O Complexo do Ver-o-Peso, sem dúvida alguma, já se consagrou como a “cara de Belém”. Não é exagero dizer que o complexo não para nunca. De madrugada e nas primeiras horas do dia o movimento no local já é intenso, especialmente na área da Feira do Açaí, onde o produto começa a chegar para ser vendido ainda na noite do dia anterior. Rápido, paneiros abarrotados de açaí começam a se juntar um a um para serem comercializados ainda antes do dia amanhecer.
Num ambiente dominado por homens, a vendedora de açaí Ana Gomes é uma das poucas mulheres a atuar nesse ramo. Todos os dias, há 10 anos, vive a rotina do lugar. Moradora do Conjunto Maguari, ela madruga para chegar ao local. “Chego aqui por volta das duas horas da manhã e fico até umas nove ou então até conseguir vender tudo”, conta, sentada em uma cadeira diante dos paneiros de açaí, encolhida por conta do frio e da chuva fina que caia na madrugada.
Com o trabalho ela consegue uma renda superior a um salário mínimo, com a qual sustenta a si e a mãe, com quem mora. Apesar da rotina pesada, que exige muitos sacrifícios, ela afirma sentir-se bem com o que faz. “Gosto muito de trabalhar aqui. Tenho amigos, todo mundo aqui se conhece, me sinto segura”, diz. “Sou mais feliz hoje do que quando trabalhava como empregada doméstica”, compara.
Para ela, o Complexo do Ver-o-Peso é um lugar especial, mas poderia ser ainda melhor, caso oferecesse uma estrutura mais adequada de trabalho para as pessoas que todos os dias estão lá para ganhar a vida. “O aniversário é de Belém, mas se eu pudesse pedir um presente para ela gostaria que aqui tivesse um galpão coberto, onde nós trabalhadores pudéssemos nos abrigar da chuva”, afirma.
Tão característico quanto os vendedores de açaí, são os chamados carregadores – geralmente homens que puxam carros apelidados de burro sem rabo – que estão por todos os lados do complexo. É deles a função de levar e trazer todos os tipos de mercadorias.
É nessa profissão que Pedro Silva atua há 30 anos na feira, desde que chegou de sua cidade natal, São Caetano de Odivelas, no nordeste paraense. Morador do bairro da Jaderlândia, em Ananindeua, ele segue a mesma rotina todos os dias. Acorda antes das duas horas da madrugada e segue para a feira.
“Isso aqui é a minha vida. Criei meus quatro filhos com esse trabalho e não troco ele por nenhum outro. Já fui pedreiro, repositor e servente com carteira assinada. Mas aqui consigo ganhar de três a quatro salários mínimos por mês e vivo com dignidade. Tenho orgulho do que faço e de trabalhar aqui”, diz ele, que atualmente conta com a parceria do filho, João Pedro Silva, que vende açaí no local.
Assim como Ana, Pedro também gostaria de poder contar com um galpão coberto para proteger os trabalhadores e suas mercadorias.
PEIXE
É ainda de madrugada que também começa o movimento na chamada Pedra do Ver-o-Peso. De longe existe a impressão de uma certa bagunça. Mas, olhando mais de perto, é possível perceber a organização dos vendedores, que arrumam suas bancas nas laterais do lugar, deixando um espaço aberto no meio para os carregadores e fregueses passarem. No local há uma variedade enorme de peixes.
Há 15 anos José dos Santos, natural de Abaetetuba, na região do Tocantins, madruga para vender seus peixes no local. “Trabalhamos em família, venho com meu cunhado e mais alguns parentes”, conta ele, que anteriormente trabalhava como vigilante. Ele chega ao local por volta de meia-noite e às seis horas da manhã já está se organizando para deixar o lugar.
A rotina que não lhe permite dormir uma noite inteira, no entanto, não o desanima. “Gosto de trabalhar nesse lugar, aqui todos se conhecem. Além disso, corre muito dinheiro nas vendas”, diz ele, diante da banca cheia de pirapitinga e tambaquis.
Quando o assunto é peixe, o vendedor Xistos Brito, de 81 anos, é apontado como unanimidade no Mercado de Peixe do Ver-o-Peso, onde começou a trabalhar aos 13. Ele é um dos mais antigos peixeiros do lugar e conhece como pouco as histórias do mercado. “Quando comecei aqui esse piso era mais baixo, as canoas eram a vela, tinham poucas geleiras, não havia toda essa fartura de peixe e, quando a maré enchia, alagava tudo por aqui”, lembra ele, ao lado do filho, Joelson Brito, que há três meses começou a ajudar o pai nas vendas.
Com os anos, ele conta que foi aprimorando a profissão. “Antes só vendíamos o peixe inteiro, mas, com o tempo, passamos a atender melhor o freguês, cortando em fatias e filetando o pescado”, diz.
A experiência também tem servido para atender turistas de outras cidades e até de outros países. “Tenho cliente de Minas Gerais, do Rio de Janeiro, de São Paulo e de outros estados que sempre que estão em Belém vêm comprar peixe aqui comigo. Já os estrangeiros, quase sempre vêm acompanhados de tradutores. Mas, quando isso não acontece, damos um jeito de entender o que eles querem. Eles sempre ficam encantados com a quantidade de peixe e sempre acham o produto barato”, conta ele, ressaltando que com o trabalho no mercado conseguiu sustentar seus dez filhos e esposa.
ERVAS
Uns dos produtos mais procurados na Feira do Ver-o-Peso são as ervas. No local há uma infinidade de tipos, que são comercializados pelas erveiras, na forma de extratos, banhos ou in natura. Cristina do Carmo é uma dessas erveiras e está na feira há 46 anos. “Meu marido era dono de uma barraca de ervas, ele era filho da famosa dona Cheirosinha e foi ele quem conseguiu uma barraca para mim também”, lembra.
Cristina acredita que a feira já tenha vivido seus tempos áureos e que, apesar de continuar tendo uma importância comercial e cultura enorme para a cidade, já não tem o brilho de antes. “Gosto muito daqui porque foi com esse trabalho que consegui criar meus filhos e netos, mas tenho que admitir que já não está tão bom como antes. Os turistas continuam vindo aqui, mas não como em outros tempos”, reclama.
A maior parte dos fregueses, segundo ela, é formada por paraenses, seguidos por turistas do Rio de Janeiro e de São Paulo e depois por estrangeiros das mais diferentes nacionalidades. Muitos chegam procurando um produto em especial. “O óleo e o perfume da bota, conhecido por atrair o sexo oposto”, diz. A procura é grande também por patchoulli e priprioca. “Para mim, essas duas são a cara da nossa cidade”, afirma.
Aos 76 anos, Raimunda Valois mantém uma barraca onde vende farinha na área da feira há mais de três décadas. Apesar de gostar do lugar e do que faz, ela diz que a feira, um dos pontos mais conhecidos de Belém, precisa de cuidados urgentes.
“Por aqui passam muito turistas, eles ficam encantados com a variedade de coisas que temos, mas também ficam assustados com a falta de cuidado. As crianças, por exemplo, passam segurando o nariz para não sentir o cheiro. É triste isso. Nossa cidade merecia ganhar de aniversário a reforma desse lugar”, enfatiza.
Celebração
O Ver-o-Peso vai completar este ano 393 anos de criação. Reconhecida como um dos patrimônios culturais do país, a feira e seus cerca de 5 mil trabalhadores merecem ser celebrados nesses 404 anos da capital paraense.
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