A caça ilegal de felinos selvagens na América Latina pode ter sido facilitada pelo crescimento do investimento chinês, aponta estudo internacional liderado por pesquisadora brasileira.
No artigo, publicado na revista científica Conservation Biology, os cientistas avaliaram apreensões de caça ilegal desses animais divulgadas na mídia em cinco idiomas -português, holandês, inglês, espanhol e mandarim- entre 2012 e 2018.
As mercadorias eram originárias de dezenove países da América do Sul e Central e incluíam principalmente onças-pintadas (Panthera onca), mas outros felinos, como jaguatiricas (Leopardus pardalis) e pumas (Puma concolor), também foram encontrados.
Nos países envolvidos, 34% dos contrabandos tinham como destino final a China, e o número de indivíduos por apreensão era quatorze vezes maior do que normalmente é confiscado no tráfico local.
A maior parte das apreensões era composta de partes do animal, como cabeça, patas e dentes.
"Notamos que havia um padrão, pois normalmente nas caças relacionadas ao tráfico local ou quando os animais são mortos por conflito são encontradas carcaças inteiras. Começaram a surgir notícias de felinos decapitados ou sem patas a partir de 2014, principalmente na Bolívia", explica Thaís Morcatty, bióloga e principal autora do estudo.
Morcatty estudou em seu mestrado a caça e o comércio regional de animais na Amazônia, com foco para o mercado doméstico. Agora, em sua pesquisa de doutorado em antropologia na Universidade de Oxford Brookes, buscou ir além e entender as relações da caça ilegal para tráfico internacional na América do Sul.
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Como esse padrão fugia do observado com o comércio local, a hipótese de Morcatty e seus colaboradores era de que essas partes de felinos substituiriam tigres e leões no mercado de países asiáticos.
Tradicionalmente, ossos de tigres e leões são comercializados na Ásia para uso na medicina tradicional. Essa demanda já foi apontada como um dos fatores que levaram à redução drástica das populações de tigres no mundo, hoje com cerca de 4 mil indivíduos na natureza.
Já os dentes e as peles são usados em artigos de decoração, luxo e criação de joias. A procura por outros grandes felinos foi evidenciada já nos anos 1990, quando começaram a ser reportadas as primeiras apreensões de caninos de onças na China.
"Observei que existiam muitas apreensões e que eram maiores em alguns países do que outros. Uma das nossas hipóteses pretendia justamente testar as correlações entre essas apreensões e o tráfico ilegal chinês, uma vez que no país asiático já tinham sido reportadas partes de onças confiscadas."
Embora não houvesse informações muito claras para o tráfico de partes de animais, os pesquisadores se basearam no conhecimento prévio para o tráfico de armas, drogas ou pessoas, que indicava um aumento do tráfico ilegal quando havia um mercado legal estabelecido.
"Se um país não tem investimento chinês e recebe dinheiro da China, a aduana pode suspeitar de algo. Mas se já existe um mercado que favorece o fluxo de milhões anualmente, esse valor extra do tráfico ilegal pode passar despercebido", diz.
Os pesquisadores encontraram uma forte correlação -cerca de 10 a 50 vezes- entre a abertura do mercado para a potência asiática e o aumento de apreensões. Baixa renda per capita e alto índice de corrupção também contribuíram para o tráfico internacional.
Dentre os países estudados, o Brasil foi o que mais concentrou apreensões no período analisado: foram reportadas 61 mercadorias ilegais confiscadas pela Polícia Federal ou agências federais, como o Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente).
No entanto, por ser o país da América do Sul com a maior área de distribuição das onças-pintadas, era esperado que houvesse um número expressivo de capturas, explica Morcatty.
O Brasil teve a menor proporção de apreensões com a China como destino final: só 4 das 61 apreensões (6,5%) eram destinadas ao país chinês. Por outro lado, muitas das mercadorias confiscadas não tinham destino final informado.
Já o país que mais matou onças para entrada no mercado ilegal chinês foi a Bolívia: 76% das apreensões reportadas tinham como destino a potência asiática.
Para Morcatty, é preciso cautela ao avaliar a correlação entre o investimento chinês e o número de apreensões de comércio ilegal.
"Não queremos dizer que os chineses são causadores disso nem afirmar que são eles que estabelecem o tráfico. O mercado ilegal é conhecido em todo o mundo e ocorre amplamente, nossa pesquisa apenas apontou uma tendência de oferta e demanda que foi facilitada por um estabelecimento do mercado nesses países, quando na ausência de políticas públicas locais e de extrema pobreza."
Carlos Durigan, outro autor do estudo e diretor da WCS Brasil (Sociedade para Conservação da Vida Silvestre, na sigla em inglês), relata que achados de carcaças de onças na região norte do país começaram a ser mais frequentes nos últimos anos.
"Temos que considerar que o artigo trata apenas da ponta do iceberg, pois só considera as apreensões que foram reportadas. O que deve passar sem ser confiscado é muito maior."
A onça-pintada se encontra atualmente em risco de extinção devido à destruição do seu habitat. Como todo felino de grande porte, as onças precisam de grandes áreas para viver, e a degradação e a destruição das florestas, principalmente associadas ao cultivo agrícola latifundiário, são uma ameaça à sua distribuição.
Durigan explica que pretendem agora pesquisar mais a fundo o comércio ilegal de onças no continente.
"As onças, por serem animais em risco de extinção, estão protegidas segundo um acordo internacional que proíbe sua comercialização. Mas as fiscalizações ainda são muito dificultadas, principalmente por causa da extensão do território amazônico."
O geógrafo reforça que a ausência de políticas públicas adequadas para gerar renda e desenvolvimento sustentável às comunidades, principalmente em regiões afetadas pela criação de estradas ou de forte degradação, influenciam a caça ilegal.
"Políticas públicas voltadas para o desenvolvimento da região dependem de processos participativos. É importante ter lideranças do governo, da sociedade civil, por meio de ONGs ou representações comunitárias, e das universidades. A WCS Brasil tem atuado com iniciativas que unem essas três frentes na Amazônia com bons resultados", afirma.
"O problema principal que enfrentamos é falta de recursos que nos possibilite crescer em grande escala, especialmente quando o apoio do governo federal é fragmentado. O Fundo Amazônia, principal investimento para políticas de conservação na Amazônia, foi cortado em 2019", finaliza.
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