Há décadas, diversos tipos de atividades dão vida à rotina acelerada do Centro Comercial de Belém, que representa uma forte característica do bairro da Campina, o segundo mais antigo da capital paraense. Com o passar do tempo, o número de pessoas que circula pelo local foi naturalmente aumentando, surgiram novos tipos de atividades e muitas delas permanecem até hoje. Cada pessoa que trabalha ali, sejam os trabalhadores informais ou os lojistas, certamente, tem muitas histórias vividas para contar.
Para quem vivencia essa experiência há décadas, é natural carregar memórias afetivas do tempo transcorrido. Para essas pessoas, o comércio é mais do que um local de trabalho. É um lar, que acolhe e é parte importante da vida de muitos. Foi com essa atividade que esses trabalhadores conquistaram sonhos, levaram o sustento para suas famílias e ajudaram outras pessoas, gerando emprego e renda.
Quem está por lá há mais tempo guarda lembranças boas e outras ruins, especialmente quem atua na informalidade. É o caso, por exemplo, do autônomo Tomé Rodrigues, 62 anos, que trabalha naquela área desde os 7 anos e chegou ao comércio numa época em que os ambulantes, segundo ele, sofriam perseguições por parte da administração pública, que passava para recolher mercadorias daqueles que não possuíam licença para desenvolver a atividade.
Criado apenas com a mãe e ainda muito pequeno, Tomé começou a fazer bicos no comércio, a convite de um amigo, já que a sua família passava muita necessidade. Foi ajudando esse outro trabalhador, à época, que a sua história começou ali e, desde então, se passaram mais de cinco décadas.
“Nasci no Jurunas e, com um filho sem pai, a minha mãe tinha que trabalhar para sustentar a família. E, como a gente passava muita necessidade, eu tive que vir pro comércio com sete anos de idade, tentando ajudar a família também. Agradeço muito a um amigão, que se tornou um pai pra mim, que é o Bené Lobato. Chamavam ele de presidente aqui no comércio, todo mundo conhecia. Ele quem começou a luta aqui do mercado informal”, relembra.
Ele lembra que os camelôs possuíam uma relação conflituosa com os empresários que atuavam no comércio. “A gente era tratado como marginal, os empresários tinham raiva. Aí mandavam o rapa. O chefe de operação na época (da prefeitura) tirava a mercadoria de você e ainda mandava prender. A gente colocava a mercadoria no cavalete e não podia arriar. Se arriasse, a polícia vinha e mandava tirar. Eu sei o que é ser perseguido por querer trabalhar honestamente e não poder. Hoje está muito bom. Graças a Deus somos respeitados e as leis mudaram”, disse Tomé, que é casado, pai de um filho e hoje é proprietário de um box na Rua Santo Antônio.
“Criei meu filho através desse trabalho. Agora a minha senhora me ajuda aqui. Tenho um box, as coisas melhoraram. Tudo o que eu sei hoje aprendi no comércio. Tem gente que me conhece, de velha guarda, e hoje sou conhecido como o ‘rei da água mineral’. Não me estabilizei totalmente, mas hoje tenho minha casa e vivo uma vida mais mansa”, acrescentou o trabalhador.
Outro trabalhador que dedica mais de 30 anos de trabalho no comércio é o autônomo Carlos Alberto Costa, 53 anos, que prepara e comercializa comidas típicas em um trailer, na Rua 15 de Novembro. Casado e pai de duas filhas, foi ele quem decidiu dar prosseguimento ao negócio iniciado pela mãe há mais de quatro décadas.
Ainda na infância, Carlos já ajudava a mãe, com quem aprendeu tudo. Anos depois ele assumiu o negócio e hoje conta com a ajuda de um irmão. E diz que a mãe foi uma das pioneiras na atividade, que é muito comum em todo o comércio.
“Desde os oito, nove anos já ajudava ela. Na época, a gente morava na Sacramenta e depois mudamos pra Ananindeua. Esse meu irmão já aprendeu comigo. Quando eu não venho é ele quem faz. Conquistei muitas coisas. Tenho minha casa própria, que tem tudo dentro. Minhas filhas estudaram, fizeram faculdade. As melhores épocas aqui são o mês do Círio e dezembro”, contou.
Carlos se orgulha de ter dado oportunidade de trabalho para muitas pessoas, que depois conseguiram emprego com carteira assinada em estabelecimentos do próprio comércio. “Um bocado de gente já passou por aqui. Eles estavam desempregados, aí colocavam currículo e com um tempo iam chamando, eles iam saindo e entravam outros. Na época da pandemia coloquei a venda na porta de casa, foi de lá que a gente tirou o sustento. Graças a Deus eu tenho muitos clientes. Tem que fazer coisas gostosas. Acho que todos gostam que conversem e tratem eles bem. E eles voltam de novo”, declarou o autônomo, que pensa em se aposentar da atividade somente por volta dos 70 anos.
TRADIÇÃO
Situada na Avenida Boulevard Castilhos França com a Rua 7 de Setembro, a Casa Laura é uma das lojas mais antigas e conhecidas da área, assim como o seu proprietário Raimundo Veloso, 92 anos, que está há 54 anos no comércio. Ele conta que começou a trabalhar em um supermercado no ano de 1964. A Casa Laura já existia na época e, alguns anos depois, o então proprietário vendeu a loja para Raimundo. Ele só conseguiu comprar graças a uma bonificação em dinheiro que havia recebido do antigo patrão.
A loja é tradição não só para o comércio, mas, sobretudo, para a família do sr. Veloso – como é conhecido –, já que foi com essa porta que ele criou os filhos e o negócio foi expandido por uma de suas filhas, que hoje mora em Marabá. Ela abriu cinco estabelecimentos no mesmo segmento. “Tudo o que eu tenho agradeço a Deus e à alma do dono do São João (Elias), que está no céu. No primeiro ano que passei lá ele me deu um presente de R$ 50 mil, na época, e eu emprestei ao dono daqui (da loja). E ele disse: no dia que eu for vender, a primeira pessoa que vou consultar vai ser o senhor. Me levanto todos os dias às 5h30 da manhã, faço café e venho pra cá com a minha filha”, disse ele, que já empregou muitas pessoas em sua loja.
Já Flávia Alcântara, 34 anos, trabalha com carteira assinada há 12 anos em uma tradicional loja de ervas medicinais e artesanato, na 7 de Setembro. A loja pertence a familiares e, por isso, ela já frequentava o estabelecimento muito antes de assinar a carteira. Os produtos comercializados ali despertaram o interesse e a curiosidade dela, que hoje ocupa um cargo de supervisão no local, sem deixar de atender e explicar tudo o que sabe sobre os produtos medicinais para os clientes.
O sorriso no rosto e a simpatia revelam o amor que Flávia tem pelo seu trabalho. Hoje ela nutre o desejo de cursar uma faculdade na área de farmácia ou administração para continuar atuando no segmento. “Quando comecei a vir pra cá fui pegando o gosto e aprendendo. Gravava as coisas rápido, os clientes começaram a gostar e eu fui ficando. Daqui já conquistei muitas coisas, graças a Deus. Tenho um lugar pra morar e, ao longo do tempo, conheci várias pessoas, fiz amizades. Sempre que a gente conhece alguém daqui, temos desconto pelo comércio. Tem muitas histórias de clientes que voltaram para contar que estavam curados. Teve uma cliente que tratou mioma, acompanhei ela por seis meses, e depois ela retornou para contar que estava curada”, pontuou ela, que é casada e mãe de duas meninas.
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