As cenas da invasão e destruição aos prédios oficiais dos três poderes da República no último dia 08 de janeiro, em Brasília, ficaram marcadas como um ato não visto anteriormente na história da democracia recente do país. O ataque às instituições democráticas brasileiras, ainda que verbal, não é realmente uma novidade no cenário do país nos últimos anos, sobretudo após o resultado das Eleições 2022. Mas é possível compreender de que maneira discursos e atos extremistas se tornaram uma realidade ao ponto de provocar barbaridades como as vistas na capital federal nos primeiros dias de 2023?
A cientista política e professora universitária Karen Santos considera que, quando se olha para os movimentos antidemocráticos que acabaram mostrando sua face mais violenta no sentido público e institucional no domingo, é possível perceber que, na verdade, essas organizações ocorrem no momento em que, segundo a professora, as instituições são muito tolerantes com a intolerância.
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“Primeiro, é muito importante saber qual foi das instituições que errou em relação à prevenção. A gente consegue perceber que o Distrito Federal, a nível estadual, teve um papel fundamental para a tolerância em relação à presença e ao número de policiamento muito reduzido. Geralmente, até em atos que são de fato considerados pacíficos, se tem um número muito maior de policiamento em relação à proteção do patrimônio público do que o que se viu no domingo. Outro ponto é a própria instituição de inteligência, como a ABIN, por exemplo, que teoricamente já estudava essas células antidemocráticas no Instagram, eram grupos completamente abertos”.
Karen chama a atenção para o fato de que, tal qual ocorreu no ataque ao Capitólio, nos Estados Unidos, os grupos foram organizados através das redes sociais. No caso do Brasil, a cientista política aponta que foram utilizados grupos no Twitter, no Instagram, no Telegram e no WhatsApp que também estavam abertos e vinham sendo acompanhados pelo sistema de inteligência.
“A primeira hipótese é que se subestimou muito o poder de depredação, violência e ação que esses grupos poderiam fazer”, considera, ao apontar que, diante de danos irreparáveis e simbólicos, o que se espera é uma ação mais dura por parte das instituições democráticas. “Eu acredito que haverá um endurecimento a partir de agora, eu acredito que o movimento de anistia a qualquer integrante por mais frágil que seja a sua influência, não haverá. E se houver, vai ser um perigo para que novamente isso aconteça. Então, nós acreditamos que haverá uma atitude mais enérgica por parte das instituições”.
Há que se considerar, também, que quando se fala da atuação da polícia, está se tratando de um exercício profissional. O policial concursado que está nesta carreira atende a um Regimento Jurídico que é diferenciado no caso dos policiais e que prevê punições como prisão ou expulsão da corporação, portanto, há uma série de riscos envolvidos nessa atuação. “Na Ciência Política tem uma teoria chamada de Burocracia a Nível de Rua, que se enquadra na função do Policial Militar. É ele que, a partir de sua atuação, irá determinar se aquela lei é, de fato, muito importante ou pouco importante. Então, quando ele escolhe reprimir, ele está dizendo que o Estado está apontando que aquilo é extremamente errado. Quando ele resolve não reprimir, ele está dizendo que o Estado concorda com aquilo, então, naquele momento ele é a materialização da lei”, analisa a professora.
“É necessário uma reestruturação do cargo de policial, do processo de formação desse policiamento, de quais cursos de formação são dados e que devem envolver, sim, o contato com o público, afinal, o policial serve ao cidadão. Ele não é só uma figura importante de poder de polícia do Estado, ele é uma figura de proteção do cidadão. A sua máxima, a sua principal função é proteger e servir o cidadão”.
DIMENSÃO
Mais do que em alguns setores das polícias, também se observa a impregnação de ideias extremistas em uma parcela da sociedade, o que dá a dimensão do que vem acontecendo no país nos últimos anos. Apesar dos muitos elementos envolvidos, o doutor em sociologia e professor efetivo do departamento de filosofia e ciências sociais da Universidade do Estado do Pará (Uepa), Raimundo Miguel dos Reis Pereira, considera que é possível, sim, compreender este cenário. “Primeiramente, esses movimentos golpistas, os atuais inspirados no bolsonarismo, não são a causa, temos que ter isso muito claro. Eles são a consequência. Eles têm como causa as causas históricas, o processo de refazer a democracia brasileira é que é a causa”, considera. “Nós não conseguimos refazer a nossa democracia e, com isso, ela continua ainda instável e sem conseguir um amadurecimento, seja pelo tempo e também pela forma como se está conduzindo”.
O professor considera que o Brasil tem uma constituição elogiada internacionalmente, mas que, sozinha, não soluciona o problema, na medida em que faltaram ações importantes para se dar uma resposta mais clara a qualquer nova tentativa de golpe. “A nossa constituição foi a responsável por colocar um freio normativo nos movimentos golpistas. Tudo que você quiser fazer, do ponto de vista legal, para impedir as aberturas golpistas está na constituição. É só aplicar o que está previsto lá”, contextualiza.
“Mas o que ocorreu foi que nós aprovamos e promulgamos a nossa constituição, depois vieram os governos e quando foi na hora de punir aquelas pessoas que cometeram torturas, não foi feito isso. Se você pega o exemplo de outros países, do Chile, do Paraguai, a situação foi diferente. Um exemplo recente é que mesmo com um governo de direita no Uruguai, em uma solenidade um general foi se pronunciar a favor da ditadura lá e o presidente do país imediatamente decretou a prisão dele”.
É preciso compreender os movimentos históricos
Raimundo avalia que, pelo o que se observa, os governos democráticos brasileiros acreditavam que as ideologias de extrema-direita e fascistas haviam se desmanchado, na medida em que tinham a convicção também de que, na democracia brasileira, as instituições estavam consolidadas e blindadas. No entanto, o que se tem visto nos últimos anos são pessoas repetindo discursos antidemocráticos.
“Quem acompanhou o que aconteceu no fatídico dia 08 de janeiro e se preocupou em aprofundar a análise das imagens percebeu que muitos daqueles que invadiram os prédios do judiciário, legislativo e executivo não tinham muita consciência exata do que iriam fazer, mas que por trás disso existe uma inteligência, pessoas que têm conhecimento e que são experientes e que sabiam o que estava sendo feito”, avalia.
A própria expressão deliberada de ódio à democracia, representada muitas vezes nos cartazes levantados por integrantes de movimentos golpistas como o que ocorreu em Brasília, não é algo recente. “O que aconteceu com a sociedade brasileira que não conseguiu desenvolver mecanismos para impedir atitudes extremadas? O Estado, apesar de estar funcionando, não conseguiu impedir atitudes extremadas desde quando isso está sendo repetido, desde quando, talvez, o então deputado Bolsonaro clamou e elogiou Brilhante Ustra na Câmara dos Deputados. Naquele momento, como foi no caso do Uruguai, o presidente da Câmara deveria ter imediatamente dado voz de prisão para ele”, acredita Raimundo Miguel. “É preciso olhar pelo retrovisor da história. Nós temos concepções machistas e escravistas que são herança ainda do Brasil colônia. Nós ainda não superamos, temporalmente, o período do Brasil colônia com o período democrático. Esse é o momento maior de democracia que nós já vivemos ao longo da nossa história, essa democracia que vivemos atualmente”.
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