Para lavar roupa, tomar banho, cozinhar ou escovar os dentes, Ariana dos Santos, 26, precisa literalmente, ir para debaixo de sua casa. O cano de distribuição de água que vem da rua fica na parte externa de sua residência. No solo, entre as palafitas, o lixo e a sujeira se acumulam na lama. Como cerca de 6.800 pessoas, a dona de casa mora na Vila da Barca, no bairro do Telégrafo, pertinho da Doca no centro de Belém. Considerada uma das maiores favelas sobre palafitas da América Latina, a ocupação existe há mais de cem anos, segundo moradores antigos.
Suspensa no tempo, na Vila da Barca a baia do Guajará é o sanitário da maioria das casas. Sem encanamentos ou fossas, urina e fezes são carregadas pela maré. No verão, o sol forte e a vazante cuidam de exalar um cheiro desagradável difícil de ser ignorado.
Segundo estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Belém é a cidade com mais de um milhão de habitantes que apresenta o pior índice de esgoto a céu aberto no entorno de residências com quadras definidas. O levantamento foi feito com base na pré-coleta de dados do Censo 2010 e avaliou 96,9% dos domicílios urbanos do país, não levando em consideração favelas e outras ocupações irregulares. Outro estudo, do Instituto Trata Brasil, coloca Belém no 73ª lugar em um ranking de 81 cidades no quesito coleta e tratamento sanitário. Com cerca de 1,4 milhões de habitantes, apenas 6% dos belenenses são atendidos com serviço de esgoto sanitário adequado.
O Instituto conta com apoio de empresas e entidades como Fundação Getúlio Vargas (FGV) e Agência Nacional de Águas (ANA). O estudo avaliou a situação de regiões metropolitanas entre 2003 e 2008. São gerados impressionantes 9,3 bilhões de litros de esgoto todos os dias no Brasil, segundo o Instituto. Em média, apenas 36% é tratado.
ALERTA
Milton Matta, professor da faculdade de Geologia e coordenador do Laboratório de Recurso Hídricos e Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará (UFPA), afirma que a situação é crítica. “Nós já fizemos pesquisas durante duas décadas sobre a qualidade da água no Mata Fome, Paracuri, Tucunduba... Agora estamos medindo a água da Estrada Nova. O resultado é o mesmo. As bacias estão gravemente ameaçadas. Todos os mananciais superficiais, sem exceção, foram contaminados”, diz.
Segundo o professor, todo o esgoto que não é tratado na cidade tem destinos certos. “No fim das contas, ele é despejado in natura no rio Guamá e na baia do Guajará. Você nem imagina a quantidade de resíduo que vai para as águas todos os dias”, comenta.
A água do rio Guamá é bombeada até o lago Água Preta, antes de seguir para o lago Bolonha, para daí ser tratada e distribuída para 60% da população da Região Metropolitana.
De acordo com Matta, cerca de 200 córregos, entre rios e igarapés, desapareceram na Grande Belém por conta da urbanização e destruição das matas ciliares. “Clima, quantidade de chuvas, umidade e ecossistemas ficam ameaçados. Fora o risco mais grave, que é para a saúde das pessoas. Cerca de 60% das internações no país são em função de carência de saneamento básico. Para cada real investido em saneamento, o poder público economizaria quatro em saúde pública”, lembra o professor.
Água não é mineral, tem muita acidez e é só ‘potável’
Outras pesquisas, conduzidas pelo Laboratório de Recursos Hídricos e Meio Ambiente, revelaram que o pH, variação que mede o índice de acidez, das sete águas potáveis vendidas na cidade está além do permitido para que elas possam ser classificadas como mineral. “Se você pegar qualquer garrafinha de água mineral, o pH varia de 3,6 a 4,2. Isso é quase a metade da acidez de um refrigerante. O pH tinha que ser entre 6,5 e 8,5, segundo a legislação vigente”, alerta o professor Matta. De acordo com os padrões físico-químicos, a classificação correta seria “água potável de mesa”, seguindo regulamento do Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).
O professor conta que já foi solicitado pelo Ministério Público a apresentar a conclusão de sua mais recente pesquisa, que incluiu marcas de água que não foram analisadas anteriormente. “O rótulo das águas deveria ser alterado. Consumir regularmente água com um pH nesse nível, a longo prazo, pode provocar gastrite, úlceras e até câncer de estômago, em casos mais graves. Nada foi comprovado ainda, mas a relação é clara”, adverte.
Para Matta, a solução seria cobrar das empresas o controle do pH, como faz a Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa). “Nós já realizamos testes e a água que sai da Cosanpa é de excelente qualidade. O problema é que grande parte da pureza se perde no caminho por conta de adutoras e encanamentos velhos”, explica.
Distribuição de água é problema grave
O diretor de operações da Cosanpa, Antônio Crisóstomo, afirma que de 45% a 50% da água tratada distribuída pela Companhia é perdida. No entanto, Crisóstomo esclarece que cerca de 80% desta perda ocorre por conta do desperdício de usuários. “Uma de nossas preocupações é instalar hidrômetros em todas as residências e conscientizar as pessoas. Se nós não tivéssemos tanto desperdício, poderíamos abastecer outra Belém”, observa.
Segundo o diretor de operações, a Cosanpa cobre 80% da área da Região Metropolitana. Já o SAAEB (Serviço Autônomo de Água e Esgoto de Belém), que deverá futuramente ser incorporado à Companhia, é responsável por cerca de 10% do abastecimento. “Os outros 10% ficam na área de expansão, Augusto Montenegro, Ananindeua, Marituba... Inclusive na minha casa a gente usa poço artesiano. Nesse caso, a preocupação tem que ser maior. Lá a água é límpida, mas eu fiz um teste bacteriológico e deu um nível alto de contaminação. Não é porque a água é translúcida que ela não precisa de tratamento”, alerta.
Os poços profundos, que complementam cerca de 40% do abastecimento da grande Belém, captam água a 270 metros de profundidade. A vazão pode chegar a 250 metros cúbicos por hora, o que equivale a 250 mil litros a cada 60 minutos. Ainda assim, toda essa água, mesmo captada de lençóis profundos, precisa e passa por tratamento.
Para melhorar a rede de distribuição e atender áreas desamparadas, a Cosanpa deverá substituir 77 quilômetros de encanamento na grande Belém. “O projeto está avaliado em torno de R$ 22 milhões e deverá durar 24 meses. O governo negociou com o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) e, já em abril, nós deveremos estar lançando edital para definir a empresa responsável pela obra”, adianta Antônio Crisóstomo.
SESAN LAMENTA
Luiz Otávio Mota, secretário municipal de saneamento, explica que a falta de investimentos progressivos ao longo dos anos e o crescimento desordenado da cidade contribuíram para construção da realidade atual. “Desde 2007, Belém possui um Plano Diretor de esgotamento sanitário que, foi, inclusive elaborado pela UFPA. Ele precisa ser constantemente atualizado, mas prevê projetos e investimentos progressivos até 2025. O que nós estudamos hoje é a possibilidade de validar esse Plano, talvez através de Lei, para que seja seguido e todo trabalho não se perca com mudanças de gestão”, informa. Hoje, a concessão do tratamento do esgoto sanitário da Região Metropolitana pertence à Cosanpa, mas, segundo o secretário, isso não tira a responsabilidade das prefeituras municipais de cobrarem resultados.
Outra informação alarmante é que a grande maioria das fossas residenciais da cidade precisa ser readequada, segundo Mota. “O nível de tratamento em grande parte dos tanques sépticos chega apenas a 40%. O que sai dali continua bastante contaminado. Esses resíduos infiltram no solo, chegam ao lençol freático e a poços artesianos, ou seja, a água contaminada volta indiretamente para alguns moradores. Fora o que sai das fossas e é levado até os canais”, informa.
O secretário reforça ainda que o chorume do Lixão do Aurá, o líquido do lixo domiciliar que vaza em direção ao rio Guamá, colocando em risco os lagos Bolonha e Água Preta, deverá ser controlado até o depósito ser finalmente desativado nos próximos anos. “Nós não podemos fazer mágica, mas as soluções precisam vir galopantes para que a gente recupere o tempo perdido. Agora, sem dúvida, é uma pena que com a riqueza das grandes massas de água que temos aqui, iremos comemorar o Dia Mundial da água.
(Diário do Pará)
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