O nigeriano Geoff Ijomah acha graça da pergunta se Pelé (1940-2022) pode ser considerado um ícone da luta dos negros na sociedade. Para o psiquiatra de 57 anos, que vive em Lincoln, na Inglaterra, o histórico jogador brasileiro, que morreu no final do ano passado, era muito mais do que o de um atleta profissional.
"Eu tenho um diploma médico porque Pelé me mostrou ser possível para um jovem negro que vivia em Glasgow na década de 1970 ter sucesso", explica.
"A influência que Pelé teve na minha vida foi enorme. Se você é uma criança negra que cresce fora do seu país, em uma cultura diferente, precisa de exemplos que lhe mostrem até onde pode chegar. Ele se destacou sobre todos os outros. Sempre foi uma inspiração", concorda o sindicalista Ude Joe-Adgwe, 55, também nascido na Nigéria. Ele se mudou para o Reino Unido com a família quando era criança.
Após a morte do Rei, no último dia 29, eles se lembraram do esforço que fizeram para conhecê-lo. Pagaram cerca de 900 libras (cerca de R$ 5.600 pela cotação atual) para participar de um evento no Crowne Plaza Hotel, em Glasgow, na Escócia, em setembro de 2016.
Os dois queriam contar ao camisa 10 a importância que ele teve em suas vidas.
"Pelé foi humilde, atencioso e me passou a imagem de ser alguém muito simples. Mas não havia tempo
para conversar", constata Ijomah.
Ijomah e Adgwe nasceram na Nigéria na região de Biafra, que tinha pretensões de ser um Estado independente, o que desencadeou uma guerra civil entre maio de 1967 e janeiro de 1970. A Guerra de Biafra, como ficou conhecida, está marcada na mitologia da carreira de Pelé.
Uma excursão do Santos pela região em 1969 teria provocado a paralisação do conflito. Segundo essa versão, Pelé interrompeu a guerra, o que teria feito com que Pelé interrompesse uma guerra por alguns dias. Controversa, a versão não é corroborada por pesquisadores do assunto.
As famílias dos dois nigerianos estavam no Reino Unido quando estourou o conflito e não puderam voltar.
"A Copa do Mundo de 1970 teve um impacto enorme na minha vida. Foi a primeira vez que vimos futebol na TV em cores. E a imagem de Pelé se destacava", diz Ijomah.
Ele recorda que, nas emissoras do Reino Unido naquela década, não apareciam em destaques muitos esportistas negros tendo sucesso. Eram Pelé e mais um.
"Também havia Muhammad Ali, mas sem o mesmo destaque de Pelé", completa.
"Era raro ver jogos internacionais no Reino Unido e em outros países da Europa. A exceção era Pelé. Ele era sempre o principal nome", ressalta Ude Joe-Adgwe.
Para a comunidade de refugiados na Escócia, as pessoas com que conviviam Adgwe e Ijomah, o Rei do futebol era mais do que a imagem de um negro capaz de ser superastro no esporte mais popular do mundo.
Ele era destaque em uma época anterior ao Ato de Relações de Raça, lei decretada pelo governo britânico em 1976 para conter a discriminação racial. Até então, eram comuns placas em bares e restaurantes avisando sobre a proibição da entrada de diferentes etnias. Aquilo não era crime.
Os dois nigerianos viram várias vezes placas que diziam ser proibida a entrada de "irlandeses, negros e cachorros".
O pano de fundo era a tensão da região nas décadas de 1970 e 1980. O primeiro negro a ser convocado para a seleção inglesa foi o lateral Viv Anderson, do Nottingham Forest. Isso ocorreu apenas em 1978.
Mesmo depois disso, atletas negros que conseguiram chamar a atenção, como o ponta John Barnes, eram alvos de constantes ataques raciais nos estádios.
Ijomah e Adgwe receberam com surpresa a morte de Pelé. Sabiam que ele estava no hospital, mas acreditavam que sairia. As homenagens na imprensa britânica e entre torcedores mostrou, inclusive para os mais jovens que jamais viram o brasileiro em campo, o seu lugar na história.
"Já tinha ouvido que Pelé nunca jogou na Europa, nunca jogou no Reino Unido... Mas, quando morreu, foi muito significativo. As gerações mais novas viram. Meus sobrinhos perceberam e me disseram: 'Ah, isso foi o Pelé!'. Foi como se o rei da Inglaterra tivesse morrido", constata Ijomah.
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