
No dia 23 de abril, fieis da Igreja Católica comemoram um dos santos mais populares do mundo: São Jorge. No que se convenciou como sincretismo nas religiões de matriz africana, ele é Ogum. Em Belém, para muita gente, o dia do guerreiro que matou o dragão é també um dia para agradecer.
O santo teria sido um soldado romano, nascido na Capadócia — atual Turquia — e martirizado por sua fé cristã. É uma figura religiosa bastante conhecida no Brasil. Mesmo que suas histórias estejam envoltas em lendas, como a de ter matado um dragão, ele é reconhecido mundialmente como protetor de escoteiros mirins, soldados e cavaleiros, além de ser padroeiro de países como Inglaterra, Geórgia e Etiópia.
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“São Jorge, para mim, significa força. É meu esteio, aquele para quem corro quando acho que tudo está perdido. Meu finado avô, Otacílio Jorge, sempre foi devoto, e desde pequena, quando eu queria algo — mesmo sendo coisa de criança, como bens materiais — ele dizia: ‘Pede pra São Jorge, pra ele me ajudar, que eu compro pra você’. Desde então, sempre recorri a ele, e sempre fui atendida", relembra.
Devoção eternizada na pele
Kaylane Gomes é uma das devotas que faz questão de demonstrar seu amor por São Jorge e levá-lo consigo para onde for, seguindo o exemplo de seu avô, Otacílio Jorge — o maior incentivador da sua devoção ao Santo Guerreiro.

"Minha devoção nasceu daí. Meu avô sempre foi um homem de muita fé em São Jorge. Ele levava uma tatuagem no braço direito com a imagem do santo, como se fosse seu ‘braço direito’ — aquele que nunca o desampararia”, conta Kaylane.
Quando chega o mês de abril, ela afirma que seu coração se enche de emoção e ansiedade para celebrar o dia do santo. “Já começo a me preparar para cumprir minhas promessas, sempre agradecendo pelas conquistas. Este ano, em especial, consegui mais uma graça, e como forma de agradecimento, irei distribuir folhetos de orações (os santinhos)”, diz.
Kaylane relembra uma das graças que recebeu, ainda na infância, quando tinha apenas 12 anos e foi diagnosticada com uma doença já em estágio avançado. Segundo ela, após se apegar ao Santo Guerreiro e também a Nossa Senhora de Nazaré, foi curada.
“Sou a filha pedinchona, tudo eu corro pro meu Santo Guerreiro. Mas, em especial, aos 12 anos fui diagnosticada com febre reumática (o chamado ‘reumatismo no sangue", relata. A devota explica que se trata de uma doença que afeta o sistema nervoso e até mesmo as válvulas cardíacas, prejudicando o funcionamento do coração. "Se não tratada, pode evoluir para leucemia", ressalta.
"Descobri já em estágio avançado: tinha vários nódulos no pescoço e sentia muita dor. Dormi e acordei com isso, foi desesperador. O tratamento era muito doloroso, com anti-inflamatórios e um antibiótico extremamente forte, aplicado em cada nádega a cada cinco dias. Até a 15ª dose, não tive melhora. O médico então prescreveu mais seis aplicações. Foi nesse momento que me apeguei a São Jorge e a Nossa Senhora", diz.
"Pedi a cura e roguei para não precisar mais tomar o remédio, pois eu não aguentava", recorda. Quando kaylane chegou à 20ª dose e não quis mais tomar. "Sonhei que havia sido curada — e eu realmente já não sentia mais sintomas. Voltamos ao médico e o exame estava completamente perfeito, como se eu nunca tivesse precisado passar por aquele tratamento. Sem resquícios. Esse foi o meu milagre”, afirma, emocionada.

E assim como seu avô, Kaylane também optou por eternizar na pele toda sua devoção ao Santo Guerreiro. “A minha tatuagem tem exatamente 3 anos, ganhei de presente, sempre foi meu sonho fazer algo sobre São Jorge. Eu achava linda a do meu avô, e sempre quis, me apaixonei por essa, para mim significa força, me sinto protegida, carregando em mim toda proteção do santo. Depois do falecimento do meu avô, sinto também como se fosse uma parte dele em mim”, conta.
Da perda à graça alcançada
O técnico em segurança eletrônica Paulo Madeira, de 45 anos, relata que sua devoção ao Santo Guerreiro começou no ano 2000, quando se mudou para o bairro da Marambaia após se casar com sua atual esposa, Bárbara Madeira.
“Desde então, São Jorge tem sido espelho pra mim. Um guerreiro que me ensina a vencer as batalhas do dia a dia com seu exemplo. Com isso, toda a minha família também se tornou devota. Esse período do ano é muito aguardado por nós. Compramos camisas, canecas da festividade, e mergulhamos nesse clima de festa: participamos das procissões, missas e atividades espirituais”, afirma.

Paulo lembra do momento mais difícil que sua família enfrentou e como sentiu São Jorge ainda mais próximo naquele período.
“Em 2012, estávamos em contagem regressiva à espera da nossa segunda filha, que estava no oitavo mês de gestação. No dia 12 de julho de 2012, infelizmente, ela partiu. Foram tempos difíceis. Minha esposa entrou em depressão, ficamos sem rumo. Quando não víamos mais chão, nesse deserto que atravessamos, o Senhor — por intercessão de São Jorge — nos sustentou", conta.
"Ele me atraía, eu sentia no coração que precisava ir à igreja. Lá, colocava minhas dores aos pés de São Jorge. E Deus ouviu nossas preces e fez melhor. No dia 1º de julho de 2014, nasceu nosso Théo Davi. Acredito que, se não fosse a agenda do médico, ele teria nascido no mesmo dia que nossa filha partiu. Tudo isso, para mim, foi pela intercessão de São Jorge e Nossa Senhora”, relembra
“Ele é meu Ogum, meu Orixá”
Durante o período da escravidão histórica, os africanos trazidos à força para o Brasil passaram a associar seus orixás a figuras católicas, com o objetivo de manter sua fé sem sofrer repressão por parte dos senhores. Assim surgiu o sincretismo religioso brasileiro, no qual São Jorge também é celebrado, principalmente.
Para os devotos da Umbanda, São Jorge é sincretizado com Ogum. A publicitária Nádia Cruz, de 45 anos, afirma que a preparação para a festividade de seu orixá é, em grande parte, interior, feita com orações e rituais, como o de acender velas.

“Os banhos de descarga e os banhos de coroa também são realizados no dia do santo. O pensamento fica totalmente voltado para o propósito da devoção. A festividade envolve comida, música e bebida para honrar nosso Ogum Guerreiro”, explica.
Nádia conta que, logo na entrada de sua casa, há uma imagem de São Jorge, para lembrar a todos que ali é um território protegido. “São Jorge sincretizado na Umbanda é nosso orixá Ogum, regente masculino da minha coroa. Ele traz à minha vida a força determinante para vencer as batalhas do dia a dia. Na cosmologia da minha vida, me vejo sendo guiada para um campo de batalha, onde, lá na frente, São Jorge e Ogum, em sua coroa, me dão coragem e determinação”, relata.

Quem também compartilha dessa devoção é sua mãe, Alda Cruz. A autônoma afirma que vai além da tradição umbandista e também celebra a festividade cristã em homenagem a São Jorge.
“O mês de abril é um dos mais importantes para mim. No Dia de São Jorge, vou à igreja com minha imagem e com a roupa do santo. Ele já me livrou da depressão. E, como umbandista, ele é meu Ogum, meu orixá. O respeito é o mesmo, a devoção é a mesma. Sempre que posso, compartilho sua história, sua força e sua garra, para que todos conheçam a força de Ogum”, conclui Alda.
Mártir, guerreiro e símbolo da fé que vence o mal
Nascido por volta do ano 280, na Capadócia, São Jorge, cujo nome significa "agricultor", veio de uma família cristã e se alistou no exército de Diocleciano, na Palestina. Em 303, ao ver o império perseguir cristãos, doou seus bens, rasgou o edito diante do imperador e professou sua fé. Foi torturado e decapitado.
A lenda mais famosa conta que Jorge salvou a filha de um rei ao matar um dragão que aterrorizava Selém, na Líbia. Esse ato passou a simbolizar a vitória do bem sobre o mal.
A Basílica erguida em sua honra em Lida, atual Israel, marca sua memória. A autenticidade histórica é apoiada por documentos antigos, como uma epígrafe grega de 368.
Padroeiro de soldados, cavaleiros, escoteiros, esgrimistas e arqueiros, São Jorge também é venerado por muçulmanos. Sua imagem de mártir transformou-se em símbolo guerreiro durante as Cruzadas e ganhou destaque na Inglaterra medieval. Em 1969, sua festa litúrgica foi reduzida a memória facultativa, mas sua devoção segue viva.
Ogum
Ogum é uma divindade do panteão africano, conhecido por sua bravura e força. Seu nome, em Iorubá, significa "guerra", e ele é o senhor das metalúrgicas, dominando as forjas e o ferro, além de trazer ferramentas essenciais para a evolução humana. Ogum também é associado às guerras e à abertura de caminhos. Suas histórias e itãs (contos iorubás) falam de suas vitórias e feitos, mas também de suas lições sobre impulsividade e vaidade.
No dia 23 de abril, comemora-se o Dia de São Jorge, mas no candomblé e na umbanda também é celebrado o dia de Ogum, com a tradicional feijoada. O sincretismo religioso, imposto pelos colonizadores, fez com que Ogum fosse associado a São Jorge, refletindo o legado da intolerância religiosa no Brasil.
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