
O arrancamento brusco e acidental do couro cabeludo, o escalpelamento, ainda é uma realidade dolorosa para algumas mulheres e meninas do Norte do Brasil. Apesar de ser menos frequente do que em décadas passadas, o acidente, que ocorre principalmente em embarcações de pequeno porte, continua a afetar vidas de forma devastadora.
O problema motivou a criação da Lei nº 12.199/2010, que instituiu o Dia Nacional de Combate e Prevenção ao Escalpelamento, em 28 de agosto. A data serve para alertar sobre os riscos e consequências desse tipo de acidente que, em sua maioria, ocorre quando cabelos longos se enrolam em eixos e partes móveis dos motores de barcos.
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Desde 2006, o Espaço Acolher, da Fundação Santa Casa de Misericórdia do Pará, em Belém, tem sido um refúgio para vítimas de escalpelamento. Com uma estrutura de quase 700 m², o espaço oferece dormitórios, salas de aula, brinquedoteca, consultórios, cozinha, lavanderia e ambientes de convivência. O local atende atualmente cerca de 30 mulheres que viajam de seus municípios para dar continuidade ao tratamento das lesões.
Coordenadora do espaço, a assistente social Luzia Matos explica que o acolhimento começa logo após a alta hospitalar inicial. “Atendemos conforme o tipo de acidente: se é total, parcial, se há exposição da calota craniana ou outras partes afetadas, como orelhas, pescoço, face. Fazemos o acompanhamento psicossocial, verificamos documentação, benefícios, situação escolar ou laboral. É um olhar integral para a realidade da paciente”.
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Além do atendimento médico, o espaço também oferece suporte emocional. “O escalpelamento, se não tratado corretamente, pode levar até ao câncer de pele. O couro cabeludo exposto desenvolve feridas que voltam com frequência e podem se transformar em neoplasias. Por isso, mantemos consultas regulares com todas”.
Ela ressalta ainda que, embora 99% dos casos estejam ligados a acidentes em embarcações, há também ocorrências associadas a cirurgias mal sucedidas ou outras causas. “Felizmente, conseguimos reduzir os números, mas eles ainda existem, e estão ligados à vulnerabilidade social dos ribeirinhos, que têm pouco acesso à educação, saúde e informação”, conclui.
A ONG Amigos Voluntários do Pará atua junto à Santa Casa, promovendo campanhas de doação de cabelo e ações de conscientização. “A arrecadação de cabelo é mais do que estética, é sobre dignidade. Elas perdem sua identidade. A saúde começa pelo bem-estar emocional”, afirma Olinda Guedes, voluntária da ONG. A entidade também integra a Comissão Estadual de Erradicação dos Acidentes de Motor com Vítimas de Escalpelamento, coordenada pela Sespa e composta por instituições como Marinha e Companhia Docas.
Outro diferencial do Espaço Acolher é o programa Classe Hospitalar, fruto de uma parceria com a Secretaria de Educação do Estado e a Universidade do Estado do Pará (Uepa).
A proposta garante que crianças, adolescentes e adultos vítimas do escalpelamento não percam o vínculo escolar. “A classe hospitalar ressignifica a doença. Muitos concluem o ensino fundamental e médio aqui mesmo, e retornam aos seus municípios com histórico escolar completo”, explica Gilda Saldanha, professora do programa.
A jovem Raiza Oliveira, de 23 anos, de Curralinho, tinha apenas 14 anos quando sofreu o acidente. “Não sabíamos nem o que era isso. Cheguei muito fragilizada. Fui acolhida psicologicamente desde o início, e isso fez toda a diferença. Consegui terminar meus estudos aqui graças à classe hospitalar”, diz.
Elisangela Viana, 41, moradora de Portel, também destaca a importância do espaço. “Não posso mais trabalhar como antes, apanhar açaí ou pescar. Fiquei vulnerável no interior. Mas aqui encontrei apoio e tratamento. Hoje, levo informação para outras mulheres a partir da minha própria vivência”.
Apesar dos avanços, o escalpelamento ainda representa uma ferida aberta nos rios da Amazônia. “A redução dos acidentes é resultado de políticas públicas, campanhas educativas e esforços coletivos. Mas enquanto houver uma vítima, o trabalho não pode parar. Neste 28 de agosto, a lembrança da dor serve também como motivação para continuar a luta por informação, prevenção e, acima de tudo, dignidade para todas as mulheres marcadas por essa tragédia silenciosa”, finaliza Luzia.
Serviço
Espaço Acolher
- Endereço: Generalíssimo Deodoro, 143 - Umarizal
- Você também pode fazer sua doação de cabelos diretamente no Espaço Acolher, localizado na Santa Casa do Pará. Para mais informações, entre em contato pelo telefone: (91) 3237-9460.
Para saber mais, acesse a edição eletrônica do jornal Diário do Pará
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