A tenebrosa história do lavrador Policeno Antonio Espírito Santo foi noticiada pelo jornal “O Democrata”, no dia 28 de janeiro de 1893, um sábado. Cinco anos depois da abolição da escravatura, Policeno foi caçado e torturado a mando do “prefeito de segurança” de Igarapé-Miri na época, Manoel Leandro Lobato. Acusado de um roubo de um baú recheado de roupas, crime que não cometeu, o homem foi preso e brutalmente espancado, começando a violência no dia 30 de dezembro de 1892.
As consequências da tortura física e psicológica, impetrada por dias contra a vítima, estão descritas na notícia de 131 anos: “Terça-feira última, antes de partir para esta capital o nosso informante, cahiu (SIC) apodrecida a mão direito do infeliz, que achava-se moribundo, ainda entre as paredes da prisão”. E mais: “as costas, bem pode se dizer, estavam pior que a dos escravos, chicoteados pelos feitores das fazendas, antes da lei de 13 de maio”.
O martírio de Policeno serviu como pano de fundo para debate político entre grupos partidários da elite local. Enquanto uns comparavam à vítima a um mártir, outros classificavam Policeno como um bandido merecedor das consequências dos seus atos por causa de um suposto histórico de furtos relacionados a ele. O episódio foi repercutido nas páginas dos jornais da época e chegou até o governador Lauro Sodré, que prometeu investigação e providências diante do clamor popular.
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O cenário de violência mesmo após a assinatura da Lei Áurea, em 1888, aponta o tratamento dispensado à população negra, como demonstra o artigo do professor e doutor em História na Amazônia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), David Rodrigues Farias, 32 anos. Outro aspecto é a relevância do tema para os grupos políticos que mandavam na Província, que travaram uma guerra ideológica a partir do tema, já no período republicano, mas que pouco antes negociavam entre si o contingente humano de origem na África.
Além do artigo científico, o pesquisador David Farias escancara essas relações comerciais entre senhores, cujos sobrenomes se reconhecem até os dias de hoje, e traça um panorama nítido de como funcionava a escravidão na região que só perdia para a Comarca de Belém em quantidade de escravizados. É dele o livro “Negócios e destinos: o comércio de escravizados no Vale do Tocantins/PA (1842-1887).
A obra é resultado de um minucioso trabalho de apuração e análise entre documentos cartoriais e jornais da época que auxiliam a quebrar a falsa impressão de que a escravidão no Pará foi inexpressiva, além de demonstrar peculiaridades da prática na região que vão muito além do que é ensinado nas escolas. David explica, por exemplo, que há diferenças fundamentais sobre utilização de mão de obra escravizada em território paraense em comparação com o uso desse trabalho no Nordeste e no Sudeste brasileiro.
“Antes da década de 1960 era muito comum se dizer que na Amazônia havia um vazio demográfico em relação à presença africana. Professores como Anaísa Virgolino, Napoleão Figueiredo e outros começaram a desconstruir esse discurso. A gente não pode comparar a presença africana aos moldes do Nordeste ou do Rio de Janeiro, São Paulo”, comenta. comenta ele. David pondera que o contingente de 58.089 africanos na Amazônia, adentrados entre os anos de 1680 a 1840, não pode ser desconsiderados.
O Vale Tocantins ou Baixo Tocantins dividia-se jurídica e administrativamente nas comarcas de Cametá e de Igarapé-Miri, reunindo seis municípios e nove freguesias de acordo com o padrão do império brasileiro nas últimas décadas do século 19. Em todo o Baixo Tocantins havia desde meados do século 18 constante necessidade de mão-de-obra escravizada que suprisse as demandas dos trabalhos na lavoura.
De acordo com o Censo de 1872 a comarca de Igarapé-Miri era o segundo maior polo escravista da Província contando com 4.266 cativos, em um período que havia em todo o território paraense aproximadamente 30 mil escravizados.
Um “artigo de luxo” negociado entre ricos
Outra singularidade que o livro evidencia é a força da economia das cidades como Igarapé-Miri, Cametá, Abaetetuba, Moju, Baião e Mocajuba, que hoje compõem a chamada região do Baixo Tocantins. O intenso fluxo com o porto de Belém e a compra e venda de pessoas escravizadas mostram que essas localidades concentravam uma elite rica, capaz de suportar a pressão da inflação para adquirir a mão de obra escrava, cada vez mais cara depois do fim do tráfico humano pelas rotas do Atlântico, com os navios vindos dos países africanos.
Para se ter ideia, o livro cita a uma escritura de compra e venda de 1886, negócio fechado entre a vendedora Dona Laurinda Pantoja Rodrigues, viúva de Carlos José Rodrigues, e o comprador Manoel João Pinheiro Primo, em Abaetetuba. Ela vendeu “um escravo preto de nome Julio”, de 18 anos de idade, ao preço de 800 mil réis. O valor é considerável – a título de comparação nove gramas de ouro 24 quilates custavam dez mil réis, em 15 de novembro de 1889.
“Se o racismo é estrutural, a pobreza estrutural e a riqueza também são estruturais. Quando olho para os sobrenomes da época, eles ainda que comandam a economia e a política local”, comenta. Um dos exemplos é o maior comerciante de escravizados do período, o comendador Domingos Borges Acatauassu, que foi sogro do Barão de Igarapé-Miri, um político influente em todo o Estado, hoje nome de rua em Belém.
A dinâmica desse comércio pode ser observada pelos números de vendedores no Vale do Tocantins. São 327 senhores, entre grandes proprietários de terras e engenhos, comerciantes e pequenos lavradores. Na obra, é possível perceber 22 nomes listados entre os que mais venderam escravos.
O mais importante deles é o Coronel Joaquim Cardozo d’Andrade, com as “mercadorias” negociadas pela filha dele, Anna Cardozo d’Andrade, uma das herdeiras dos bens deixados pelo pai. Ela vivia na capital e autorizava a venda de “quaisquer bens de raiz, móveis e semoventes” na comarca de Cametá, onde o plantel desse senhor contava com pelo menos 93 escravizados, segundo os registros da época.
Engenhos e cachaça
O papel dos engenhos também é relevante para entender essa dinâmica econômica do período. A cachaça, um dos produtos mais importantes para a econômica amazônica da época, vinha dessas manufaturas. Não por acaso, até hoje a aguardente é relacionada a uma das mais importantes cidades do vale, Abaetetuba. “Rio abaixo, rio acima, minha sina cana é/Só de pensar na maldita, me alembrei de Abaeté”, diz a letra de "Esse rio é minha rua", famoso carimbó composto por Paulo André Barata e Ruy Barata.
David Farias, no entanto, explica que a fama de Abaetetuba, tal como a conhecemos hoje, é de um segundo ciclo dessa produção de cachaça. Com o declínio do ciclo da borracha na Amazônia, por volta de 1912, a produção dos engenhos toma novo fôlego ente 1936 e os anos 1970. Ele ressalta ainda que essa produção, no entanto, é bem menor do que na época da escravidão.
Enquanto no século 20, a região contava com cerca de 50 manufaturas que extraiam álcool da cana-de-açúcar, no século 19 esse número chegava aos 116 só na comarca de Igarapé-Miri. O pesquisador frisa que, desse primeiro ciclo, a mão de obra utilizada era majoritariamente escravizada, “tanto que quando a abolição ocorreu a maior parte desses engenhos faliram”.
O impacto na vida das pessoas escravizadas
Os estudos sobre escravidão na Amazônia têm um importante viés que supera o de compreender os fenômenos da época se concentrando apenas em números, cifras, datas e localização geográfica. Converge para a mudança, relativamente recente, da expressão que denominava pessoas submetidas ao regime de servidão. Em vez de escravos, hoje se usa preferivelmente escravizados, enfatizando que, por trás da História oficial, houve pessoas que compulsoriamente tiveram suas vidas impactadas por esse modelo desumano de exploração.
Sobre essa forma de pensar, David Farias explica que perceber a dimensão humana do problema ampliou o seu interesse pela pesquisa: “quando lia os registros de compra e venda e todas as outras documentações, eu percebia o quão deveria ser complicado para essas pessoas esse constante redirecionamento das suas trajetórias de vida. A separação familiar é algo muito traumático”.
David também tem ligação direta com seu objeto de estudos por ser de ascendência afro-brasileira e ter nascido nessa região, o que, de certo modo, também influenciou no interesse pelo tema. O pesquisador acrescenta que, quando se fala em “Negócios e destinos”, fica nítido a visão senhorial e situação do escravizado. Enquanto os proprietários estavam tratando de compra e venda, registrando suas transações em documentos de cartório, o que pesava para o negro era o impacto que mudança ia provocar na vida dele.
O levantamento histórico indica um fato curioso sobre esses possíveis laços, ainda que baseados na exploração. Casos em que os escravizados vendidos para outro proprietário fugiam para retornar à fazenda de seus donos originais, onde era possível voltar a conviver com parentes e refazer outros vínculos mais antigos. “Essa mudança de destino era quase sempre traumática ou tinha algum abalo do ponto de vista social e emocional para esses indivíduos”, explica.
O livro traz alguns exemplos dessas rupturas, como é o caso do escravo Joaquim, publicado no jornal Diário de Belém, do dia 29 de setembro de 1869. Trabalhador da Fazenda S. Mateus, em Igarapé-Miri, ele havia fugido e seu proprietário pôs anúncio na esperança de acha-lo: “põe-se ter hido (SIC) para o rio Acará aonde tem parentes”. Os motivos das fugas eram vários, incluindo os abusos físicos e a separação de familiares por venda ou transferência, o que pode ter sido o caso de Joaquim.
Havia restrições em separar pais e filhos, por exemplo, porém, havia situações em que essa regra era ignorada, como em 1876, quando Joaquina, André e Manoel foram negociados, todos abaixo da idade máxima em que se podia separar menores do núcleo familiar. O livro fala ainda do menino Martinho, de apenas 10 anos, vendido em 1870 para um senhor chamado Tenente João Antonio Bahia.
Os casos são pontuais, mas também dão conta da violência emocional dessas separações. A regra era vender o cativo com a prole junto, como é visto no caso da escrava Ana que foi negociada com os dois filhos, Sebastião, de 12 anos, e Manoel, de 8 anos, por um conto e cem mil réis, em 2 de setembro de 1875.
Prazo de validade
No mercado de escravizados, havia também preferência por certa faixa etária. Homens e mulheres entre 21 e 35 anos eram os mais vendidos no levantamento que inclui 432 trabalhadores. Contava nessa preferência o vigor físico, que os habilitava para várias atividades. Assim como os mais velhos também, nessa mesma lógica, eram menos procurados: entre 41 e 45 anos há uma queda no interesse dos compradores.
O estudo chama atenção ainda que alguns escravizados já em idade avançada também eram comercializados, apesar do pouco interesse por eles. O desgaste físico do trabalho força era um dos principais motivos dessa queda na “cotação” dessa faixa etária. Vale lembrar também que, em 1885, veio a Lei dos Sexagenários, libertando em tese os cativos com mais de 60 anos. Um passo importante no conjunto das legislações surgidas com a pressão internacional pelo fim da escravidão no Brasil, mas com pouco efeito prático: boa parte não chegava a essa idade.
Surras, torturas, má alimentação e falta de assistência em saúde eram algumas das pedras do caminho para que poucos dessa população fossem longevos. Os registros são raros, embora existam: um deles é o escravo Liberato, que morreu aos 80 anos, em 1877. Africano de nascimento, ele padecia da “moléstia da paralisia” já havia dez anos, possivelmente uma sequela da vida como escravizado.
“Quando falamos da escravidão na Amazônia, é preciso pensar na dinâmica dos rios e das florestas”
David Farias concorda com estudos anteriores que demonstram que a prática da escravidão na Amazônia segue uma dinâmica própria a partir de uma economia diversificada, ligada entre Belém e os municípios do interior, como na região do Vale do Tocantins.
O livro dele demonstra essa força com a compra e venda de escravizados entre senhores locais, sem "exportar" cativos, por exemplo, para áreas de expansão econômica, como nas cidades paulistas onde vicejava o dinheiro do café, no século 19.
Ele frisa ainda que havia um esforço dos governantes para estimular uma economia de base agrícola, sendo que a mão de obra escravizada foi fundamental para seguir esse caminho.
Os historiadores nos últimos anos têm se percebido que a economia amazônica era muito mais dinâmica, muito além da própria da própria borracha ou da exploração dos recursos florestais, as chamadas drogas do sertão.
David Farias, Historiador e pesquisadorPara David, a importância de aprofundar os conhecimentos e reflexões sobre a escravidão na Amazônia também tem um impacto no ensino regular, ou seja, nas escolas e como os alunos compreendem o tema. Muito além do sofrimento dos horrores da escravidão, com as sevícias e privações, a população negra deixa também um legado que só é possível absorver se abarcar a dimensão humana.
A música, a dança, a gastronomia, as técnicas de trabalho, a religiosidade, a filosofia e as soluções cotidianas a partir da vida e da inteligência com raízes na África são parte do que é a Amazônia. Para entender essa complexidade, um dos passos é conhecer essa história nos seus detalhes, às vezes escondidos em arquivos de cartório, como bem mostra a pesquisa.
Equipe Dol Especiais
Reportagem de Anderson Araújo: editor e coordenador dos conteúdos especiais do Dol. Formado pela Universidade Federal do Pará (UFPA), em 2004, e mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade do Porto (Portugal), em 2022. É também autor de dois livros de contos e crônicas publicados em 2013 e 2023, respectivamente.
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