Um dos grandes alertas que soaram com a pandemia de COVID-19 foi a necessidade urgente de ampliar no Brasil o monitoramento de zoonoses, doenças infecciosas transmitidas entre animais e pessoas. Sabe-se que o desmatamento progressivo das florestas favorece o que os cientistas chamam de spillover, ou seja, o transbordamento de patógenos de espécies silvestres para os humanos. Acredita-se que desse modo tenham emergido enfermidades como Aids, ebola, doença de Lyme, malária, raiva e, muito provavelmente, a COVID-19.
A necessidade de maior monitoramento e de outras estratégias para evitar o surgimento de novas pandemias foram os temas debatidos no quarto e último webinário da série “Saúde e Ambiente na Amazônia no contexto da COVID-19”, realizado no final de agosto.
A proposta de debate partiu de pesquisadores que integram o projeto "Depois das Hidrelétricas: Processos sociais e ambientais que ocorrem depois da construção de Belo Monte, Jirau e Santo Antônio na Amazônia Brasileira", apoiado pela FAPESP no âmbito do programa São Paulo Excellence Chair (SPEC).
“A pergunta que fica é por que até agora nenhuma pandemia teve início no Brasil. As áreas tropicais com alta diversidade de mamíferos são vistas como pontos de risco para a emergência de zoonoses e doenças infecciosas. Mas a verdade é que ainda estamos muito mais importando agentes infecciosos do que exportando. No entanto, a recente aceleração do desmatamento, sobretudo na Amazônia, no Pantanal e no Cerrado, nos permite imaginar o que pode vir pela frente”, disse Márcia Chame, pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz-RJ).
Chame é coordenadora do Centro de Informação em Saúde Silvestre (CISS) e afirma que o atual cenário de devastação ambiental aumenta ainda mais a necessidade de monitorar animais considerados sentinelas de zoonoses, como é o caso dos macacos e da febre amarela.
“No Brasil ainda não temos monitoramento suficiente nem bons modelos de predição que nos permitam identificar com precisão onde estão os focos dessas emergências. É um trabalho extremamente necessário, mas difícil de ser realizado, pois exige o envolvimento de uma equipe multidisciplinar de pesquisadores, dos governos e também da população”, afirmou a pesquisadora.
O grupo da Fiocruz desenvolveu o aplicativo Sistema de Informação em Saúde Silvestre (SISS-Geo) que permitiu, durante o surto de febre amarela de 2018, monitorar e prever futuros focos da doença. Só na região Sudeste do país foram quase 3 mil mortes causadas pelo vírus naquele ano.
“Nosso trabalho de monitoramento permitiu compreender os caminhos da doença. Transpusemos esses corredores para o Paraná e para Santa Catarina e, com o aplicativo usado pelos municípios [acompanhando a morte dos macacos], foi possível classificar as áreas conforme o grau de risco. Isso permitiu planejar a vacinação da população, antecipando nas regiões prioritárias e estruturando equipes para as áreas rurais e mais isoladas”, comentou.
Relação direta
Marcus Barros, ex-presidente do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa) e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), ressaltou a relação entre o desmatamento e os sucessivos surtos ou o surgimento de novas doenças na região amazônica.
“Hoje, acompanho alarmado as notícias sobre o desmonte das políticas ambientais na Amazônia e suas enormes consequências para o meio ambiente e a saúde das populações humanas. Sabemos que o desmatamento é o fio condutor para a propagação de doenças e que o meio ambiente e a saúde estão muito ligados”, disse.
De acordo com Barros, não por acaso, houve historicamente uma relação entre os surtos de malária e o avanço do garimpo de ouro ou de grandes projetos de infraestrutura na Amazônia. “Outro caso interessante é a doença de Chagas, que antes não ocorria na Amazônia. Porém, ela apareceu nas cabeceiras dos rios entre os produtores de açaí e araçá”, contou.
Barros também notou a ligação entre desmatamento e casos de leishmaniose ainda nas décadas de 1970 e 1980, quando era professor. “Quanto mais se desmatava, mais surgiam novos casos da doença. Tivemos essa constatação com a ocupação do bairro São José Operário [no leste de Manaus], na década de 1980. Em questão de dias subiram de 30 para 200 os casos de leishmaniose tegumentar, formando uma relação direta entre a doença, o desmatamento e a ocupação desordenada do espaço regional”, afirmou.
Ao longo de 50 anos atuando como médico e professor de infectologia, ele também acompanhou o surgimento de novas doenças na região. “É o caso da febre hemorrágica de Altamira, a febre negra de Lázaro. Também não existia aqui na região amazônica a leishmaniose visceral, nem a doença de Chagas.”
O professor defende que a política de saúde para a Amazônia deve ser diferente do restante do país devido às características da região, especialmente no que se refere ao clima, à densidade demográfica e à grande diversidade étnica.
“A COVID-19 chegou à Amazônia num contexto de estímulo ao desmatamento pelo atual governo. Em princípio, os poderes locais minimizaram os riscos. Os necessários cuidados preventivos foram negligenciados. Nem sequer foram levadas em conta as características regionais, como o fato de os povos indígenas apresentarem baixa resistência a doenças virais, fato amplamente conhecido. Não houve um planejamento, nem melhora da infraestrutura médica. Ao contrário, foi criada pelo governo central uma estratégia totalmente anticientífica, como a distribuição de medicamentos sem qualquer eficácia contra a COVID-19”, finalizou.
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