V.G.TAO” foi o nome dado pela designer de moda paulistana Ludimila Heringer à sua última coleção, como uma forma poética ou simbólica de dizer “vegetal”. A designer, que está radicada no Pará desde 1984, acredita que as pessoas estão mais interessadas aos produtos artesanais e atentas à cadeia de produção: de onde vem o material, se é amigo do meio ambiente ou menos agressivo, quem faz, se não há trabalho escravo, a durabilidade, o design e a exclusividade. Ela passou a perceber isso desde a época em que participava de bazares e feirinhas em meados de 2014 e 2015, quando o mercado autoral local começou a ter visibilidade, com muitas pessoas que haviam perdido o emprego investindo nas manualidades em geral e fazendo a venda “face to face”. Acreditando nisso, ela vem construindo uma moda única, feita à mão e com preocupação com o meio ambiente.
Ludimila Henriger firmou seu nome criando acessórios de moda em crochê, mas com o tempo a linguagem precisou se expandir.“A coleção ‘V.G.TAO’ era um desejo antigo que eu tinha desde que tive conhecimento da estamparia botânica ou ecoprint, em 2014. Como não sabia nada de tingimento natural, comecei a comprar retalhos de uma tintureira, fiz um rápido workshop, mas não levei em frente. Continuei com o crochê, contudo as coisas foram naturalmente evoluindo. Passei a criar peças de vestuário em crochê, e decidi fazer um mix de técnicas e materiais, unindo tecidos tingidos e estampados com crochê. Eu não costuro, mas criei todos os modelos da coleção e fiz todo o crochê, sendo que o de algumas peças também recebeu tingimento natural”, explica Ludimila.
As peças são todas com tingimento natural, feitas com folhas, cascas, raízes, sementes e flores. Processo totalmente artesanal, sem química e os resíduos podem ser lançados fora sem risco de poluição, pois são naturais, e ou vão para horta, ou jardim. “Desejo que essa pausa que a pandemia causou tenha solidificado esse novo olhar para que a moda artesanal, slow fashion, feita pelo pequeno produtor, possa ser valorizada e usada cada vez mais”, destaca Ludimila.
GOIABEIRA
O trabalho de “V.G.TAO” foi inspirado em uma folha de goiabeira que ela viu estampada em um tecido. Foi paixão à primeira vista pelos detalhes e ali decidiu criar a coleção. O primeiro passo foi ir ao seu estoque de retalhos para ter uma inspiração sobre o padrão de cores que usaria, definir o que queria e encomendar da tintureira.
“Quando os tecidos chegaram fiquei 15 dias com todos eles no chão da minha sala, admirando e criando possibilidades. O padrão que escolhi foi um mix de estamparia com folhas de goiabeira e tingimento com cascas de cebola. Como tinha pouco tempo para produzir, inseri o crochê em detalhes. Participo da ‘Amazônia Fashion Week’ desde 2017, e a coleção deveria estar pronta para desfile no início de novembro. Os tecidos chegaram no final de agosto, mas a costureira só pôde fazer a costura depois do Círio. Então, foi uma correria, já que queria fazer o editorial antes do desfile lá no Combu, mas deu tudo certo e ficou maravilhoso. Foram 15 looks, alguns com duas peças. O conceito da coleção é mostrar que a natureza e as manualidades têm potencial para produzir moda, e que o slow fashion é o futuro para o bem das pessoas e do planeta. As peças são únicas e atemporais”, pontua Ludimila.
Crochê foi o fio da meada
Peças da coleção “V.G.TAO” foram destaque de uma matéria da revista “Manequim” na edição de fevereiro deste ano, em uma reportagem que valorizava bem o handmade (feito à mão) e a moda slow fashion. A repercussão foi um sucesso e Ludimila Heringer já planeja a “V.G.TAO 2” com todos os tingimentos de tecidos e fios feitos por ela, que durante o isolamento social passou estudar a técnica e a fazer ela mesma o tingimento usando viscose e cambraia de linho nos testes atuais.
“Fazer a ‘V.G.TAO 2’ vai depender do andamento dessa pandemia, pois só farei se der para realizar o editorial. Nela quero usar somente matérias-primas da região e, como não testei todas que escolhi, ainda está em aberto o que vou usar. Mas eu irei tingir os fios e tecidos com o mesmo material e criarei composições com os tecidos e crochê”, adianta a designer, já revelando os primeiros insights. “Vou fazer o mix de algumas técnicas de tingimento e ecoprint, por exemplo tecido com ecoprint de pariri e crochê no fio de algodão tingido com pariri”, conta.
COMEÇO
E tudo começou pelo processo de criação de tecidos usando a agulha e algum fio contínuo, normalmente lã, fio de algodão ou seda. Estamos falando do crochê, e foi essa arte manual que fez aflorar o talento de Ludimila. Aos 8 anos ela aprendeu a técnica manual e fez sua primeira peça, um poncho para protegê-la do frio e ir para escola em São Paulo.
“Eu sou uma maker, preciso estar fazendo algo sempre. Daí o crochê proporciona tudo isso, você leva para qualquer lugar, basta ter uma agulha e linha. Eu faço quando estou no aeroporto ou na sala de espera para uma consulta”, diz Ludimila, admitindo que essa paixão por linhas e agulhas de certa fora demorou a pegar. “No decorrer da vida a gente se envolve com tanto trabalho e compromisso que esqueci o crochê por muitos anos. Ele ressurgiu quando tive que trabalhar em Manaus e ficava três semanas longe de casa, sozinha no hotel à noite, daí resolvi recomeçar para passar o tempo. Nessa época surgiu o fio de malha, uma alternativa sustentável, já que é resultante do resíduo têxtil, e aí comecei e não parei mais. Produzia tanto que tive que abrir um ateliê e ia expor em feiras e bazares, e então me descobriram, fui para a ‘Amazônia Fashion Week’ e comecei a participar do grupo de moda do Polo Joalheiro”, orgulha-se.
Ela participou de três edições do “Amazônia Fashion Week”, desfilando bolsas de crochê feitas com fio de malha, até que em 2019, com a coleção “V.G.TAO”, sua produção ganhou nova projeção e chamou a atenção da editora da revista “Manequim”, que veio prestigiar a semana de moda local. A editora assistiu aos desfiles, pediu para levar peças de algumas participantes, entre as quais as de Ludimila, e o resultado foi estampar as páginas de uma publicação que até hoje é referência para quem trabalha com moda.
“Ter participado assim de uma mídia espontânea, gratuita, me envaideceu bastante, me deu orgulho mesmo, afinal isso mostrou que meu trabalho foi reconhecido e que eu estava no caminho certo”, destaca, feliz. E este caminho a leva para o reconhecimento na área que escolheu por vocação. “Apesar de não ter formação em Moda, me descobri estilista, no entanto, isso estava adormecido. Sempre usei revistas de moda para mandar fazer minhas roupas, já que desde adolescente não tinha o corpo padrão, muitas vezes eu mesma desenhava para a costureira fazer. E assim apareci, de designer de crochê, artesã, para estilista de moda”, destaca.
BONECAS
Bem no começo de tudo, ela fazia cestos, tapetes e bolsas de crochê no fio de malha. As bolsas a direcionaram para a moda, nas passarelas, ainda como acessórios, mas aquele universo no entorno - a produção, o casting, a passarela, as modelos - já a fascinava. O passo além veio quando sua secretária leu um e-mail do Polo Joalheiro falando sobre um workshop criativo que seria ofertado aos artistas de moda do local. “Eu nem sabia quem estaria lá, mas fui. Quando cheguei, descobri que a palestra seria com o André Lima, e que ele iria selecionar os participantes. Fiquei muito assustada, pois sabia que era um estilista famoso, paraense, e que já tinha desfilado por anos seguidos no ‘São Paulo Fashion Week’. Desanimei um pouco por achar que não produziria nada que ele estaria interessado. Contudo, fui escolhida na primeira seletiva”, recorda.
André Lima pediu para os participantes levarem o que produziam, e aí as peças de Ludimila se destacaram em meio ao conjunto. “Só eu fazia crochê no grupo de 32 artistas, onde tinha designers de joias, pessoas com formação em Moda, estilistas. Achei que eu não tinha nada a ver, afinal minha formação é em Odontologia, Direito e sou uma empresária industrial que se tornou artesã. Mas continuei. Depois de conversar com todos, o André disse que no grupo tinham muitas pessoas que produziam acessórios e ele precisava de mais vestuário. Ele perguntou, então, quem queria ir para o vestuário, e eu imediatamente levantei o braço (risos). Eu não sabia desenhar e quando foi para fazer os esboços dos looks provisórios decidi fazer roupinhas de boneca em crochê, fiz vários modelos com fios diferentes e enfiei a rafia num look. Levei e fiquei envergonhada de não entregar o desenho e mostrar roupinhas de boneca. ‘Fala sério’ - pensei - ‘É o André Lima, Ludimila!!!’”, acrescenta ela.
Estilista aproveita isolamento para preparar nova coleção
Adepta do mantra “Se der medo, vai com medo mesmo”, Ludimila Heringer foi com fé e coragem mostrar ao famoso estilista seu material. A iniciativa surpreendeu André Lima, que disse que esperava croquis, quando ela, um passo adiante, já chegou com protótipos. “Me chamou de maravilhosa (risos), pensa?! Ele disse que eu era uma artista, quase desmaiei (risos). Daí foram 9 meses de muito desafio: eu fazia uma coisa e ele não gostava, aí eu fazia outra e não estava bom. Demorei três meses até encontrar fornecedor de rafia, comprei todas as cores pra gente escolher, e ele amou. Comecei a fazer as criações e eu não acreditava que estava bom, não queria mostrar para ele. Enfim, foi um processo de autodescoberta mesmo, de renascimento da minha veia artística que tava adormecida”, conta a designer.
Apesar da dificuldade inicial - regada a muito choro - ela buscou absorver toda a orientação repassada por André Lima sem ressalvas, confiando nele totalmente. “Minha visão sobre o crochê foi muito individual, simples, mas que produziu uma imagem de moda muito potente”, avalia.
Assim nasceu a coleção “90 Graus”, de estreia da marca Ludimila Heringer como designer de vestuário de crochê.Já na segunda empreitada acrescentou a juta, em parceria com a empresa Jutacastanhal, produzindo uma coleção sustentável de telas de juta e crochê para bolsas. A terceira série foi de acessórios de crochê multiuso, para ser usada nos cabelos, como colares, pulseiras ou cintos, a “Nóh Colore”, de cores vibrantes, e a ‘Nóh Classique’ em tons neutros. Depois veio a coleção “Amor Amsterdam: Van Gogh”, que reproduziu em cores algumas telas do pintor que é uma paixão de Ludmila.
“A última foi a ‘V.G.TAO’, lançada em novembro de 2019. Tenho duas coleções cápsulas que seriam lançadas em abril e junho, mas a pandemia está impedindo a evolução, pois preciso de costureiras, modelos e fotógrafos. E tenho outra sendo criada para o segundo semestre, a ‘V.G.TAO 2’, se tudo der certo”, enumera.
Atualmente as peças de Ludimila Heringer, podem ser encontradas no Polo Joalheiro São José Liberto, pelo Instagram @ludimilaheringer e pelo site ludimilaheringer.com. E ela quer mais. “Eu acredito que o mercado local está se desenvolvendo, crescendo lentamente, pois existe ainda aquele viés do “que vem de fora é melhor”. Mas aqui temos muito material e pessoas talentosas que produzem e criam maravilhas. Mas tem que ter apoio maior. Deveríamos ter um Polo de Moda, algo que capacite e profissionalize toda a cadeia produtiva do mundo fashion”, pontua. “Eu acredito no manual, seja crochê, tricô, bordado, pintura, pois produzem algo único e especial”, finaliza.
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