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O que fazer quando o pedófilo está dentro de casa?

"Ele passava o pênis na boca dela, mandava ela chupar ele e falava a mesma coisa para mim. Eu dizia que não sabia e ele me batia. Só lembro de coisas ruins”. O relato emocionado é da auxiliar de produção, vítima de abuso sexual quando tinha apenas cinco a

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"Ele passava o pênis na boca dela, mandava ela chupar ele e falava a mesma coisa para mim. Eu dizia que não sabia e ele me batia. Só lembro de coisas ruins”. O relato emocionado é da auxiliar de produção, vítima de abuso sexual quando tinha apenas cinco anos.

Identificada apenas com as iniciais J. C. - por motivos de preservação da identidade - ela decidiu compartilhar o trauma sofrido ao lado da amiga, que na época também era uma criança.

Segundo J. C. seu objetivo hoje é não só lutar contra o abuso sexual infantil e sair do sufocamento, mas fazer com que as pessoas compreendem que a culpa nunca é da vítima e mostrar que é possível, sim, se reerguer diante de tamanha violência.

J. C. foi violentada na casa de uma amiga, quando tinha cinco anos de idade. O agressor lembra ela, um homem adulto e muito mais velho.

“Aconteceu na casa da minha amiga, com o tio dela. Sempre que ficávamos só ele se aproveitava da situação e abusava de nós duas. Ele era muito mais velho, um adulto. Enquanto ele abusava de mim, pedia para a minha amiga ficar olhando e assim ia revezando. Na época eu tinha cinco anos e ela seis”, relata.

Emocionada ao lembrar, o que caracteriza como “a pior fase da sua vida”, o abuso e todo sofrimento só foi compartilhado com seus familiares quatro anos depois. A justificativas, ameaças sofridas e o medo das consequências.

“Minha mãe queria matar ele, mas ele já tinha se mudado. Havia sumido. Desde o dia que contei, ela ficou super preocupada. Não deixava mais eu sair e nem ir para a casa de ninguém. Não chegamos a denunciar porque na época que expus o ocorrido ele já havia sumido, então decidimos deixar pra lá””, relembra.

Apesar do acompanhamento psicológico, J. C. ainda carrega grandes traumas do abuso. “Tenho muito medo que aconteça de novo. Sou muito nervosa, tenho medo de homens que se aproximam de mim facilmente. Não consigo ficar só em casa e quando vejo esse tipo de situação noticiada, choro só de imaginar que um dia já passei por isso.

J. C. é apenas uma aresta da estatística que assusta não só o Pará, mas o país como um todo, quando o assunto é violência sexual contra crianças e adolescentes.

De acordo com dados da Unidade Integrada Pro Paz (UIPP), em suas unidades foram registrados 14.446 casos de violência sexual contra crianças de 0 a 17 anos, atendidas desde novembro de 2006 até abril de 2016, em todo Pará. Somente em 2015, 1589 casos foram registrados no Estado.

Segundo a Fundação Papa João XXIII (Funpapa), na região norte do Pará estão os municípios com maior incidência de abusos. Com faixa etária de 01 aos 11 anos, a maioria das vítimas são meninas. A região que mais preocupa as autoridades ainda é o arquipélago do Marajó.

Para a psicóloga do Pro Paz Integrado (PPI) da Santa Casa, Ana Júlia Goés Moreira, que já atua há aproximadamente 14 anos na área infantil, as famílias hoje se sentem mais encorajadas para buscar ajuda e denunciar os abusos.

“A família é importante e necessária no processo de reconstrução do psicológico da vítima e na amenização dos sintomas ocasionados”, comenta. “A criança indica, na maior parte dos casos, que sua evolução positiva está ‘intimamente’ relacionada ao ‘olhar’ da família, ou seja, com a presença de apego efetivo e suporte, bem como da sensação de segurança promovida por seus cuidadores”, explica a profissional.

O palco do grande pesadelo para as crianças, infelizmente, tem sido dentro da própria casa. O que mais impressiona os especialistas, é que os abusos sexuais infantis vêm sendo praticados por familiares ou pessoas próximas da vítima, como pai, padrasto, avô, tio ou amigos da família.

Desde carícias pelo corpo até o abuso em si, há quem se aproveite da ingenuidade dos pequenos para realizar fantasias sexuais, sem se importar com as consequências que isso pode trazer não apenas ao abusador, mas à toda família.

A jornalista K. C. também faz parte desta triste realidade. Ela foi abusada na infância pelo primo já adulto. A violência marcada até hoje na memória ocorreu dos 7 aos 9 anos de idade, quando morava na casa da avó.

“Lembro que em alguns momentos, quando eu ia tomar banho, ele me esperava na porta. Um dia ele pediu para eu tirar a toalha e em alguns momentos chegou a se esfregar em mim. Nunca houve penetração, mas ele fazia eu tocar nele e dizia para eu não contar para a vovó. Beijava meu pescoço com uma tranquilidade nojenta”, relembra.

Além de extremamente delicada, a situação quando envolve pessoas que possuem grandes laços afetivos, torna muito mais difícil a denúncia do abuso sexual. Foi o que aconteceu com K. C. que guardou a violência a sete chaves.

“Até hoje só quem sabe é meu esposo, mas não gosto muito de falar porque ainda sinto nojo quando lembro. Não consigo esquecer que uma vez ele me colocou no colo com o órgão sexual dele para fora e se esfregou em mim. Minha avó passou pela janela, viu e depois perguntou ‘porque eu estava no colo do meu primo’. Como se a culpa fosse minha. Eu era uma criança”, desabafa.

O medo do escândalo no ciclo familiar, fez com que a jornalista - mesmo após adulta – optasse por não denunciar a violência.“Nunca denunciei por medo. Medo do escândalo que seria se o resto da família soubesse. Medo de acharem que eu tinha culpa nisso”, explica.

Sendo obrigada a carregar esse trauma para o resto da vida, ela orienta que os pais fiquem em alerta a qualquer possível sinal. “No caso da violência infantil é muito difícil dizer às crianças o que elas devem fazer. Por isso, que fiquem em alerta aos sinais. Que conversem abertamente com seus filhos, para que em qualquer sinal que remeta aos abusos eles já fiquem atentos”.

A psicóloga ressalta que a violência intrafamiliar tem consequências ainda mais devastadoras. “Tal tipo de violência fragiliza a vítima, um pouco mais do que a extrafamiliar, haja vista que esta primeira gera, na maioria, um caos familiar e a quebra de vínculos familiares”, explica.

A especialista destaca, ainda, o primeiro passo a ser adotado pela família: “o cuidador responsável pela vítima ou sua família nuclear, devem afastar logo no momento inicial da revelação do suposto acusado, ou acusada, e mostrar à vítima que sua queixa está sendo apoiada e valorizada pelos demais familiares que estão dispostos a ajudar em todo o processo”.

Em casos de familiares coniventes, a psicóloga Ana Júlia alerta que o suspeito seja afastado imediatamente do convívio com a vítima.

“O abuso deve ser denunciado ao Conselho Tutelar e, também, citado no processo judicial aberto de crime envolvendo violência sexual. O objetivo seria o afastamento do familiar conivente e, em seguida, a transferência da guarda para outro familiar ou cuidador indicado para esta função, se for o caso”.

FUI ABUSADO (A), E AGORA?

A vítima deve buscar atendimento e orientação médica, social e psicológica especializada. Além disso, deve-se realizar o Boletim de Ocorrência (BO) da violência nas delegacias especializadas, considerando a localidade da vítima.

Algumas vezes a ação do abusador tende a passar despercebida pelos familiares da vítima. Isso acontece, pois, nem sempre a criança é de fato violentada. Alguns abusadores preferem apenas “alisar” ou beijar a criança, passar as mãos pelo seu corpo e pelos órgãos sexuais, trocar carícias ou observá-las enquanto toma banho ou troca de roupa.

A psicóloga Ana Júlia Moreira ressalta a importância da construção de um vínculo de confiança para “descobrir” um possível abuso. “Precisa-se iniciar com a construção de um vínculo terapêutico de confiança, sinalizando que o psicólogo ou a pessoa envolvida na investigação respeite o tempo e os limites desta criança. É necessário realizar avaliação através de tarefas lúdicas e dramatização para amenizar os efeitos da violência”.

Para a especialista, as consequências do abuso na vida da criança estão associadas a uma interrupção no processo saudável de construção da autoimagem, da identidade familiar, interrupção na construção saudável da sexualidade, da afetividade, da sensação de segurança diante do contato com o próximo e na própria construção da personalidade.

“No caso de as marcas serem psicoemocionais, observamos que a violência deixa marcas na autoestima e autoimagem. Em outras palavras, deixa marcas na forma como a criança se enxerga e percebe, na forma como a criança se sente preparada para enfrentar o mundo e a sociedade e na forma como a criança se posiciona diante de suas escolhas”, pondera a psicóloga.

VENCENDO O TRAUMA

Segundo a psicóloga, apesar do trauma de ter sido abusada e das marcas psicológicas perdurarem pelo resto da vida, cada criança reage ao fato de maneira diversa. Há casos, entretanto, que os abusos nunca vêm à tona e que o “segredo” é guardado por muitos anos ou pelo resto da vida pelas vítimas, que podem levar para a vida adulta problemas como frigidez, dificuldades de relacionamento afetivo ou necessidade de se aproximar sexualmente das pessoas para obter algum tipo de atenção.

“A vítima deve sempre buscar acompanhamento psicoterapêutico, objetivando a construção de recursos necessários para auxiliar na elaboração do trauma e amenização de sintomas, bem como trabalhar a reconstrução de uma rotina saudável e vínculos nutritivos”, destaca Ana Júlia Moreira.

PEDOFILIA

A pedofilia está entre as doenças classificadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) como um dos transtornos da preferência sexual. Segundo a OMS, “pedófilos são pessoas adultas - homens ou mulheres - que têm preferência sexual por crianças do mesmo sexo ou de sexo diferente, geralmente que ainda não atingiram a puberdade ou estão no início da puberdade”.

“A pedofilia pode ser uma psicopatologia, uma perversão sexual com caráter compulsivo-obsessivo. Já outros a consideram como transtorno no desenvolvimento sexual, na personalidade dos indivíduos relacionado a várias psicopatologias”, ressalta a médica pediatra e psicóloga, Vilma Hutim Souza.

Para o Ministério Público Federal (MPF), a maioria dos pedófilos são homens, que em geral, têm atividades sexuais com adultos e um comportamento social que não levanta qualquer suspeita.

Ainda segundo o MPF, a atuação do pedófilo é facilitada devido a dificuldade de reconhecimento, pois aparentam ser pessoas comuns, que convivem socialmente. Vale ressaltar que, pedófilos agem de forma sedutora para conquistar a confiança e amizade não só das crianças, mas também dos adultos, e costumam usar a Internet para encontrar suas vítimas.

COMO IDENTIFICAR UM PEDÓFILO?

Segundo Vilma Hutim Souza, estudos mostram que o pedófilo tem uma personalidade marcada por imaturidade sexual e “caráter obsessivos e compulsivos, com atração sexual por crianças, podendo variar de carícias, atos libidinosos diversos e até o estupro”.

“O perfil geralmente é uma pessoa acima de qualquer suspeita. Ele pode ter uma afeição e atração para atividades que envolvem crianças, tem um perfil sedutor e envolvente, seduz e atrai crianças com uso de recursos lúdicos”, observa.

Identificar um abusador não é uma tarefa fácil, mas algumas características frequentes podem deixar possíveis vítimas em alerta, segundo a psicóloga.

“As características mais frequentes são de pessoas que não manifestam visivelmente um desequilíbrio específico. São àquelas que por sua vez, podem ter traumas não resolvidos na infância e adolescência, ou pode estar relacionado com quem foi criado em ambientes violentos, hostis e sem quaisquer limite e apoio”, salienta.

A orientação da médica é de que pais ou responsáveis conversem com seus filhos e visem construir um laço. “As pessoas devem cuidar mais das crianças, orientá-las a não aceitar ajuda de adultos, receber agrados, presentes e carícias de pessoas desconhecidas ou até mesmo conhecidas”.

Além disso tudo, a psicóloga destaca ainda que dependendo do perfil psicológico, há casos no qual os abusadores conseguem vencer os desejos.

“Depende do perfil psicológico. Se for um perfil psicopata não tem esse nível de consciência, nem sente remorso. Mas outros perfis, quando se veem em situação de publicidade de seus atos, podem ter remorso, insegurança e vergonha, e precisam de ajuda para vencer esses desejos”, esclarece.

Para ela, temas tabus deveriam ser incluídos na educação e debatidos pela sociedade. “Temas assim emergem na personalidade dentro das situações psicológicas de qualquer outro distúrbio emocional. Por isso, é importante desmitificar temas que envolvam este debate, esclarecendo as dúvidas desde a infância”.

DENUNCIE!

A promotora de Justiça Mônica Rei Moreira Freira enfatiza a importância da sociedade em obter informações e entender que a luta contra essa forma de violação de direito é obrigação de todos.

Ainda segundo a promotora, os números de casos de abusos são alarmantes, mas atualmente, as pessoas estão deixando seus medos e traumas para trás em busca de Justiça.

“Certamente hoje as pessoas denunciam mais, porém, ainda assim, doutrinadores estimam que para cada caso denunciado, outros sete deixam de ser. Assim, há a necessidade de uma sensibilização constante para que as pessoas comuniquem às autoridades competentes cada vez mais as práticas de abuso contra crianças e adolescentes”.

Para a delegada de polícia civil, Joseangela Cristina Santos, que atua há cinco anos na Delegacia Especializada de Atendimento à Criança e ao Adolescentes do Polo Pro Paz Integrado CPC Renato Chaves (DEACA-CPC), a sociedade hoje está mais atenta para o assunto.

“A demanda hoje no serviço é de mais de 40%, isso significa que a sociedade está mais atenta a essa questão”.

A delegada ressalta ainda, a importância dos serviços de denúncia anônima como o Disque 100 e 181 (sistema de segurança do Pará), além do trabalho das ONGS e da polícia, na prevenção dos casos de violência sexual.

“Nesse viés, há que se considerar que o sistema e a rede de garantias de direitos das crianças, como Conselho Tutelar, órgãos de proteção e polícia, está mais atuante e integrado para receber e direcionar essa demanda, e isso é recebido na sociedade com confiança e credibilidade, o que estimula a denúncia”, conclui.

LEI PREVÊ PENA DE 08 A 15 ANOS

De acordo com a promotora de Justiça Mônica Rei Moreira Freira, que atua na área da infância e juventude há 11 anos, há vários tipos penais que envolvem a dignidade sexual de crianças e adolescentes, sendo o mais comum o estupro de vulnerável, previsto do art. 217-A do Código Penal, cuja pena é a reclusão de 08 a 15 anos.

“Para que ao final do processo o autor da violência sexual seja responsabilizado, há necessidade de que a investigação e, posteriormente, a instrução probatória apresentem as provas necessárias de autoria e materialidade do crime. Assim, todos os fatos que levam a certeza de que o fato aconteceu são importantes para formar o convencimento do magistrado que vai proferir a decisão”, explica.

Uma vez aberta a investigação de casos de estupros, as mesmas devem ser levadas até o final, com a comprovação do crime e identificação do acusado, mesmo que a vítima retire a queixa.

A conselheira tutelar da Funpapa, Raimunda Cristina Evangelista Silva, questiona, entretanto, a comprovação do crime exigida pela Justiça.

“O flagrante está se tornando cada vez mais difícil, digo quase que impossível, infelizmente, pois o dito flagrante é visto pela Justiça como 100% praticando o abuso. Nós apelamos que seja revista a questão do flagrante e a agilidade da Justiça com a notícia de fato e, somente assim, poderemos mudar esse histórico lamentável”, desabafa.

REPORTAGEM: Andressa Ferreira

MULTIMÍDIA: Maycon Nunes

COORDENADORA SÊNIOR: Diana Verbicaro

EDITOR EXECUTIVO: César Modesto

DIRETOR DE JORNALISMO: Klester Cavalcanti

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