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HOMENAGEM

Belém, sonhos de passado, sonhos de futuro

Veja o texto de Relivaldo Pinho especial para o DOL.

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Imagem ilustrativa da notícia Belém, sonhos de passado, sonhos de futuro camera Reprodução

Ir para Belém era uma alegria sem fim. Eu, criança, só tinha a imagem de uma cidade pelo que meu pai contava e ouvia de outras pessoas. Mas quando, pela primeira vez, o barco apontava, longínquo, e podíamos ver as primeiras luzes da cidade, a euforia era incontida. Belém era isso, terra de luzes. Escassas no interior, as luzes resplandeciam sob a escuridão do rio e, então, o apito do barco tocava e a grande cidade surgia arrebatadora.

A viagem de 10 horas, vindo de Cametá, alimentava ainda mais as expectativas. Desatávamos as redes às pressas, pegávamos paneiros, sacolas e bolsas intermináveis e, já naquela época (desde sempre?), éramos avisados para esperar o dia clarear e a cidade se iluminar de um outro modo, com a luz ofuscante do sol. Era preciso clarear, para evitar os possíveis roubos que, por ventura, pudessem acontecer.

Sim, esse sentimento já era presente, mas excitados com o novo lugar, não ligávamos muito. Queríamos mesmo era adentrar no ônibus, ou táxi, e, como nas imagens clichê de viajantes interioranos para a capital, admirar o trajeto pelas ruas, olhando as pessoas, os grandes prédios, as movimentações dos carros.

A Belém 'pulp', de Edyr Augusto

Documentário mostra Belém para além dos clichês

A selva, agora, era outra. Parecia carregar o esplendor da modernidade que o “atraso” da vida anterior era incapaz de mostrar.

O trajeto mais empolgante era passar pela Avenida Nazaré, pelo Manuel Pinto da Silva, pelas luzes ainda ligadas em neon de uma farmácia que ali existia. As luzes em neon provocavam especial fascínio. Inigualável fascínio. Apenas nos filmes havia visto o neon nos bares e restaurantes das imagens de Hollywood.

O mesmo espanto incomparável acontecia ao ver as vitrines das lojas mimetizando uma vida que, cinematograficamente, apenas imaginávamos. O cinema e a cidade são indissociáveis.

Durante muito tempo essa imagem citadina permaneceu no imaginário. Como uma fortaleza que não quer ser derrubada por nenhum estranho, ela reivindicava seu lugar, para guardar o idílio, o romantismo, a estupefação da admiração, do assombro e do encanto. Belém, para essa memória, que atravessava as ruas da Cidade Velha, guardava a ideia de um novo tempo, de futuro. Sonhos de futuro.

Esse era o tempo da infância e, como sabemos, a infância anseia a fantasia. Como esporádico visitante da cidade, esse anseio sempre poderia ser alimentado, como desejo e, inevitavelmente, retribuição. Como sonho, como fantasia.

No início dos anos 1990, quando Belém se tornou para mim a morada definitiva, a cidade já havia se modificado, mas ainda guardava fascínio – e ainda guarda, evidentemente – por quem ainda lhe era (ainda somos?) quase estranho, por ser ainda um lugar a se perder.

O cotidiano tende a nos afastar do olhar de novidade e fantasia, tende a nos recolocar na familiaridade repetitiva das mesmas ruas, dos meus prédios, da mesma escola, do mesmo ônibus. Quando isso ocorre, a cidade parece perder um pouco do seu encanto e então podemos vê-la sob outra forma, uma forma com menos quimeras e mais facticidade.

Como sabemos, os sonhos de futuro (Walter Benjamin) contêm, também, os tempos que não se realizam. Belém já demonstrava, nesse período, modificações sociais que se tornariam decisivas nos anos vindouros.

Não que elas já não existissem, afastando, aqui, desde já, uma perspectiva nostálgica, recorrente em relatos de memória. Mas, nesse caso, com o fim da infância segue-se, com a vida adulta, o princípio de realidade. O casulo se dissipa e o imaginário se inunda do que antes ignorávamos. A realidade, agora, se apresenta sem contornos, adornos e neon.

As modificações de toda ordem que já estariam presentes na cidade há, pelo menos, três décadas, tronavam-se cada vez mais concretas, mais enfáticas e não mais podiam ser esmaecidas. O medo que a grande cidade provocava, medo inexistente na pequena cidade de outrora, tornar-se-ia uma companhia fiel e a indiferença (Georg Simmel) sua consorte.

Não se trata de uma simples queixa de que o passado parecia – e quase sempre parece – melhor. Trata-se de perceber como a grande cidade, como Belém, suscitava, no imaginário do estrangeiro viajante, a ideia, indelével, de futuro, progresso.

E de como, em suas novas realidades que se configuram, ela ainda alimenta essa ideia, agora, unindo a realidade incontornável do cotidiano às fantasias imagéticas de simulações dos novos prédios, carros, vitrines, luzes, um novo neon.

A grande cidade sempre foi assim. Unindo cotidiano e, necessariamente, suscitando fantasia. Os sonhos de passado e de futuro nos demonstram isso. Ao contrário do que se possa pensar, Belém não está fora desses mundos oníricos, mas eles se abalroam sem nos darmos conta disso.

Como barcos da memória que se chocam ao lembrar da cidade. Cada um carrega um tempo que é só seu, mas é, também, de outros. Como o barco que Teseu usou para viajar a Creta e matar o Minotauro.

No conhecido mito, no retorno de Teseu para Atenas, os atenienses preservaram o barco, como forma de manter o símbolo da façanha, retirando as velhas peças de madeira e substituindo por novas, o que geraria a aporia se, com as mudanças, ainda seria, ou não, o mesmo barco.

É como a cidade que nós, viajantes, nos deparamos na infância e, anos depois, nela vemos, sobrepostos, prédios sobre prédios, carros sobre carros, vitrines sobre vitrines, vidas sobre vidas, tempos sobre tempos, nos indagamos se ainda é a mesma. Algum neon, como nos filmes, vacilante, ainda pisca a palavra Belém.

Ao meu pai, Reginaldo Itaparica. In memorian.

Relivaldo Pinho é autor de, dentre outros livros, “Antropologia e filosofia: experiência e estética na literatura e no cinema da Amazônia”, ed. ufpa.

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