Do pó veio, ao pó voltarás
Orlando de Donato nasceu em Araraquara (SP). Teve dois filhos e quatro netos. Às vezes, era teimoso, mas sempre adorável. Com ele ficava a tarefa de fazer os melhores convites para os almoços de família, com todos sentados à mesa para ouvir suas histórias divertidíssimas, a maioria da época de quando era menino e morava no interior de São Paulo.
Hoje ele descansa aos pés de uma romãzeira, nos fundos da casa que construiu em Guarujá (SP). Vítima de um câncer em 2010, foi cremado no final daquele ano — um desejo dele que foi atendido pela família que, mesmo católica, tratou o procedimento com carinho e normalidade.
“Além de ser meu vô, ele foi meu pai. Ele era o nosso pilar. Com a partida dele eu sinto que a gente se desestabilizou”, confessa a neta, Bruna de Donato.
Orlando está entre os 9% dos falecidos no Brasil que foram cremados, segundo o último levantamento feito pelo Sincep (Sindicato dos Cemitérios e Crematórios Particulares do Brasil), divulgado em 2019, antes do início da pandemia da Covid. Um número tímido quando comparado com o serviço de sepultamento no país, mas compreensível se levar em conta que mais da metade da população brasileira trata a morte como um tabu.
Somado a isso, existem as determinações feitas por algumas religiões que proíbem a prática ou a tratam com ressalvas, a exemplo da Igreja Católica que, embora dê preferência pelo sepultamento, autoriza a cremação sob a condição das cinzas serem mantidas em local sagrado — cemitérios ou igrejas.
A cremação é permitida pela Santa Sé desde 1963, quando chegou-se ao entendimento que o ato não atinge a alma e não impede a “onipotência divina de ressuscitar o corpo”.
Em 2016, o Vaticano fez um anúncio divulgando as regras para a cremação de católicos. “Não é permitido espalhar as cinzas do fiel que partiu no ar, na terra, no mar ou de outra maneira, nem podem elas serem preservadas em mementos, peças de joalheria ou outros objetos”, determina no documento.
Da mesma forma, não eram autorizadas a permanência das cinzas dentro de casa. É claro que cabe ao familiar decidir como prestar a homenagem que julgar mais adequada.
Bruna, que mora em Belém desde 2005, carrega no ombro esquerdo a tatuagem de um bem-te-vi e três frutos de romã, uma homenagem feita para o avô, assim como a decisão de espalhar as cinzas aos pés daquela pequena romãzeira. Um tributo singelo para um homem que foi muito amado.
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O que você quer quando morrer?
“Desde que eu me lembre, nunca fiquei confortável em ir a um cemitério, então não sei se gostaria de trazer esse sentimento para os outros”, diz Bruna, que compartilha a mesma vontade do avô.
Para algumas pessoas, ser cremado pode representar liberdade, apego ou um último desejo de tornar a partida menos dolorosa para quem fica. Em meio a essas tentativas de ressignificar o fúnebre ritual, percebe-se sua viabilidade quando se coloca na ponta do lápis os custos da despedida.
Com planejamento, tanto o sepultamento quanto a cremação são viáveis, mas o segundo consegue ser mais atrativo. Na Grande Belém, um plano que oferece serviço crematório varia entre R$ 63,50 (titular e dois beneficiários) a R$ 102 (até seis pessoas). Dependendo da escolha, não é preciso pagar mais nada assim que quitado.
Quando chega o dia, o familiar acompanha o processo, recebe as cinzas do ente querido em uma urna e decide se fica com ela ou se a deixa no columbário — um espaço físico, dentro do cemitério, para manter a memória do falecido; nesse caso, paga-se uma taxa mensal.
A cremação também é mais ecológica. Diferente do cremado, um corpo sepultado passa pelo processo de putrefação. Se não estiver devidamente preservado, em contato com o solo pode trazer riscos para o meio ambiente, como a contaminação ou o surgimento de doenças.
Outro motivo que torna esse procedimento tão atrativo é a economia de espaço. Os cemitérios são áreas que precisam ser planejadas, mas em alguns casos podem faltar covas para os mortos. A “superpopulação nos cemitérios” foi uma realidade no início dos anos 2000 em Paris, por exemplo, quando anunciaram o fim do direito à perpetuidade, “desabrigando” milhares de anônimos.
A vida do outro lado
Raimundo Filho sai de casa todas as manhãs até o cemitério onde trabalha na rodovia BR-316, em Marituba. Diferente daqueles que sentem desconforto ao falar sobre a morte, Raimundo se considera um homem pouco impressionado e lida com o luto tranquilamente.
Aos 42 anos, o supervisor de atendimento nunca imaginou trabalhar no ramo, mas quando a oportunidade bateu à porta, atendeu de bom grado. “No começo, eu achei um pouquinho difícil como abordar [o enlutado], mas fui aprendendo”, revela. “Eu não tenho tantos problemas [em trabalhar com o luto], não tenho grandes traumas. Não que eu seja uma pessoa insensível, mas eu não me abalo. É difícil eu me abalar com alguma coisa. Eu posso, mas com coisas simples”, confessa.
Ele começou como operador de forno, fez cursos e se especializou. Apesar de não lembrar a primeira vez que recebeu um corpo para cremar, ele garante que a normalidade prevaleceu.
“As experiências que eu tenho sempre foram ótimas. O nosso trabalho, graças a Deus, sempre fluiu direitinho até hoje. Nunca tivemos problemas ou conflitos”.
No cemitério onde trabalha há nove anos, ele explica que a família enlutada se reúne na capela para velar o corpo frio que repousa sobre uma pedra de mármore. Com o auxílio de um trilho, é transferido discretamente para um compartimento anexo, onde está o forno crematório. Esse é o momento em que alguns familiares migram até a “sala de confirmação” para testemunhar o finado sendo cuidadosamente inserido no forno pelo operador, paramentado com luvas e máscaras. Cerca de duas horas depois, o forno é desligado, as cinzas são retiradas de uma gaveta, armazenadas em uma urna e o ritual é encerrado.
Raimundo mora com a mãe. Ele perdeu o pai para o câncer há três anos e, durante todo esse tempo trabalhando com o luto, pôde rever algumas prioridades — não apenas desfrutar a vida intensamente, mas estar preparado para quando a morte chegar. “Antes eu não pensava em assinar um plano funerário, mas assim que eu comecei a trabalhar percebi que era importante. Assinei um plano e deixei tudo pago pra minha família. Meu pai descansa aqui”.
No dia em que recebeu a nossa equipe, a mãe de Raimundo — que segue com uma saúde inabalável — viajava para o Maranhão, sua terra natal, para celebrar os 101 anos do próprio pai, um senhor independente que leva a vida longe das amarras da idade. Distraído enquanto observava o columbário, Raimundo deixa escapar um único desejo: “Espero chegar aos 80 tão lúcido quanto o meu avô”.
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