
Ele tinha uma empresa próspera no Rio de Janeiro, uma namorada brasileira, um gato de raça e um apartamento de luxo. Falava português com sotaque europeu e dizia ter crescido na Áustria. Artem Shmyrev, parecia um empreendedor comum, mas na verdade era um agente da inteligência russa vivendo no Brasil com documentos falsos e uma identidade construída de forma minuciosa.
O caso foi revelado após uma longa investigação e é apenas um entre vários. Por anos, o Brasil foi usado como uma base segura para formar agentes secretos de elite, conhecidos como "ilegais". O objetivo não era espionar o Brasil, mas usá-lo como ponto de partida para infiltrações na Europa, Estados Unidos e Oriente Médio.
Sob o nome falso de Gerhard Daniel Campos Wittich, Artem Shmyrev montou uma empresa de impressão 3D e parecia levar uma vida comum no centro do Rio. Mas, ao lado de outros espiões russos, ele fazia parte de uma rede secreta que operava sob identidades brasileiras forjadas com documentos verdadeiros, mas baseados em registros inexistentes ou fantasmas.

Esses agentes construíam laços sociais, abriam negócios e viajavam pelo mundo como brasileiros legítimos. Havia uma modelo, um joalheiro, um pesquisador aceito em universidades no exterior, e até um “estudante” que tentou estagiar no Tribunal Penal Internacional, na Holanda.
Investigação da Polícia Federal
Agentes da Polícia Federal passaram anos investigando sobre esses espiões russos. A partir de 2020, começaram a identificar padrões em registros de identidade e nascimento. Diante disso, nascia a ‘Operação Leste’, que envolveu investigações manuais e digitais para rastrear brasileiros com documentos válidos, mas sem qualquer histórico de vida no país, chamados de ‘fantasmas’.
Com ajuda da CIA e de outros serviços de inteligência ocidentais, os federais descobriram ao menos nove agentes russos vivendo no Brasil com identidades falsas. As investigações chegaram a oito países, incluindo os EUA, Israel, Holanda, Uruguai e Noruega.
O caso mais conhecido é o de Sergey Cherkasov, que usava o nome Victor Müller Ferreira. Ele foi barrado na Holanda ao tentar estagiar no Tribunal Penal Internacional (TPI), enquanto o órgão iniciava investigações de crimes de guerra cometidos pela Rússia na Ucrânia.
Expulso da Europa, ele retornou ao Brasil, onde foi vigiado de perto até a obtenção de um mandado de prisão por uso de documentos falsos. O passaporte, título de eleitor e até certificado militar eram legítimos, todos obtidos com base em uma certidão de nascimento inventada. Cherkasov foi condenado a 15 anos de prisão, pena depois reduzida para cinco.
Uma fábrica de espiões desmantelada
Com a guerra na Ucrânia em 2022, os serviços de inteligência globais passaram a colaborar com mais intensidade na investigação. O Brasil, historicamente neutro e com relações amistosas com Moscou, se viu no centro de uma operação delicada. O território nacional foi utilizado por anos como fábrica de espiões altamente treinados, algo interpretado pelas autoridades brasileiras como uma traição diplomática.
Diante da situação, a Polícia Federal agiu com discrição. Em outubro de 2024, em um movimento estratégico, o Brasil emitiu alertas pela Interpol, expondo os espiões sob o argumento de uso de documentação falsa, já que espionagem, por si só, não é considerada crime internacional.
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Vidas forjadas e disfarces caindo
Muitos dos agentes escaparam antes que fossem detidos. O próprio Shmyrev deixou o país dias antes da identidade dele ser oficialmente revelada, deixando para trás documentos, US$ 12 mil em dinheiro e pistas valiosas para a investigação.
Outros espiões, como um casal que vivia em Portugal ou o joalheiro russo Aleksandr Utekhin, que operava sob o nome Eric Lopes, desapareceram assim que a operação se aprofundou.
As autoridades confirmaram que muitos desses negócios, como lojas e empresas, serviam apenas para reforçar a credibilidade dos disfarces. Investigadores afirmam que é improvável que esses agentes consigam atuar novamente fora da Rússia, já que as identidades deles e métodos foram expostos em detalhes.
O rastro que levou à verdade
A investigação teve início com Cherkasov, mas se desdobrou em uma complexa rede de conexões. Entre os “fantasmas”, estavam nomes como: Manuel Francisco Steinbruck Pereira, Maria Isabel Moresco Garcia e Maria Luisa Dominguez Cardozo, todos ligados a atividades suspeitas e, em alguns casos, a passaportes emitidos por outros países, como Uruguai e Namíbia.
As certidões brasileiras, base para a construção das falsas identidades, seguiam um padrão de registros emitidos em áreas rurais, onde a comprovação médica de nascimento não é exigida, facilitando fraudes com a ajuda de testemunhas.

A exposição pública dos espiões foi vista como a melhor forma de retaliação. “O que é pior do que ser preso por espionagem? Ser desmascarado como espião”, disse um agente envolvido na operação. Os investigadores sabiam que, uma vez registrados em bancos de dados internacionais, esses agentes se tornariam 'perigosos' demais para continuar atuando, já que podiam ser descobertos.
Com apoio de agências estrangeiras, o Brasil conseguiu identificar os nomes reais de muitos dos infiltrados. Um casal que vivia sob o nome Pereira, por exemplo, foi identificado como Vladimir Danilov e Yekaterina Danilova.
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O fim de uma missão
Dos espiões identificados, apenas Cherkasov permanece preso. Shmyrev, o agente que levava uma vida aparentemente comum no Rio, desapareceu sem deixar rastros. Em uma última mensagem deixada para a namorada brasileira dele, o russo deixou um aviso enigmático.
“Vocês vão ouvir coisas sobre mim, mas precisam saber que eu nunca fiz nada tão ruim. Nunca matei ninguém... Meu passado me alcançou”, escreveu.
A Operação Leste desmantelou uma rede complexa de espionagem russa. Os agentes brasileiros seguem atentos a casos como esses.
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