O desmonte da obra ‘O’lho d’água’, de Acácio Sobral, do Campus Guamá da Universidade Federal do Pará retoma uma questão antiga: a arte, em sua pluralidade, é tratada com respeito no Brasil?
Inaugurada em junho de 2009, cinco meses antes do falecimento do artista, a instalação “Olho d’água” foi projetada por Acácio Sobral com o objetivo de demonstrar a relação da Universidade com a natureza do entorno, tomado por rios e ilhas.
“Para mim, o que caracteriza a universidade é a sua relação com os fluxos de água, com os rios, com a chuva e com a floresta. A escultura é sinuosa para representar os movimentos da água e ela se alonga e ramifica até o chão. No Centro, não temos água, mas uma árvore, porque a UFPA é uma nascente, uma nascente do conhecimento sempre crescente”, poetizou o artista em uma entrevista concedida à Assessoria de Comunicação da Universidade Federal do Pará no período de inauguração da obra.
Além de caracterizar o espaço, “Olho d’água” foi criada para marcar o projeto em que o campus se tornaria uma cidade monumental e de convivência, com locais específicos para interações sociais e artísticas. Por isso a obra foi feita especialmente em um espaço de intenso trânsito e troca de conhecimentos: Nos limites entre a biblioteca central, reitoria e os blocos dos cursos de ciências humanas.
Com as estruturas construídas especificamente para aquele local, Sobral delimitou no entorno as linhas sinuosas do rio, em um trabalho convidativo e delicado, desenvolvido desde a marcação do chão à montagem das peças.
O propósito da obra, incentivada pela própria Universidade Federal do Pará e a maneira como ela foi desmontada, três anos após a inauguração, sem um aviso prévio ou satisfação à família causaram repercussão na comunidade artística e acadêmica. Keyla Sobral, sobrinha do artista, conta que a notícia foi recebida com espanto por ela e os demais familiares de Acácio. “Soube disso na última sexta-feira à noite.
Imediatamente liguei para a esposa e a filha dele, e nenhuma das duas sabia também. A família não foi consultada, foi um ato impróprio”, alega.
Poesia perdida no tempo
Segundo a Instituição, a obra foi desmontada para dar espaço à construção de um novo bloco padrão de salas de aula, e que esta área já era destinada à ampliação de prédios, daí a necessidade do remanejamento da escultura. Ainda de acordo com a Instituição, a obra foi fotografada de diversos ângulos e suas peças foram todas identificadas e catalogadas com o objetivo de facilitar a sua remontagem, a qual será assessorada por José Carlos Porpino de Oliveira, responsável pela montagem da obra na ocasião de sua inauguração, e coordenada pelo engenheiro civil Adelino Oliveira, que também participou da montagem original, juntamente com o engenheiro civil Sérgio Cabeça Braz.
Além do relatório fotográfico completo, numeração e catalogação de todas as peças, segundo a UFPA, também foi efetuada a medida dos ângulos das peças em relação às peças transversais e medida das peças em relação ao terreno. O engenheiro Adelino Oliveira diz que no novo local proposto, a escultura ‘Olho D´Água’ terá maior visibilidade, às margens da pista de rolamento, “de frente para o rio, como sempre quis o saudoso Acácio Sobral”.
Apesar da preocupação e cuidado alegado pelo engenheiro, Keyla Sobral afirma que a decisão de desmontar a obra modifica o propósito ao qual ela se destina: “A escultura e o caminho que ela faz é parte do trabalho. O simples fato de desmontar já está alterando o projeto original. Ali existe um curso de artes visuais, com professores gabaritados. Porque eles não foram consultados? Definitivamente foi um ato não pensado”.
Diante a repercussão negativa, restou à Universidade remontar rapidamente a obra de Acácio Sobral, em um local um pouco mais à frente do original. Porém, segundo Keyla, o local escolhido para remontar a obra não atende às exigências da estrutura, beirando o asfalto do Campus. “As peças foram construídas especificamente para estar no local que elas estavam, com um molde próprio para aquele lugar. Já soube que algumas peças de suporte estão trincadas e outras que ainda não foram montadas estão jogadas no chão sem nenhum cuidado”.
O artista plástico paraense e também amigo pessoal de Acácio Sobral, Alexandre Sequeira, é professor do curso de artes da Universidade Federal do Pará e ficou perplexo ao saber do desmonte da obra. “Acho que aconteceram inúmeros equívocos por parte da instituição. A família não foi consultada e os próprios profissionais da Universidade também não”, considera. Para ele, o tratamento dado à obra de Sobral reflete a incapacidade que a UFPA tem de pensar a arte e tratá-la como fonte de conhecimento, apesar de se configurar uma instituição de ensino. “É como transferir o monumento central da praça da República para a praça Ferro de Engomar. Para eles tanto faz, é tudo praça, é a mesma coisa”, dispara o artista. Alexandre chegou a verificar o local onde o “Olho D`água” está sendo remontado. De acordo com ele, é “uma nesga de terreno beirando o asfalto”.
O artista plástico relembra que foi a própria Instituição que convidou Acácio Sobral para montar a obra dentro do campus. “Como profissional da Universidade, eu me sinto envergonhado com o que está acontecendo. A atitude da UFPA reflete indiretamente o valor que ela confere à arte”, conclui Alexandre.
DESCASO
Em protesto ao desmonte da obra do tio, Keyla Sobral criou uma petição pública, com o intuito de que a obra retorne ao seu lugar original. “É uma obra pública, não pode ser modificada sem o consentimento da população. Ela tem que voltar para o lugar dela, respeitando o entorno e o espaço que ela deveria ter”. Para a artista, é em momentos como este que a população deve se unir e refletir sobre o papel da arte. “Isto tudo faz a gente pensar de que maneira a gente trata a arte, sempre relegada a segundo plano”, resume.
Outros desmontes
Esta não é a primeira vez que uma obra pública é desmontada sem consentimento. Em 2010, em comemoração ao aniversário de Belém, foi realizada uma intervenção artística nas paredes de um casario na esquina entre as Avenidas Portugal e Boulevard Castilho França, em frente ao mercado de ferro do Ver-o-peso. Porém, a intervenção foi realizada por cima de um painel pintado em 1985 pelo artista plástico paraense Osmar Pinheiro Junior, mais conhecido como Osmarzinho. Ele pintou no local a obra “Caza do Povo”, simulando a fachada de um casarão histórico, com janelas altas, numas das quais estava o então prefeito de Belém Almir Gabriel.
A raspagem da pintura de Osmar gerou reações de revolta entre amigos e familiares do artista. Na época a viúva de Osmar, Isabel Pinheiro entrou com uma ação judicial contra o a Prefeitura de Belém e o Hangar- Centro de Conversões e Feiras da Amazônia, parceiros na reforma do espaço.
Além de “Caza do Povo”, outra obra de Osmarzinho foi retirada do seu local original, ou melhor, demolida, durante a Administração de Edmilson Rodrigues: A escultura “Velames”, feita em homenagem a reforma do mercado do Ver-o-Peso.
PETIÇÃO PÚBLICA
A petição pública que revindica o retorno da obra ao lugar original pode ser assinada no site www.peticaopublica.com.br/?pi=P2013N36689
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