No dia em que Mãe Josina fundou o Terreiro de Mina Dois Irmãos, no bairro do Guamá, a abolição da escravatura no Brasil completava apenas dois anos. Com todos os efeitos do horror que foi a escravidão ainda muito presente, ela enfrentou todo o tipo de preconceito para que a sua casa resistisse. Em pleno funcionamento há 132 anos, o terreiro segue cultuando a religião de matriz africana sob o comando de gerações de lideranças femininas que, ao longo dos anos, também precisaram enfrentar a intolerância e o racismo religioso.
Quarta geração à frente da Casa, a Yalorixá Eloisa de Badé não esquece de tudo o que as gerações anteriores tiveram que enfrentar para que, hoje, o centenário Terreiro de Mina Dois Irmãos seguisse de pé. Desde o século XIX, mais precisamente de 1890, o terreiro funciona no mesmo endereço na passagem Pedreirinha e, assim como tantas outras casas de religiões de matriz africana, tem a história marcada pela resistência. “Essa história da intolerância já vem desde Mãe Josina, principalmente por ela ser uma mulher negra. Ela sofreu muito preconceito, mas sempre lutou pela nossa religião e na época dela era muito pior do que agora porque não tinham leis que amparassem”.
Vídeo: Filhotes de tartarugas marinhas são soltos em Salinas
A história repetida incontáveis vezes pela avó de Mãe Eloisa conta que Mãe Josina, fundadora da Casa, chegou em Belém vinda do Maranhão no transporte conhecido como pau de arara. “Veio a família toda porque lá no interior do Maranhão a vida estava muito difícil, principalmente para eles que estavam recém-libertos, que eram negros e pobres”, conta mãe Eloisa. “Esse pau de arara veio até São Brás, algumas famílias foram para a Pedreira, outras para o rumo do Jurunas e a mãe Josina veio com o povo dela para o Guamá. Aqui eles foram roçando, limpando e capinando. A primeira casa era de estacas de madeira, preenchidas com o barro que eles amassavam com os pés. Assim ela construiu esse terreiro”.
Desde esse período, as perseguições se fizeram presentes. “A minha avó contava que a mãe Josina sofreu muita humilhação, perseguição da própria polícia. As cavalarias vinham na frente do terreiro, subiam com os cavalos, chamavam ela de feiticeira, mandavam fechar. Mas a mãe Josina dizia que a fé que ela tinha no Preto Velho, pai dela, não ia deixar que fechassem a casa”.
Após o falecimento de Mãe Josina, foi a avó de Mãe Eloisa, a Mãe Amelinha, que assumiu a casa. À frente da segunda geração, ela também precisou enfrentar o racismo. Assim como Mãe Lulu, terceira geração, filha de Amelinha e mãe de Eloisa, atual liderança. “Se não fossem os antigos, não estaríamos hoje com as nossas casas abertas e, mesmo assim, a gente ainda luta muito contra esse tipo de preconceito, principalmente contra as mulheres”, considera Mãe Eloisa. “Eu sempre digo que eu não quero ser aceita ou tolerada, eu quero ser respeitada como eu respeito todas as religiões. A minha casa é uma casa afrorreligiosa, é um templo religioso assim como os outros”.
Mãe Eloisa acredita que o fato de o Terreiro de Mina Dois Irmãos ser centenário e tombado como Patrimônio Histórico e Cultural do Estado do Pará contribui para que os episódios de intolerância, hoje, sejam menos frequentes que no passado. Ainda assim, situações enfrentadas não há muito tempo continuam vivas na memória. “Todo ano a gente faz a procissão de São José que, tradicionalmente, sempre entra no Mercado Municipal. Em 2018, mais de 30 jovens invadiram a nossa procissão chamando a gente de demônio e dizendo que aquilo era coisa do Satanás”, lembra. “Nunca tinha acontecido aquilo comigo depois que eu já tinha assumido a casa. Fiquei muito revoltada”.
Veja o melhor roteiro para um turismo gastronômico
A possibilidade de assumir a liderança do terreiro que sua avó e sua mãe comandaram nunca passou pela cabeça de Mãe Eloisa, porém, essa escolha não era dela. “Em 2012 a 2013, o Alzheimer da minha mãe, que hoje está com 87 anos, começou a aumentar e ela tinha medo de não dar mais conta e a casa dela fechar. Nesse período teve uma sessão e o meu avô Verequete estava na minha mãe e ele chamou a mãe pequena da casa, que era a Mãe Nazaré, e disse que mandasse me chamar”.
Durante a conversa, Mãe Eloisa foi orientada a preparar uma roupa branca para começar a participar das sessões, ao invés de ficar apenas assistindo e assessorando a casa. O recado era para que ela começasse a se preparar para, brevemente, tomar conta do terreiro. “Quando foi em 2014 eu deitei para os meus vodunsos, sou filha de Xangô com Oxum e Iançã, que na nossa mina é Badé, Fina Jóia, e Mãe Maria Bárbara Soeira. Minha cabocla é Mãe Herondina, meu caboclo é Caboclo Zé de Légua e eu sou muito feliz aqui. Minha religião, minha missão eu estou cumprindo”, conta. “No começo eu tinha muito medo de não dar conta por ser muita responsabilidade, pelo nome da nossa casa, por três gerações que já passaram e que foram três mulheres vitoriosas que lutaram muito. Mas eles sempre disseram para mim que nunca iriam me abandonar, que iriam caminhar comigo e isso tudo acontece”.
Ainda que com maior respaldo legal do que na época de suas antecessoras, Mãe Eloisa e tantas outras zeladoras e zeladores de terreiros continuam sendo resistência à intolerância e ao racismo religioso. Assim como as gerações anteriores, o que ela deseja é que a sua sucessora ou sucessor encontre um cenário diferente para seguir vivendo a sua religião. “A minha avó dizia ‘minha filha, com o passar dos anos, quando eu não estiver mais aqui, eu espero que isso não aconteça mais, que a próxima geração da minha Casa já não passe mais por isso’, mas a minha mãe ainda passou por algumas intolerâncias. A minha avó dizia isso, a minha mãe dizia isso e hoje eu estou dizendo a mesma coisa: que a próxima geração alcance uma situação em que toda essa intolerância, todo esse racismo já faça parte do passado”.
Muitos casos de intolerância não chegam a ser registrados
Ainda que, hoje, a legislação garanta maior respaldo e proteção à liberdade religiosa, alguns desafios ainda são enfrentados para que se coíba mais fortemente o racismo religioso contra as religiões de matriz africana.
A coordenadora do Núcleo de Promoção da Igualdade Étnico-Racial (NIERAC) do Ministério Público do Estado do Pará (MPPA), Lílian Braga, aponta que ainda são poucas as informações de situações de intolerância que viraram procedimentos policiais. “Algumas dessas situações ficam somente na manifestação popular, às vezes nem chegam às delegacias de polícia”, considera. “Dos diálogos que o NIERAC tem tido com as organizações sociais que acompanham as populações de terreiro, eles repassam que não se sentem confortáveis de levar essa situação à polícia porque já levaram em outras ocasiões e não tiveram resultado”.
Comidas juninas podem afetar a saúde bucal; entenda!
Na perspectiva de mudar esse cenário, a coordenadora aponta que o MPPA e demais órgãos vêm atuando para desenvolver políticas que possibilitem que as pessoas se sintam fortalecidas para procurar os órgãos de segurança pública na perspectiva de coibir a intolerância religiosa e os ataques violentos que têm acontecido às populações de terreiro. “Há um plano de trabalho do Conselho de Segurança Pública do Estado que trata das populações de terreiro. São algumas medidas que o Governo do Estado do Pará planejou adotar e o MP, que é um membro do conselho, vem acompanhando o desenvolvimento de todas essas políticas”, aponta. “Racismo é crime e essas intolerâncias religiosas contra as populações de terreiro estão dentro dessa caracterização do racismo. Essas violências precisam ser tratadas, responsabilizadas e coibidas”.
Seja sempre o primeiro a ficar bem informado, entre no nosso canal de notícias no WhatsApp e Telegram. Para mais informações sobre os canais do WhatsApp e seguir outros canais do DOL. Acesse: dol.com.br/n/828815.
Comentar