.
SERVIÇO
Exposição “Anuário 20”, com a obra “Ouro”, de Mauricio Igor
Quando? De 22 de maio a 18 de julho
Onde? Porto (Portugal). A obra de Mauricio está no Atelier Logicofobista (Rua Anselmo Braancamp 345, Porto-PT)
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