Quem pensa que vida de gato é fácil certamente não conheceu Tonha. A felina de cores rajada e branca, que carrega uma mancha nos ombros em formato de coração, leva uma rotina intensa. Não se deixe enganar se, pela manhã, ela está imóvel em seu sofá favorito. É quando a noite chega que ela demonstra toda sua exímia arte da caça, oferecendo pouca ou nenhuma chance para os ratos que passaram a invadir a residência dela e de Lázaro Leite, seu tutor.
“Dava muito rato por causa do terreno abandonado. A casa vivia com veneno espalhado por causa deles. Depois que a Tonha chegou, isso acabou”, narra com orgulho o consultor de vendas de 56 anos. A invasão dos roedores começou há pouco mais de seis meses. As visitas indesejadas tinham o hábito de sair do imenso prédio de dez andares, localizado ao lado, e marchar em direção à casa dos dois.
Tonha é um dos moradores do residencial Tucuruvi e cumpre com maestria a perseguição desenfreada em seu território. O cenário se repete em outras moradas, mas nem todos desfrutam da sorte de ter uma gata tão habilidosa. A maioria são bichanos de rua “adotados” com zelo que circulam livremente pelas passagens e praças daquele lugar, sem muita disposição para ir atrás dos roedores que empestam o local.
O residencial é um ambiente familiar, por isso não se espante se conhecer alguém que esteja vivendo lá há anos. Uns nasceram e cresceram, enquanto outros se mudaram ainda pequenos. Independente da origem, existe uma facilidade enorme em criar raízes.
Lázaro quem o diga. Ele vive há 45 anos no residencial, veio com a família quando criança e conhece de ponta a ponta o seu lar. Viveu momentos agradáveis, assim como superou inúmeros transtornos - esses, em sua maioria, frutos da falta de atenção dos últimos gestores. A invasão dos ratos é um exemplo, assim como aquele incêndio que aconteceu na noite de 17 janeiro desse ano e que completa uma semana.
Era por volta de 20h quando o incêndio aconteceu. As chamas começaram no primeiro andar e escalaram rapidamente até o último. Ninguém sabe como isso foi provocado, nem esperava que um prédio abandonado como aquele fosse incendiado.
Cenário de abandono, saques e bichos peçonhentos
Sentado no pátio de casa, ao lado do pequeno santuário que era de sua falecida mãe, o morador do Tucuruvi que, naquela altura, concedeu tantas entrevistas sobre o assunto, confessa que retomar o tema não é uma dificuldade. Ele demonstra isso narrando, com muitos detalhes, quando tudo desandou para ele e seus vizinhos.
“Os problemas começaram com o início das obras. As coisas caíam lá de cima e nenhuma das casas tinham telas de proteção, então tivemos que correr atrás. Os trabalhos pararam em 2018, mas a empresa esqueceu as redes aqui e a nossa dor de cabeça passou a ser essas estruturas que arriavam sobre os telhados. Já as invasões e os furtos se intensificaram no último ano. Até então era só um prédio abandonado. Para ter uma ideia, roubaram a cerca elétrica do lado de lá e a minha também”, conta Lázaro, sem deixar transparecer a frustração.
Atualmente, pelo menos de duas a três vezes no ano, os moradores reservam parte do arrecadado com a taxa de condomínio para contratar um serviço de roçagem e capinação no terreno abandonado, uma forma que encontraram para tentar minimizar o surgimento de animais peçonhentos pelo residencial, além do mato alto ou de outras plantas que costumam se entrelaçar nas cercas elétricas, reduzindo ou invalidando sua eficácia.
Um problemaço de dez andares
Herdado há pouco mais de nove anos pela comunidade, todos concordam que aquela construção é um problema e dos grandes. Só que as coisas nem sempre foram assim. Segundo os moradores, a estrutura não seria erguida como apartamentos de moradia, mas sim seria destinada a um “small shopping”, um aglomerado de áreas comerciais e residenciais.
Tratava-se de um projeto ambicioso que, se concluído, poderia revelar um novo olhar no mercado imobiliário da Grande Belém, valorizando casas e apartamentos nos arredores. A premissa era tão convidativa que uma moradora chegou a comprar direto na planta um dos apartamentos oferecidos. Isso aconteceu em 2010.
Do lado de dentro da casa, atrás de um imenso portão de ferro que também usava para se apoiar, essa moradora - uma idosa que preferiu não se identificar - contou que o interesse pelo projeto surgiu tão logo o corretor apresentou a planta e a proposta da venda.
“Queria deixar um apartamento para a minha filha. Aproveitei que tinha condições e dei entrada. Na época, exigiram R$ 50 mil”, lembra. Um desejo que nunca se concretizou. O dinheiro foi recuperado depois que entrou na justiça. “Percebi que estavam enrolando muito até começarem as obras [em 2014]. Eles [a empresa] ainda disseram que eu não precisava ter feito isso”, enfatizou.
Na noite em que o prédio de dez andares foi incendiado, essa moradora passou mal e foi levada para a casa de seus familiares, não muito distante de onde está localizado o Hospital Metropolitano. Outras pessoas também tinham urgência de sair de suas casas e se afastar. Muitos assistiam atentos o longo combate dos bombeiros, que terminou por volta de 4h do dia seguinte. Quem não conseguiu pregar os olhos estava com medo dos detritos caírem dos altos, o que não aconteceu.
Para os moradores, o incêndio foi a gota d’água. "A gente quer um pouco de paz, queremos que a obra volte, que os responsáveis terminem o que começaram. Se não for isso, que ela seja derrubada de uma vez”, desabafa Lázaro, que, assim como Tonha, passou aquela noite em claros e não foi por culpa dos ratos.
O que se espera?
Especula-se, entre os habitantes, que o prédio deve encontrar um novo proprietário. Durante as entrevistas, o Banco Bradesco foi apontado como o responsável por ter financiado a obra nove anos atrás e que estaria em busca de conquistar os direitos da propriedade.
O DOL tentou contato com o banco, por meio dos canais disponibilizados, para falar sobre o assunto, mas não obteve retorno. A versão, a princípio, não foi confirmada.
Um prédio abandonado de dez andares também indica contradições na Região Metropolitana de Belém, que possui problemas de habitação a superar. Em uma capital onde prédios ociosos são ocupados ou em uma região que registrou um aumento de 30% no déficit de moradias nos últimos dez anos, os relatos dos residentes do Tucuruvi soam como um grande incômodo sem retorno. Eles vivem o pesadelo cotidiano provocado por uma obra inacabada, vazia e com a única serventia de oferecer um futuro incerto para quem mora ao lado.
Texto e fotos: Fernanda Palheta
Edição: Anderson Araújo
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