Dimas voltou muito mais triste depois de uns dois anos no veneno. Não tinha aprendido nada nesse tempo, sabia menos ainda sobre o amor. Brotou sem camisa, o ventre magro, a bermuda folgada no rendengue, o cabelo descolorido, umas tatuagens a mais e estava com a tornolezeira eletrônica quase descarregada, presa à canela fina e cheia de tuíra. Ele riu sem graça e meio envergonhado ao ouvir da Conceição:
- Tá igual cachorro velho. Tu precisas é de um banho – berrou a mulher com um sorriso.
Chovia e as frieiras do pé de Dimas coçavam em contato com a água do piso da feira. Pela excessiva exposição à umidade e ao calor do xadrez, ele estava cheio de impigens pelo corpo. Muito mais do que se banhar, naquela hora, Dimas precisava de um prato de comida e algum conselho amigo. Por essas razões, primeiro foi atrás de Das Dores, mas não a achou. Daí correu até Conceição.
Preferia a primeira, porque ainda que Conceição acertasse sempre, era debochada o tempo todo e ria alto quando ele contava as angústias e o expunha ao ridículo, às vezes com comentários indecorosos sobre as queixas dele, para quem quisesse ouvir ou estivesse por perto. Foi assim da última vez que esteve ali, quando ela previu que somente doses cavalares de saudade funcionariam como remédio.
- Posso até te passar umas coisas, mas só vai funcionar quando bater a saudade. É o que pesa e só vem por ela, não por ti. E não é qualquer saudade, não. Já sentiu saudade de verdade? Dói e não é pouco.
Das Dores comentou quase a mesma coisa. Só que tinha mais zelo, porque via em Dimas um filho extraviado. Das Dores era miudinha, o rabelo ralo, pintado de loiro queimado, os colares feitos por ela mesma e um sorriso terno. Era pra dentro e nessa concentração interior residia a força dela. Nunca foi expansiva e pouco falava, tanto que nunca era escolhida para dar entrevistas aos repórteres que apareciam sempre com as mesmas perguntas burras, a mesma ignorância irritante e o mesmo tom de espanto sobre o trabalho delas. Não fazia questão de fama. Bem diferente da Conceição, enxerida e exibida de nascença.
No último encontro com Dimas, Das Dores o segurou pelas mãos. Ele estava parrudo na época e era bem maior do que a velha. Ela o olhou de baixo pra cima, nos olhos, como uma avó postiça.
- Meu filho, toma cuidado com essas coisas. O que não é nosso a gente deixa pra lá. Vou te passar o que precisa, mas te pega com Deus e Nossa Senhora também. Isso pode te acabar.
Não acreditou tanto, mas comprou as folhas e as defumações. Ficou nu no quintal em noite de lua e fez as abluções como recomendado. Manteve o pensamento firme, rezou de joelhos no chão e mentalizou Graça: a dança fácil, o cheiro de shampoo e de creme de pentear nos cabelos, o encaixe do quadril seco, o pescoço delgado suado, o hálito de chiclete, os peitos pequenos e os mamilos escuros em contraste com a pele, o ventre doce de lábios salientes pelos quais se apaixonou de pronto, o suor mar de sal, provado com gosto, a boca úmida cheia de dentes, os olhos pálidos, esconderijos de uma fogueira sem fim. O malandro a queria de novo e faria qualquer coisa para tê-la.
Passaram-se os dias e as semanas depois daquela sexta-feira e nada.
Graça sumiu.
Teria ido pra Santa Catarina como disse que sonhara? Teria se arranjado com um coroa no Baile da Saudade? Teria se amigado com aquele zinho? Como era mesmo o nome dele? O ciúme esquentava o sangue e corroía as vísceras de Dimas, contudo, ele não desistia.
Ele comprou uma passagem no Estrela do Mar e rumou até Vigia pra procurar a mãe de Graça, dona Elizeth, próximo à Igreja de Pedra.
- Hum. Nunca mais vi. Essa uma só me dá desgosto e dor de cabeça. Gracielly nunca prestou, não te mete com ela.
Retornou a Belém em desespero, penitente, conturbado, obnubilado, sorumbático, quase desistente.
No dia seguinte, Dimas foi preso.
Foi em um assalto banal. Já tinha feito antes na mesma área; era jogo rápido, limpeza, ganho certo, sem alteração. Mas a PM embaçou. Dimas fez um motorista de Uber como refém na fuga, ficou encurralado no carro por horas. Encheu de gente ao redor. Deu até imprensa. Achou que levaria bala assim que pisasse fora do veículo. A morte não o preocupava. O doloroso seria não rever Graça, não rever Graça para sempre.
Não foi dessa vez, porém. Sem drama nem tiros, foi algemado, levou umas porradas e ficou uns dias na Marambaia. Só depois desceu ao inferno, em Americano. Seis meses depois, ela surgiu na visita. Do nada.
Estava mais bonita. O cabelo mais longo, um pouquinho mais redonda e bem fornida por baixo da roupa discreta para não chamar atenção no presídio.
- Tava com saudade, muita saudade - sussurrou.
Não se sabe se é a necessidade que amplia o sabor e o deleite ao que faz falta ou se Dimas, realmente, a enxergava mais bela a cada novo encontro. Era uma magricela espichada, branquela meio encardida, de pescoço grande, pernas longas e finas e um andar de desengonço. Leve, leve, leve, de pequenos olhos sonsos e mãos calejadas do trabalho como doméstica.
Nunca foi bonita (ou feia) de forma objetiva. Entretanto, guardava em si uma chama, um troço, algo indecifrável, um magnetismo natural que a diferenciava e a transformava em uma musa ou deusa. Não dos céus ou do Olimpo. Era uma divindade da água e da terra, de perto, ao alcance das mãos de seu Prometeu, agora acorrentado, ou de qualquer um que lhe quisesse. Sem lei nem rei, fazia o queria para o ódio da mãe Elizeth, desde sempre, e para a agonia de Dimas, depois que a conheceu.
Graça conseguiu autorização para as visitas íntimas e os dois fodiam feito doidos, abafando os ruídos como podiam sem muito sucesso. Graça ouvia os sons de outros presos nos outros cárceres e sentia os cheiros da cadeia com a maior curiosidade e atenção enquanto se escanchava e gozava derretida para o namorado. Saía de lá com o coração acelerado, a buceta em brasa e as pernas bambas nas primeiras vezes, maravilhada em absoluto, como se tivesse cometido uma hecatombe, uma imoralidade imperdoável e se sentia bem por se sentir assim; orgulhosa como se fosse protagonista de um escândalo dentro da novela que ela havia criado na própria cabeça, na qual era mocinha e vilã ao mesmo tempo, sempre a atriz principal.
De repente, cessou e Graça não foi mais.
Sem avisos, sem justificativas, sem recados. Apenas deixou de ir.
O malandro quase morreu quando a mulher não apareceu entre os visitantes no mês seguinte e a ausência dela foi para ele uma aflição incessante, uma prisão dentro da prisão dentro de outra prisão. Teve febre, calafrios e delírios, quase enlouqueceu. Deixou de comer até precisar de atendimento da enfermaria. Não entendia o desprezo repentino e se mortificou pra valer. Por pouco não levou o farelo, como costumava dizer. Até entender que precisava estar vivo para encontrá-la novamente.
Meses depois, ao ganhar liberdade provisória, começou a busca por Graça.
Vagou por todos os lugares, todas as boates e festas onde ela poderia aparecer. Chegou a conseguir até o novo número da mãe dela. Elizeth agora vivia em Itaituba, amancebada com um garimpeiro. Estava em outra, renovada, sabia menos ainda da filha.
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Dimas era um fantasma e perdeu a coragem até para meter o bicho por aí. Passou a viver do que davam pra ele. Percorreu Belém por um tempo como andarilho e, no dia em que foi até as bruxas, com tornozeleira de enfeite e coração aos pedaços, não achou Das Dores. Ela havia morrido de covid fazia uns quatro meses. Então, deixou um instante o vazio no peito de lado e a dor por Das Dores se sobrepôs à dor por Graça e pareceu que as misérias mais recentes se amalgamaram numa coisa só e sentiu toda a amargura pelo mundo na ponta da língua e no fundo do estômago. Culpou-se, culpou a humanidade, culpou Deus, culpou o diabo, culpou o governo:
- Presidente, filho da puta.
Já Conceição, por sua vez, estava ali, vivinha da Silva. Inteira e risonha como sempre, sentada em frente à barraquinha, cercada de plantas, de cheiros e de vidrinhos com nomes picantes. Falante e ativa com uma cara de velha sassariqueira, de bucho protuberante e braços fortes. Nem precisou perguntar nada depois de ver Dimas e dizer que ele precisava tomar banho. Foi menos invasiva e lamentou a morte de Das Dores, de chofre.
- Eu avisei tanto. Ela não se cuidava, vivia sem máscara. Mas era o risco, né? Podia ter sido eu. A gente não parou de trabalhar. Ou vinha pra feira ou morria de fome. Era uma loteria. Foi ruim, sinto falta da minha amiga.
Quanto à cadeia, Conceição vaticinou.
- Azar, né, meu filho? Às vezes, a gente cai. Mas tava dito e eu te avisei. Cada pedido tem uma solução, e cada solução tem um preço. Tem vezes que é caro, tem vezes que custa tudo. E não tô falando de dinheiro, que nem isso tu tens, tu sabes. Larga disso e daquela uma. Não tem futuro, é só o que eu te falo.
- Mas eu quero. Me ajuda.
Conceição voltou à forma e riu na cara de Dimas.
- Vai fazer tudo que eu mandar e, mais uma vez, ela só vem por ela mesma. Dessa vez não vai ser por saudade. Ela vem pela misericórdia.
- Misericórdia...?
- É. Por pena, porque tu és um coitado, um amaldiçoado, um desgraçado. Teu mal é que tu não te conformas.
- Mas ela vem, né?
- Vem, só que o risco é todo teu. Menino, se eu fosse a tua mãe, te amarrava em casa até isso acabar. Tu devias me pedir pra te curar disso, isso sim, pra esquecer. Tu és novo, tá solto, olha aí, vê se te enxerga. Não dá pra andar atrás de quem não te quer. Nem reza nem planta te ensinam isso. Tu tens que aprender sozinho e na marra.
- Ela me quer, sim. Só precisa saber que eu saí, que tô na rua, que tô pra ela.
- Ela te quer, não: ela te quis. É diferente, é passado. Quando tu tavas preso ela não deu o jeito e foi lá? A essa hora ela já até sabe que tu saíste. Se quisesse, já tinha vindo atrás. Deixa disso.
- Ela aparece por aqui?
- Faz é tempo que não vejo. Não sei de nada, se casou, desquitou; se tá prenha, se teve filho. Nem se tá viva ou morta. Só Deus sabe. Vê a Das Dores, coitada, ninguém dizia...
- Não fala isso. Faz pra mim, Conceição. Eu quero ela comigo de volta.
Então, Conceição se cansou e deu de ombros. Largou de mão os conselhos e pediu para que ele viesse no dia seguinte, que prepararia.
Dimas a obedeceu e Conceição entregou a ele a encomenda em silêncio e algum desdém, além da orientação de só fazer na última sexta-feira do mês.
Ele procedeu como a mulher ordenou, tudo certinho. Tomou os banhos, proferiu as rezas, mentalizou a chegada de Graça.
No dia seguinte, cruzou o batente da porta do quartinho de vila sem número, para onde havia se mudado fazia pouco tempo. Era meio dia e pouquinho, sol alto. Saiu à rua com Graça na cabeça, crente de que ela reapareceria a qualquer momento.
Os três homens desceram do carro bem diante de Dimas e a única coisa que sentiu foram fisgadas pelo corpo, picadas ferventes, um encostar a pele na panela de pressão, um ardume de sal e vinagre na ferida, como ferradas de mutucas. Ouviu o veículo partir e sentiu muito sono, já deitado, como se a insônia de tanto tempo, alimentada pela espera prolongada, por fim tivesse cedido e o permitido descansar livre da obsessão de estar acordado para receber Graça no dia em que ela voltasse.
Graça soube no mesmo dia, sem muitos rodeios.
Chegaram fotos e vídeos pelo telefone e Dimas parecia dormir de bruços. Estava mais magro e descorado, guardava no corpo uma beleza adormecida que ela não conhecia, por jamais terem dormido juntos. Chorou um pouco, chorinho de nada, e se lembrou das visitas ao presídio, por um tempo a história preferida dela.
O enterro de Dimas seria no dia seguinte, às dez, no Tapanã, mas ela preferiu não ir, apesar de toda piedade que sentiu por ele.
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Anderson Araújo é escritor, jornalista da equipe do Dol e escreve às quintas.
Mais contos como esse você encontra no Blog Daqui te Escrevo.
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Vá ouvir No meio do Pitiú, de Dona Onete.
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