Entre a casa e a escola: a missão dos barqueiros pelos rios
"No tempo em que eu comecei a estudar, nós não tínhamos transporte fluvial escolar. Pra nós chegarmos nas escolas tinha que ter um ‘casquinho’ [barco de pesca artesanal] a remo, senão a gente não conseguia chegar. Ver que um barco deixa na porta de casa é maravilhoso. Todos os barqueiros que trabalham hoje em dia são super capacitados para trabalhar com os nossos filhos" — A recordação é da, hoje, barqueira Eloíde Oliveira, que assumiu o cargo em abril desse ano.
Pouco mais de 20 anos depois, os filhos de Eloíde têm acesso a um transporte fluvial escolar adequado, que estaciona todas as manhãs no trapiche da sua casa às margens do Furo do Maracujá — ilha que, territorialmente, corresponde ao município de Acará, nordeste paraense — para seguir viagem até a escola onde estudam em outras ilhas de Belém (PA).
Eloíde comunga essa relação com os rios desde pequena, assim como toda a sua família — seja a mãe, o marido João Paulo ou o casal de filhos. Para ela, essa relação é tão espontânea quanto respirar.
Considerando a característica singular da região amazônica, isso não seria surpresa, pois o transporte fluvial é o único meio de mobilidade à disposição dela e de seus vizinhos no entorno. Saber como navegar por esses rios, porém, não os torna habilitados para transportar pessoas; nesse caso, os estudantes das escolas ribeirinhas das ilhas de Belém.
“Quase todo mundo sabe pilotar um barco porque faz parte da nossa vida, só que para trabalhar é preciso ter a carteira marítima. Tem as categorias da carteira, que é convés e máquinas. Para pilotar é preciso ter o curso de auxiliar de convés. O ajudante que trabalha nas outras funções é o auxiliar de máquinas. Ainda tem o curso do Esep [Curso Especial de Segurança de Embarcações de Passageiros] que a gente tem que ter, que é para segurança no trabalho”, explica Eloíde, que por muito tempo trabalhou como auxiliar de embarcação ao lado do marido, que já era barqueiro.
Rio afora, Eloíde e João Paulo seguiam para transportar os estudantes das comunidades ribeirinhas até as escolas das ilhas que fazem parte da capital paraense, seguros de que os filhos do casal estavam em boas mãos, sob a guarda da avó materna.
Como auxiliar, Eloíde tinha a responsabilidade de embarcar os estudantes, vestir os coletes em cada um e vigiá-los atentamente até chegarem ao destino. Horas depois, quando dava o horário de saída, o transporte fluvial voltava para buscar os estudantes e garantir que cada um chegasse às suas casas pontualmente.
Atualmente, Eloíde assumiu o cargo de barqueira e está responsável pelo transporte de 26 alunos da escola ribeirinha, a Escola Municipal de Educação do Campo (EMEC) Milton Monte. A unidade atende o ensino fundamental menor da rede municipal de Belém e está localizada na ilha do Combu.
Questionada se já passou por alguma situação de perigo, responde aliviada que isso nunca aconteceu, fosse sozinha ou acompanhada dos menores, mas pontua que o maior desafio de um barqueiro está na maresia quando se prepara para aportar e receber as crianças.
“Com o mar agitado, dificulta um pouco o trabalho para encostar porque o barco é grande e pesado. Fica complicado segurar a embarcação e as crianças, principalmente quando os pais não cooperam, sendo que a escola pede para que eles estejam no porto durante o embarque e o desembarque, mas a gente sempre procura fazer o serviço com eficiência pra que não aconteça nenhum acidente”, reafirma.
Os rios que levam à educação
Desde 2017, Eloíde e João Paulo são cooperados pela Coopbarp, Cooperativa dos Produtores Agroextrativistas e dos Barqueiros do Pará com 22 embarcações que atendem mais de mil estudantes dos distritos Outeiro e Mosqueiro, ambos pertencentes à capital paraense.
Os dois cumprem uma rotina sem grandes surpresas, exceto quando precisam lidar com o “humor das águas”. Às vezes, a maré está arredia e isso dificulta o traslado, exigindo atenção tanto do barqueiro quanto do seu auxiliar — funções exercidas pelos cooperados que atendem as linhas fluviais escolares.
Em outros casos, dependendo da navegabilidade de um furo — um trecho de água que pode ser navegado — ou do tempo de viagem para completar a rota, é preciso mudar de embarcação (uma lancha ou um barco). Seja como for, o importante é sempre buscar uma forma de alcançar os estudantes em suas casas.
“A nossa prioridade com os alunos é a segurança e a qualidade do serviço para que as embarcações sejam legalizadas. Os nossos cooperados devem ser habilitados, ter o curso de transporte de passageiros e segurança na navegação. Além disso, todas as embarcações devem ter coletes salva-vidas”, enfatiza João Paulo, que coleciona quase dez anos de experiência nos rios.
Foi a partir dessa experiência com a navegação que o barqueiro assumiu uma nova escola, a Escola Municipal de Educação do Campo (EMEC) São José, na Ilha Grande. Aos 38 anos, João Paulo se dedica a uma das rotas mais extensas da região para certificar que 19 estudantes, entre crianças e pré-adolescentes, aportem com segurança e não percam o café da manhã, nem o primeiro horário de aula.
VEJA!
João acorda cedo pela manhã. O sol nem surgiu no horizonte, mas lá está arrumando seus pertences antes de dar início ao seu turno. Desce sem dificuldades pela escada no trapiche de casa, entra na embarcação que ele mesmo construiu e começa a cortar as águas de rio doce para chegar ao primeiro porto até às 6h.
“Na hora do embarque, tem que ter muito cuidado para que a criança não escorregue. Muitas vezes, pela manhã, alguns portos estão molhados e escorregadios, então é preciso redobrar atenção. A partir do momento em que a criança embarca, a responsabilidade é nossa, é do barqueiro”, explica o marido de Eloíde.
A embarcação de João Paulo é uma das dez que atende exclusivamente a EMEC São José, mas cada escola ribeirinha que pertence à capital possui o próprio transporte fluvial escolar, em sua maioria atendido pela cooperativa na qual ele faz parte.
“Hoje nós temos 33 embarcações que fazem esse atendimento nas ilhas, tanto no sul quanto no norte de Belém. Nessa região da ilha sul, na qual nós estamos [a Ilha Grande], são atendidos pelo transporte fluvial escolar 665 alunos”, explica Lucilene Silva, técnica de referência da Secretaria Municipal de Educação e Cultura (Semec).
Educação ribeirinha que nada perde para o centro urbano
No dia dessa entrevista, Eloíde não estava como barqueira. Vestida à caráter para uma festinha junina, ela acompanhava a filha mais velha, Paola, até a EMEC São José. Era final de junho e a comunidade escolar tinha muito o que comemorar. O clima só favorecia: as águas estavam tranquilas e o céu azul sinalizava que não haveria chuva para dificultar a navegação, tampouco a experiência da criançada.
O motivo da festa na EMEC São José não residia apenas na quadra junina. Essa é a única escola das ilhas de Belém que atende o ensino fundamental maior, do 6º ao 9º ano. Isso significa que pais e mães se sentem seguros sabendo que seus filhos continuam naquela região conhecida, longe dos possíveis perigos que encontrariam se fosse preciso estudar nos centros urbanos.
A mãe de Paola conhece muito bem essa realidade. A barqueira cogitou parar de trabalhar para acompanhar a filha até uma escola na capital paraense, se fosse necessário. Felizmente, quando a menina concluiu o ensino fundamental I — que corresponde à faixa etária de 6 a 10 anos de idade —, conseguiu se matricular em uma escola perto de casa, dando continuidade aos estudos. Paola, inclusive, é transportada pelo pai, o barqueiro João Paulo.
“Nós nos deparamos com a demanda de atender esses estudantes do 6º ao 9º ano, pois os pais nos relataram em reunião que essa era a necessidade deles. Havia muita insegurança dos pais e o medo dessa travessia porque o processo é outro, a dinâmica da cidade é diferente das ilhas”, relembra Lucilene.
A educação escolar do campo é quase uma filosofia de vida, com ênfase no meio ambiente e na valorização das próprias raízes. Existe um currículo com matriz pedagógica diferenciada e que atende às necessidades dos que estão inseridos nesse processo, chamados de “sujeitos de direitos”, sendo eles ribeirinhos, quilombolas, caiçaras, extrativistas, assentados da reforma agrária e povos tradicionais.
Com a entrega do novo prédio da unidade em maio desse ano, os motivos para celebrar são ainda maiores. A primeira escola a atender nas ilhas sul de Belém o ensino fundamental II é espaçosa. Localizada às margens do Rio Bijogó, dispõe de um novo projeto arquitetônico que abriga tranquilamente toda a comunidade, atualmente 162 alunos, e em nada lembra a estrutura do anterior, que reside ao lado.
“Isso é um ganho para a comunidade porque melhora o acesso deles à educação. A qualidade de ensino também muda, é um olhar voltado para a localidade. Se eles saíssem do campo para a cidade, eles não teriam uma metodologia específica. Nós atuamos como facilitadores desse aprendizado e aprendemos com eles”, enfatiza Eliza Cardoso, coordenadora da EMEC São José.
ACOMPANHE!
Merenda escolar também é protagonista nos rios
Os projetos disponíveis na escola transformam a rotina da vida ribeirinha. São atividades desenvolvidas no contraturno escolar (período oposto das aulas regulares), com ênfase em áreas diversas, como leitura, escrita, matemática e música. Os alunos que estão inseridos nesses projetos precisam ter fôlego para acompanhar a dinâmica e entra em destaque o papel de uma alimentação adequada, garantida por meio da merenda escolar.
Cada unidade de ensino das ilhas de Belém possui suas particularidades em relação ao abastecimento da merenda escolar, mas todas atendem as necessidades nutricionais de acordo com suas modalidades: creche, berçário, ensino infantil, fundamental, médio e EJAI (Educação de Jovens, Adultos e Idosos).
No entanto, até chegar à mesa e alimentar os mais de 1,5 mil educandos das ilhas de Belém, os insumos percorrem um longo trajeto pelos rios. A mercadoria embarca no porto do Espaço Náutico, no bairro do Guamá, em Belém, ao nascer do sol. Dependendo da região, um responsável da escola sugere a embarcação para fazer o transporte da merenda.
No caso de ilhas próximas, ficam disponíveis barcos da Fundação Escola Bosque (Funbosque) ou alguma embarcação gerenciada pela Superintendência Executiva de Mobilidade Urbana (Semob), que faz a travessia diária Icoaraci-Cotijuba. Assim que desembarcam, parte dos alimentos são encaminhados para as demais escolas que estão em ilhas próximas.
“O abastecimento da merenda escolar é feito a cada 15 dias letivos com gêneros não perecíveis, além de carne, frango, peixe e as polpas de frutas. Já a entrega dos gêneros oriundos da agricultura familiar (hortifruti) é feita semanalmente”, explica Neusa Lobato, a presidente em exercício da Fundação de Assistência ao Estudante (Fmae).
Ainda segundo Neusa Lobato, para a sétima remessa, a primeira do segundo semestre [agosto de 2023], a previsão é de entregar cerca de 3,8 toneladas de alimentos para a merenda escolar. “Se considerarmos isso uma média, entregamos só para a região das ilhas Cotijuba e Combu mais de 22 toneladas apenas no primeiro semestre”, enfatiza a presidente em exercício da Fundação de Assistência ao Estudante (Fmae).
Transporte fluvial: os desafios e seus benefícios
A região amazônica é conhecida por sua característica singular e complexa, com uma vasta rede de rios que desempenham um papel crucial não só no transporte de pessoas, mas também de mercadorias. O transporte fluvial é o principal meio de locomoção da população ribeirinha entre as localidades.
Para Victor Zindeluk, diretor do Sest Senat, os portos têm um papel importante no suporte a essa logística e precisam de investimentos na infraestrutura.
“Algumas localidades ainda carecem de mais atenção e investimentos, podendo assim proporcionar mais segurança e conforto para os que utilizam desse meio de transporte. Algumas regiões recebem mais atenção e investimentos do que outras, especialmente se estiverem localizadas em áreas mais estratégicas ou densamente povoadas. Além disso, as necessidades de infraestrutura e desenvolvimento de cada ilha podem ser diferentes”, aponta Vitor.
O diretor reforça que garantir a segurança das comunidades que dependem do transporte fluvial é um desafio complexo, contudo ele acredita que existam medidas a serem tomadas para ajudar a melhorar a situação, sem restringir o único meio de locomoção disponível.
"Um dos pontos é melhorar a infraestrutura fluvial, investindo na melhoria dos portos, cais e estruturas de transporte fluvial que podem tornar as viagens mais seguras e isso inclui garantir que as embarcações estejam em boas condições. O segundo é fornecer treinamento e capacitação para os operadores de embarcações e tripulantes, garantindo que estejam cientes das práticas de segurança marítima. Isso inclui instruções sobre a operação adequada das embarcações, conhecimento de primeiros socorros e procedimentos de evacuação em caso de emergência", enfatiza Victor.
Outra questão destacada é a fiscalização adequada das autoridades competentes que precisam ser mais rigorosas e constantes nas operações do transporte fluvial: "É preciso verificar as condições das embarcações, se elas estão em conformidade com os padrões de segurança, bem como o cumprimento das normas de lotação e horários de viagem".
"Educar as comunidades locais sobre a importância da segurança no transporte fluvial e a necessidade de seguir as regulamentações pode aumentar a conscientização e incentivar o cumprimento das normas de segurança", salienta o diretor.
Investir na infraestrutura para colher bons frutos
Com a atenção redobrada que Belém tem recebido em virtude da COP-30, que será sediada na capital em 2025, assuntos como meio ambiente, sustentabilidade e Amazônia estão ainda mais evidentes.
Da mesma forma esse pensamento se estende para o transporte fluvial, que ganha um papel de destaque tendo em vista suas características únicas que conversam com algumas das ações socioambientais se comparado a outros meios de mobilidade atualmente conhecidos, como o rodoviário ou o aéreo.
"O transporte fluvial geralmente consome menos combustível do que o transporte rodoviário ou aéreo para mover grandes volumes de carga, contribuindo para a redução na emissão de carbono. Ele ajuda a impulsionar a economia das regiões ribeirinhas, cria empregos e oportunidades de negócios, além de logística e comércio. Além disso, alivia o congestionamento nas estradas e reduz o número de acidentes rodoviários. Consequentemente, registramos menos poluição do ar e menor necessidade de gastos com infraestrutura para acomodar um grande número de veículos nas estradas", aprofunda Victor, evidenciando a urgência em dar a atenção necessária às qualidades do transporte fluvial.
Nas palavras de Zindeluk, ainda há muito a ser feito para que o transporte fluvial na região paraense esteja adequado em sua totalidade e atenda tanto a população ribeirinha quanto os turistas.
Melhorar a infraestrutura portuária e a navegabilidade dos rios tornam-se fundamentais nesse momento, atraindo os olhares de empresas e seus operadores. As políticas de incentivo também devem estar em pauta, já que irão favorecer esse meio de mobilidade sustentável. Para que esse cenário otimista seja possível, é imperativo que todos façam a sua parte.
"Temos que estimular a colaboração entre os setores público, privado e terceiro setor para que possam ajudar a impulsionar o desenvolvimento do transporte fluvial e garantir investimentos adequados, além da implementação de normas e regulamentações que garantam que as embarcações cumpram os padrões ambientais mais rigorosos. Por fim, temos que informar o público sobre os benefícios do transporte fluvial e a importância de adotar ações cada vez mais sustentáveis", finaliza.
Reportagem: Fernanda Palheta
Edição: Andressa Ferreira e Kleberson Santos
Edição Multimídia: Thiago Sarame
Coordenação Sênior: Ronald Sales
Coordenação Executiva: Mauro Neto
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