Estresse, jornadas de trabalho superiores a 12 horas, riscos de acidentes e muito mais – tudo isso "dentro da lei". Essa é a realidade enfrentada por motoristas e motociclistas que trabalham em plataformas de mobilidade, que hoje dominam o mercado de transporte de pessoas e entregas em domicílio. Com um clique no celular, você chama um carro ou recebe ou envia qualquer coisa em casa. A precarização do trabalho, somada à falta de regulamentação, tem causado mortes e graves acidentes com trabalhadores em todo o Brasil, sempre acompanhada pelo mesmo discurso: "o problema é seu".
Uma pesquisa realizada pela Diretoria Executiva de Direitos Humanos da Unicamp revelou dados preocupantes sobre esse modelo de trabalho, que cresce cada vez mais no país. O estudo, realizado em 2023 com 200 motofretistas, resultou em um dossiê que expõe os malefícios da "uberização" do trabalho. A pesquisa contou com a participação de pesquisadoras e pesquisadores de todo o país e tem sido base de diversos estudos nos últimos anos.
Esses estudos mostram que a uberização em diferentes setores gera remunerações injustas e cada vez menores, além de condições de trabalho precárias. Também destacam desigualdades complexas entre os trabalhadores, especialmente no que diz respeito aos ganhos e ao acesso ao trabalho. Esse acesso, por sua vez, está cada vez mais concentrado nas mãos de oligopólios empresariais.
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Essa é a realidade enfrentada pela motociclista Silvana do Amaral Nascimento, de 59 anos. Após trabalhar por 14 anos em um veículo de comunicação de renome no Estado do Pará, Silvana vive uma das fases mais difíceis de sua vida, enfrentando o desemprego, dores físicas e outros problemas de saúde, além da burocracia no processo de aposentadoria e auxílio-saúde,
Moradora do bairro do Jurunas e apaixonada por veículos, sejam carros ou motos, Silvana já atuou como motorista e auxiliar de taxista, modelo em que o dono do veículo aluga o carro para que outra pessoa trabalhe. No entanto, em 2018, após deixar seu último emprego formal, ela começou a vender "chopes" em frente a um supermercado, passando a depender da atividade e da aposentadoria da mãe para o sustento da família.
"Te vira"
Foi em um desses dias de trabalho que Silvana recebeu a sugestão de uma amiga: trabalhar para um aplicativo de mobilidade. A ideia de fazer seu próprio horário e trabalhar dirigindo parecia atrativa, até que ela sofreu seu primeiro acidente enquanto trabalhava na plataforma.
“Tem quatro meses que uma mulher me derrubou, dobrou em cima de mim para entrar em uma rua, disse que não me viu, mas estava conversando com o namorado dentro do carro. Me levou para UPA e pagou o conserto da moto, mas não me pagou doze dias parada”, relembrou. “Me deu uns reais para inteirar em minhas dívidas e disse que o pai (dono do carro) não iria se responsabilizar”.
A responsabilidade no caso da motociclista poderia ficar tranquilamente para a plataforma ao qual ela trabalha, entretanto, essas empresas que faturam bilhões de reais não reconhecem formalmente seus trabalhadores como empregados. Em vez disso, são classificados como "prestadores de serviços" ou "autônomos", o que resulta na ausência de benefícios trabalhistas tradicionais, como seguro de saúde, férias remuneradas ou licença-maternidade.
Diego Assunção, de 38 anos, roda de aplicativo desde 2017, e tem nas corridas o principal sustento de sua esposa e de sua filha. Formado em Licenciatura em História, o trabalhador se viu obrigado a trabalhar na plataforma por necessidade, já que não encontrou emprego como professor. Ele disse nunca ter sofrido acidente durante os sete anos ao volante pelo aplicativo, mas já sofreu momentos de terror em um assaltoem fevereiro de 2020 e, assim como Silvana, não teve nenhum apoio do aplicativo em que estava trabalhando.
"Nunca sofri nenhum tipo de acidente, mas já fui assaltado e fiquei sequestrado por cinco horas, trancado no porta-malas, enquanto os assaltantes saíam fazendo arrastões com o meu carro. Esse incidente aconteceu em fevereiro de 2020. Até hoje, a plataforma não me ofereceu nenhum tipo de auxílio", relata.
"A única coisa que fizeram foi pedir desculpas e reembolsar o valor da viagem em questão, a mesma corrida em que fui assaltado. Fora isso, não tive qualquer apoio, nem na delegacia, nem em relação ao meu carro, que ficou bastante danificado. Eles bateram de propósito contra um muro e um poste, e depois me abandonaram trancado no porta-malas. Foram os populares que me ouviram gritando e me tiraram de lá", diz Diego,
Falta de regulamentação
A falta de uma regulamentação para os trabalhadores de aplicativos ainda não é uma realidade no país. Segundo a advogada trabalhista Letícia Bentes, a falta de uma regulamentação clara sobre o modelo de trabalho leva a muitas decisões judiciais desfavoráveis ao trabalhador que sofre acidente ou quer protestar sobre alguma regra da plataforma.
Atualmente, não há regulamentação clara sobre o que pode ser feito nesses casos, e as decisões nem sempre são aceitas por juízes e desembargadores no Pará, sendo, na verdade, raramente aceitas. Há discussões sobre a onerosidade e a personalidade do trabalho (já que o motorista não pode delegar sua função a outra pessoa) e a subordinação. Essa última, tradicionalmente vista como cumprimento de horário, ocorre agora de maneira mais sutil, como pelo controle de geolocalização imposto pela plataforma. Além disso, há a questão das punições aplicadas pelas empresas, que podem ter um caráter disciplinar, como a penalização de motoristas que passam muito tempo inativos no aplicativo. Essas punições podem gerar implicações de natureza pecuniária, como, por exemplo, uma punição coercitiva ao trabalhador
Letícia Bentes, Advogada Trabalhista“Diante de todos esses problemas, com trabalhadores adoecendo devido à carga horária excessiva, fica clara a necessidade de regulamentação, já que se trata de uma forma de precarização do trabalho. As ações judiciais continuam aumentando”, completa.
Em 2024, o presidente Lula avançou em discussões sobre os direitos dos motoristas e motociclistas de aplicativos. Um dos principais projetos propostos estabelece uma série de direitos para esses trabalhadores, incluindo o pagamento de salário mínimo para jornadas de 8 horas, contribuição ao INSS, e a possibilidade de os motoristas decidirem seus horários de trabalho, sem vínculo exclusivo com uma única plataforma.
O governo organizou um grupo tripartite para discutir a regulamentação, envolvendo representantes dos trabalhadores, das empresas e do governo. Apesar de inicialmente se discutir enquadrar esses profissionais pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), o projeto manteve os trabalhadores como autônomos, mas com a exigência de uma contribuição ao INSS e um padrão mínimo de remuneração, estabelecendo o valor de R$ 32,09 por hora trabalhada. Além disso, as empresas terão de contribuir com 20% sobre essa remuneração para garantir a seguridade social dos trabalhadores, o assunto, no entanto, ainda está em discussão no Congresso Federal, “esfriando” nos últimos meses por conta das eleições municipais.
O IBGE revelou que, no 4º trimestre de 2022, o Brasil tinha 1,5 milhão de pessoas que trabalhavam por meio de plataformas digitais e aplicativos de serviços. Representa 1,7% da população ocupada no setor privado, que chegava a 87,2 milhões, no período.
No recorte por tipo de aplicativo, 52,2% (778 mil) exerciam o trabalho principal por meio de aplicativos de transporte de passageiros em ao menos um dos dois tipos listados (de táxi ou excluindo táxi). Em um olhar mais aprofundado, eram 47,2% (704 mil pessoas) os de transporte particular de passageiros (excluindo os de táxi) e 13,9% (207 mil) de aplicativos de táxi.
A maior parte dos trabalhadores de apps são motoristas, homens, entre 25 e 39 anos, com ensino médio completo ou superior incompleto. Embora recebam uma renda superior à média dos trabalhadores brasileiros, trabalham mais horas por semana e contribuem menos para a Previdência. Essas informações integram o novo módulo da Pnad Contínua, que ainda está em fase experimental.
Divergências entre trabalhadores
Diego admite que a regulamentação é um tema complexo entre os motoristas, pois, segundo ele, cada um trabalha de uma forma, seja para garantir 100% do sustento familiar, seja para fazer uma renda extra, no caso de quem trabalha no regime de CLT.
“É um tema controverso e a opinião varia entre os motoristas. A grande maioria dos motoristas de aplicativo que possuem empregos formais, como aqueles que são contratados pela CLT ou funcionários públicos, não querem a regulamentação das plataformas, preferindo que as coisas permaneçam como estão", comenta ele.
"Em contrapartida, há pessoas, como eu, que dependem exclusivamente do trabalho com aplicativos. Na minha visão, a regulamentação é necessária, pois, atualmente, essa atividade se tornou um emprego. Se me perguntarem qual é a minha profissão, direi que sou motorista de aplicativo, porque é essa atividade que sustenta a minha família. Sem ela, eu teria que procurar um emprego formal”, opina.
Salários
Sobre a questão do salário, há divergências: alguns motoristas preferem ser remunerados com base nos quilômetros rodados e no tempo, outros por hora trabalhada, enquanto alguns defendem um salário fixo ao final do mês. A discussão é complexa, porque cada motorista trabalha de uma forma”, completa.
Servidão digital
A falta de uma regulamentação fez o termo "servidão digital" entrar em discussão, se referindo à situação em que trabalhadores dependem quase totalmente de plataformas digitais para sua renda e emprego, mas não têm controle sobre as condições de trabalho ou autonomia sobre suas atividades. Esses trabalhadores são frequentemente subordinados a algoritmos que controlam aspectos críticos de sua rotina, como:
- Atribuição de tarefas (corridas ou entregas),
- Monitoramento de desempenho,
- Definição de ganhos,
- Tempo de espera e rotas.
Isso cria, segundo o dossiê divulgado pela Unicamp, uma situação de dependência e vulnerabilidade, em que os trabalhadores ficam sujeitos às regras e pressões das plataformas, mas sem a garantia de direitos trabalhistas formais. O conceito de servidão digital compara essa relação com formas modernas de exploração, já que os trabalhadores têm pouca ou nenhuma influência sobre as condições impostas e recebem compensações mínimas sobre o trabalho prestado.
Diego é totalmente favorável à regulamentação do trabalho, pois vê, como citado no dossiê, que as empresas controlam os trabalhadores de várias maneiras, tirando dele a caracterização de ”trabalhador autônomo”, se considerando um trabalhador “plataformizado”.
“Sou totalmente a favor de sermos reconhecidos como trabalhadores de plataforma, e não autônomos. Somos subordinados à plataforma, que define quanto vamos ganhar, qual rota devemos seguir, e impõe a obrigatoriedade de descanso após 12 horas trabalhadas. Em muitos aspectos, a plataforma nos coloca em uma posição de subordinação. Por isso, defendo que somos trabalhadores plataformizados, e não autônomos de aplicativo”, explicou.
O motorista cita também a exploração excessiva das empresas para com os trabalhadores, os tornando verdadeiros “escravos digitais”.
A plataforma explora sim, e não se importa com o motorista. Se houver qualquer denúncia de importunação, independentemente da situação, ela nunca escuta o motorista, sempre dá razão ao passageiro e bloqueia imediatamente, sem direito de resposta. Houve vários casos aqui em Belém de motoristas sendo bloqueados sem saber o motivo, simplesmente porque o passageiro fez uma denúncia. Em alguns casos, houve acidentes de trânsito reportados tanto pelo passageiro quanto pelo motorista, e a plataforma bloqueou o motorista enquanto o passageiro continuou utilizando o serviço normalmente. Isso representa uma exploração excessiva, já que o motorista não tem direitos, apenas a obrigação de trabalhar e aceitar as corridas. Se o motorista recusar um certo número de corridas por semana, ele pode ser suspenso. No perfil do motorista, fica registrado que ele não atinge o mínimo exigido pela plataforma, o que resulta em menos corridas sendo oferecidas, favorecendo quem tem uma maior taxa de aceitação. A plataforma se apresenta como uma empresa de tecnologia, mas, na prática, ela regula o transporte, impondo inúmeras regras e obrigações ao motorista, e no final, sempre tem a palavra final. Assim, a plataforma explora o motorista de forma geral
Diego Assunção, Motorista de AplicativoEquipe DOL Especiais:
Lucas Contente é repórter do portal DOL. Nascido na cidade de Muaná, na Ilha do Marajó, e criado desde os nove anos em Belém, é formado em jornalismo pela Faculdade Estácio FAP desde 2023.
Anderson Araújo é editor e coordenador dos conteúdos especiais do Dol. Formado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2004, e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto (Portugal), em 2022. É também autor de dois livros de contos e crônicas publicados em 2013 e 2023, respectivamente.
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