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DAQUI TE ESCREVO

O cheiro do vinagre e o que não se diz em pequenos quartos

O escritor e jornalista Anderson Araújo traz a história de Lourdes e Vicente permeada de cartas e cheiros no lendário Vingança, extinto prostíbulo de Belém. Leia a coluna Daqui te Escrevo com textos literários publicados sempre às quintas-feiras no DOL.

Imagem ilustrativa da notícia O cheiro do vinagre e o que não se diz em pequenos quartos camera Arte: Emerson Coe

Havia chovido, como sempre chove em fevereiro, e a noite estava tão úmida que empapava os cabelos e as roupas do homem recostado no abieiro, nos fundos do quintal do Vingança. Esperava pela hora do cigarro que ela fumava entre um atendimento e outro. Quando a viu cruzar a porta da cozinha a caminho da retrete, endireitou-se e, sem perceber, apertou o bolo de dinheiro amassado no bolso esquerdo. No direito, guardava a carta.

A primeira vez deles aconteceu por mágica e intermédio de uma correspondência. No balcão, no salão daquele estabelecimento modesto, ele bebia sozinho e segurava folhas de caderno com a mensagem escrita em caneta azul. O papel estava de ponta-cabeça e ele o olhava sem foco, vazio. Ela percebeu o olhar confuso e perguntou sem cerimônia se ele não sabia ler. Não havia julgamento algum na pergunta. Só interesse real em ajudar.

Vicente riu com uma expressão não muito identificável e disse que não. Deixa que leio pra ti, mas não aqui, respondeu e o levou pelo braço. Depois desse dia, se viram muitas vezes e ele sempre trazia as mensagens para que Lourdes decifrasse em voz alta. Lia mal. Tropeçava nas tônicas, errava pronúncias, gaguejava às vezes, mas havia doçura na leitura e no tom de voz e surpresa no que descobria a cada linha, expressada nos grandes olhos que destacava com lápis preto e muito rímel. Tinha pouco estudo, muita generosidade e evidente simpatia por aquele homem de ombros largos e rosto castigado. Aquela intimidade estabelecida no dizer das mensagens virou uma espécie de código entre eles, criado para disfarçar a intenção original dos dois, num ritual sonso e cada vez mais natural e elaborado.

Nas leituras, Lourdes descobriu de onde vinha Vicente, como era a antiga casa onde ele habitava, quantos irmãos tinha, que o pai dele morrera quando tinha apenas 11 anos; como vivera errante dentro da própria cidade deixada pra trás e as saudades da revoada de primos e primas na infância e adolescência, o que a ausência dele causava do lado de lá e a insistência em cada linha para que voltasse ou, ao menos, respondesse, fosse como fosse, em resposta escrita por terceiros ou não, mas que não os fizesse esperar ou os abandonasse na cisma de uma viagem sem regresso ou de uma morte prematura. A cada epístola, a mulher reconstruía a imagem anterior, da vida pregressa, de antes do estrago que o tempo, a solidão de expatriado e Belém fizeram na figura de Vicente.

Quanto à Lourdes, Vicente nada sabia. Ela era um enigma absoluto, porém essa interrogação nunca o impediu de buscá-la com frequência e devoção. Sempre a esperava como clandestino do próprio livre arbítrio embaixo da árvore. E, de tantos encontros, os frequentadores, os vizinhos e os circundantes daquele lupanar já diziam que eram amantes ou, em casos mais extremos de maledicência, namorados apaixonados. Na cabeça dele, era uma fofoca absurda.

Um relacionamento com Dinha, como passou a chamá-la seria impossível, repetia Vicente. Não com ela em especial. O que não conseguia era se imaginar à luz do dia, nas praças, cinemas, bares, de mãos dadas na rua, com uma mulher da vida, uma mulher ordinária, uma qualquer e evitava, de todas as formas, chamá-la pelo nome chulo da profissão que ela exercia. Sempre que mencionava que ia ao Vingança para encontrar Lourdes, dizia que iria ver “a menina lá” e expressava tão rápido e comprimia os fonemas, como quem tem pudor ou disfarça um erro. Queria apagá-la de dentro de si e esconder o que sentia pela grande e incontornável Lourdes do Vingança, que todos conheciam pela fama na noite, mas que a cumprimentavam à luz do dia com admiração pela beleza e pela dignidade com que circulava longe do ambiente de pecado no qual vendia sua carne barata para ganhar o pão.

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Vicente queria escamotear Lourdes para o mundo e mentir a ele mesmo que ela só existia na realidade paralela em que se encontravam e se descobriam, embora pensasse nela sempre e, quando a situação apertava, era para ela que ele corria, era ela a quem procurava, ansiava, era o nome dela que murmurava, e que buscava nervoso no mesmo lugar de sempre, como se ela fosse um remédio adocicado, um prato de sopa nas manhãs de ressaca, um calmante no domingo à noite, um litro de cachaça depois do expediente na sexta.

Jamais deixava de ir até a Dinha sem o pagamento em mãos; levava em dinheiro vivo e amarrotado, para configurar o negócio. Para marcar que toda a dança entre os dois, todos os nós cada vez mais apertados e os laços mais delicados feitos por eles, quase confundidos naquelas visitas secretas, toda ternura e violência abafada no quartinho em cima do colchão suado fedido a vinagre, cada gota de segredo que esguichava das bocas abertas de ambos no escuro, cada mão acanhadamente entrelaçada depois do gozo, tudo absolutamente tudo, tinha preço e prazo.

Em uma outra área dos afetos e ilusões, mantinha outra mulher que supunha ser digna de amor. A pretendida para o romance ideal era uma índia de longos, lisos e negros cabelos e seios fartos de mamilos arroxeados, que alimentariam os cinco filhos que teriam juntos, quando os dois fossem morar na casa que ele ergueria com as próprias mãos, na invasão do Elo Perdido. O plano estava pronto. Só faltava a donzela aceitar as investidas e driblar a mãe pra que se encontrassem e fugissem do pântano perfumado de bosta e forrado de lixo plástico e caroços de açaí apodrecidos em que viviam.

Mas, na escuridão, enquanto aguardava sob o pé de abiu, aquele amor de fotonovela nem passava pela cabeça dele.

- Trouxe a carta? – Lourdes perguntou e o beijou no rosto.

Mais uma vez, segurou as mãos do freguês costumeiro, ásperas feito pedra, e o levou até o cubículo que ela alugava por diária para atender até trinta homens noite e dia. Dava-se o luxo de folgar apenas às segundas-feiras.

Carmem passou o ferrolho na porta, pôs a tranca e se despiu. Deixou só a calcinha vermelha no corpo, como ele gostava que ficasse. Ele tirou os sapatos e as meias, quase ao mesmo tempo, truque para esconder remendos dos quais se encabulava. Já o constrangimento dela foi em relação à colcha puída e molhada do serviço anterior ao dele. O consumidor de antes, um peixeiro idoso, veio de longe, da Condor, à procura dela e não era asseado, como Vicente.

Na cama, muito mais Lourdes do que Dinha, ela se insinuou, enroscando-se na coxa direita dele já sem a última peça íntima. Sentiu a vasta penugem da mulher a lhe roçar a perna, olhou o teto e o sangue circulou pelo corpo. Ela pressionou o ventre contra o quadril dele e o beijou na boca, amorosa, desejante, lúbrica, líquida, por gosto e prazer. A língua derretida, deslizante, transgressora. Procurou-o com as mãos e o encaixou com habilidade profissional. Cavalgou rápida, cadenciada, sentindo as carnes rasgadas por dentro e o útero revirado. Tremeu e cravou as unhas tão forte no peito do homem que lhe arrancou sangue. O gozo dela veio bruto, revirou o estômago, retesou os músculos todos, enrubesceu a face e lhe matou por alguns segundos. Vicente se esqueceu da vida por inteiro. Enxergou aquela mulher ainda mais bonita, ela que agora ria e arfava na caminha encardida com a cara em brasa.

Depois de se aninharem por um bom tempo e sorverem o cheiro e lamberem a água e sal um do outro e escutarem a respiração um do outro reduzir o ritmo, ele se sentou na cama. E iniciaram a segunda parte da tarefa, que ele gostava tanto quanto a primeira.

Como de praxe, ela pediu a carta.

Enquanto a olhava calada, o batom borrado, os seios pendentes, as dobras da barriga, as vértebras do pescoço por baixo da pele, a cabeleira escura e enorme e a atenção quase total ao que estava escrito, teve vontade de contá-la que sempre soube ler, que antes de chegar em Belém pra trabalhar como ferreiro se alfabetizou em Imperatriz, no Maranhão, que cursou quase o ginasial todo, com boas notas em Aritmética e Geografia e que sonhava em trabalhar em escritório, fazer um concurso pro Banco do Brasil e passar a vida até a aposentadoria a batucar uma máquina de escrever e fazer contas.

Mas nada disse.

Permaneceu hipnotizado por ela, pelas mãos de unhas pintadas, pela forma como se sentava, pelo sotaque paraense anasalado e chiado e como proferia as gírias noturnas do bairro do Samba e do Amor, pelo caminho fundo feito pela musculatura ao redor da coluna, pelos filhotes de cabelo ao fim da nuca, pela temperatura da parte de dentro das coxas, pelo riso farto e pelos silêncios compartilhados entre os dois e, sobretudo, pelo desabandono que sentia ao sair do Vingança depois que a via e Dinha o levava para o quartinho.

Entregou o papel que apalpava por fora da calça debaixo da árvore.

No silêncio, ela ligou a lâmpada incandescente direto no bocal e amarelou as quatro paredes ao redor, depois acendeu um cigarro sem pressa nenhuma. Passou os olhos nas palavras, uma a uma. Era mais uma carta de Maria do Carmo, a mãe de Vicente, com data de 18 de dezembro de 1981. Então, percebeu que lera a mesma mensagem havia meses e o informou.

- Essa tu já me trouxe.

Ele deu de ombros, sorriu sem mostrar os dentes, deitou no colo da mulher e pediu com algum cansaço físico e reconfortado onde se sentia seguro:

- Lê de novo pra mim, por favor.

Anderson Araújo é escritor, jornalista da equipe do Dol e escreve às quintas.

Conto publicado originalmente no blog Daqui teEscrevo.

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