
A cena é cada vez mais comum nas ruas das cidades brasileiras: antes mesmo do nascer do sol, grupos de corredores já ocupam avenidas, parques e calçadões. Com tênis apropriados, fones de ouvido e até relógios de desempenho, eles parecem ter um objetivo claro. Mas, o que está por trás da prática pode ir muito além do que apenas preparo físico, envolve também histórias de superação e autoconhecimento.
De acordo com um levantamento da Associação Brasileira de Organizadores de Corridas de Rua, foram mais de 2,8 mil eventos de corrida de rua realizados no Brasil em 2024, número 29% maior em comparação com o ano anterior. Além disso, segundo dados do Relatório Anual sobre Tendências de Esportes do Strava divulgado em dezembro de 2024, a corrida foi o esporte mais praticado do ano, sendo o Brasil o segundo país com mais atletas.
Os resultados dessas pesquisas mostram o crescente aumento do interesse das pessoas no esporte. Porém, mais do que uma atividade física, a corrida de rua tem se consolidado também como uma poderosa ferramenta de transformação pessoal. Praticantes relatam como o esporte os ajudou a enfrentar quadros de depressão, perdas familiares e problemas de saúde. A prática, acessível e em constante crescimento, se tornou uma nova forma de socializar e fortalecer a autoestima.
A reportagem conversou com três corredores amadores que vivenciam na rotina esportiva uma verdadeira virada de chave na vida. Com histórias distintas, eles têm em comum o fato de enxergar na corrida um ponto de recomeço.
Superar os próprios limites e recomeçar
“Foi a corrida que estabilizou minha saúde mental”. Quem disse isso foi a servidora pública e corredora amadora Lorena Bittencourt, que viu na corrida uma forma de resgatar o equilíbrio emocional e reencontrar o próprio bem-estar. “Começar a correr foi uma busca por saúde mental, por incrível que pareça... Foi na atividade física que eu me encontrei e que melhor me estabilizou, que melhor fez eu me sentir bem”, afirma.

Lorena conta que, antes de entrar para o esporte, estava pré-diabética e passava por crises de depressão frequentes. Porém, a partir de quando começou a se dedicar aos treinos, obteve grande evolução tanto no bem-estar psicológico quanto na saúde física. “Perdi 11 quilos, consegui controlar meu peso, sair da pré-diabetes, manter os níveis de colesterol sob controle... Mas o que mais me impactou foi a manutenção da estabilidade emocional. Já faz uns dois ou três anos que não tenho nenhuma crise depressiva”, compartilhou
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A transformação dela se estendeu também à rotina, que hoje ela considera ser mais saudável. Entre treinos às 5h da manhã, compromissos profissionais e a maternidade, Lorena conta que organiza o dia como um verdadeiro malabarismo. “O dia tem 24 horas e você vai ver como consegue encaixar tudo... acordo às 4h20, treino, cuido do meu filho, estudo e trabalho. A gente vai levando da melhor forma possível”, disse.
Para Lorena, a corrida teve também um importante papel na vida social ao proporcionar novas amizades e possibilidades de conhecer lugares novos. “É uma coisa muito bacana. Essa socialização no meio da corrida, esse vínculo que criamos com as pessoas que têm o mesmo objetivo é muito maravilhoso. São pessoas diferentes, você conhece pessoas de idades diferentes, que já são avós, outros que ainda nem não tem filhos, uns que casados e outros divorciados. É uma gama de pessoas que você conhece com objetivo de correr maratona, viajar, curtir e vida”, enfatiza.

Hoje, Lorena considera a corrida um dos estímulos para viver. “A corrida te motiva a viver um dia de cada vez, a respirar, a limpar a tua mente. Quando eu estou correndo não consigo pensar em outras coisas, eu consigo pensar só em respirar e conseguir chegar no final”, disse.
Inspiração para outras pessoas
Assim como Lorena, Márcio Souza, acadêmico de Educação Física, encontrou na corrida de rua um novo recomeço. “Na época, eu estava afundado no álcool, no cigarro e principalmente na depressão. Tomava três medicamentos controlados. A corrida me ajudou a sair disso. Eu tinha uma autoestima muito baixa e vergonha de mim. Eu olhava para as pessoas e pensava: ‘Eu sou inferior!’ e a corrida ajudou minha autoestima e autoconfiança. A partir da prática da corrida eu comecei a ser mais confiante, comecei a acreditar mais em mim”, conta.

Quando começou a correr, Márcio estava em busca de saúde física após atingir a obesidade grau um. Contudo, a relação dele com o esporte ganhou um significado muito mais profundo. Ele conta que perdeu um filho de sete meses de idade em abril de 2024 e viu no esporte um tipo de refúgio para a dor. “Tudo que eu faço hoje em dia eu dedico ao meu filho. Qualquer meta que eu bata, qualquer prova difícil que eu consiga concluir é para meu filho. Então a corrida de rua já me fez meio que superar um luto e melhorar mil vezes a minha saúde mental”, compartilha.

Atualmente, Márcio treina com a equipe Ozzie Runners, em Ananindeua, e se tornou um incentivador de outras pessoas em situação semelhante. “É uma felicidade imensa ver pessoas buscando superação. Recebo mensagens de gente dizendo que se inspirou na minha história. Isso não tem preço”, afirma.
Segundo ele, a corrida é uma das práticas mais democráticas que existem. “Para quem quer começar a correr agora eu diria que o principal é a força do querer, eu falo isso para todo mundo. Você tem que querer, acreditar em si e sempre respeitar as suas limitações, ter uma constância de treinamento e principalmente comprometimento consigo mesmo , além de procurar um profissional”, completa.
Correndo contra a dor
Dora Souza, também é moradora de Belém e entrou para o ‘mundo da corrida’ como um gesto de sobrevivência. Após perder o marido de forma repentina em abril de 2024, e com um incentivo de amigos que já praticavam o esporte, ela encontrou na corrida um caminho para enfrentar o luto e reconstruir a vida.

“A corrida tem o potencial de transformar diversos aspecto, ela melhora a saúde física e mental, aumenta a disposição, promover a socialização e proporcionar uma sensação de bem-estar e autoconfiança. Depois que perdi meu marido não conseguia dormir. As pessoas me falavam para tomar algum remédio, mas eu não queria isso pra minha vida. Depois que comecei a correr tudo mudou, hoje durmo bem, tenho energia pra dar e vender”, conta.
A primeira corrida oficial de Dora foi feita de forma não inscrita, “na pipoca”, e aconteceu no Dia dos Pais. “Foram sete quilômetros chorando. Era a primeira vez que saía de casa depois que perdi meu marido. Esse dia marcou o início de uma nova história”, afirmou.
Atualmente integrante da equipe Papãoléguas, Dora destaca a importância das redes de apoio encontradas dentro do esporte. “Correr em grupo cria um senso de responsabilidade mútua e torna mais difícil desistir. Os corredores já nascem amigos, só precisam se encontrar”, disse.

Para ela, a dica é não esperar o momento perfeito ou uma condição física ideal. “Apenas coloque o tênis que tiver e vamos correr. Se não conseguir correr, caminhe! Mas vamos!”, brincou.
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O crescimento do número de corredores amadores é visível nas ruas e em provas organizadas em Belém. Tanto para Lorena, quanto para Márcio e Dora, isso reflete uma mudança no comportamento social.
“As pessoas estão priorizando o autocuidado e a qualidade de vida. A corrida tem um retorno rápido, tanto físico quanto mental”, disse Lorena. Márcio destaca o caráter democrático do esporte. “Não é só colocar um tênis e sair correndo, mas é um esporte acessível, com potencial de mudar vidas. Quando alguém me diz que começou a correr porque viu minha história, isso me dá orgulho de onde cheguei por meio do esporte”.
Já Dora acredita que a corrida virou um fenômeno social. “Muitos brasileiros encontram na prática um estilo de vida e uma forma de superar limites e desafios pessoais. Ouvimos muitas histórias e fizemos muitos amigos”, conclui.
As histórias de Lorena, Márcio e Dora são diferentes, mas compartilham uma essência comum: a corrida foi o caminho para recuperar o controle sobre a própria vida. Com disciplina, apoio e persistência, eles superaram desafios emocionais, físicos e estruturais para transformar o esporte em ferramenta de reconstrução.
“Hoje em dia a frase que eu carrego comigo é: ‘Eu vivo para correr e corro para viver. Se não fosse a corrida, talvez eu não sei como estaria hoje em dia”, finaliza Márcio.
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