“O que eu acabei de contar a vocês, eu nunca havia contado a ninguém na minha vida. Nem à minha mãe. Nunca”. A frase é da ex-prostituta Josenilda Silva e foi dita aos jornalistas do DIÁRIO. Josenilda é uma das muitas mulheres paraenses vítimas do tráfico humano, que têm como destino casas de prostituição fora do Brasil. Aos 34 anos, numa tarde quente, ela nos levou até sua residência. No fim da rua, bastante arborizada e ventilada, no bairro Parque Verde, em Belém, estava a pequena casa branca gradeada e rodeada de vasos com flores. A janela pintada de amarelo contrastava com a porta de forte tom vermelho. Antes de entrarmos, Josenilda nos alerta: “Cuidado! A tinta da porta está fresca”. Após atravessarmos o tapete bege, com as palavras “Lar Feliz” bordadas, sentamos, e ela, ainda um pouco tímida, também sentou em uma cadeira ao lado da janela. Acomodada e segura dentro da sua casa, Josenilda contou, com sinceridade, a experiência que desmantelou sua vida. Foi a primeira vez que ela concordou em mostrar seu rosto e seu nome verdadeiro, numa reportagem sobre tudo o que viu e viveu como uma mulher traficada por aliciadores.
Nascida no município de Moju, nordeste do Pará, ela viu os pais se separarem quando tinha 10 anos. Na mesma época, ela e a mãe se mudaram para Belém e Josenilda começou a trabalhar como doméstica, em casa de família. Aos 16, já estava morando sozinha. “E fui me virando”, lembra. Três anos depois, foi morar na travessa Padre Eutíquio, em frente ao Lapinha, famosa casa de prostituição da capital. Era o início do inferno na vida da menina que saiu do interior com o sonho de ser feliz na cidade grande. Ela conheceu algumas moças que trabalhavam no local e passou a frequentar a casa. Pouco tempo depois, estava fazendo shows de striptease e oferecendo sexo em troca de dinheiro. “Passei uns 2 anos trabalhando no Lapinha”, conta.
O SONHO EUROPEU
Nessa época, ganhou o apelido de “Jô” e ficou conhecida no cenário da prostituição em Belém. Do Lapinha, foi atuar em outra boate, recentemente inaugurada, na Cidade Velha: a Acrópole - hoje desativada. Ela não podia imaginar, mas estava dando mais um passo no caminho para se tornar vítima dos traficantes de mulheres. Na Acrópole, Jô conheceu uma jovem que dizia já ter morado na Espanha e que tinha muita vontade de voltar a viver na Europa. Os olhos de Jô brilharam. Morar no Velho Continente parecia-lhe uma ótima opção de vida. Pouco depois, essa moça foi para São Luís, no Maranhão. De lá, uma mulher a levou para a Espanha. Alguns meses mais tarde, Jô recebeu um telefonema na boate. “Era ela, perguntando se eu também queria ir para a Espanha. Lembro bem quando ela me disse que já tinha terminado de pagar a passagem aérea e que estava muito bem”, recorda. O sonho europeu parecia possível.
Para deixar o Brasil, no entanto, Jô precisava cumprir uma série de requisitos, incluindo, claro, tirar o passaporte. Foi tudo muito mais fácil do que ela imaginava. Da Espanha, sua amiga da boate a colocou em contato com uma mulher que se apresentou como “Bia”. Era de Bia a responsabilidade de resolver todas as questões burocráticas e documentais para que Jô pudesse viajar para o exterior. “Não precisei nem pagar para tirar o passaporte. Todas as despesas foram pagas por essa Bia”, diz.
Ela embarcou no aeroporto de Belém feliz da vida, acreditando que a vida na Espanha seria melhor do que no Pará. Mas nunca se enganou, nem foi enganada. “Eu sabia que ia trabalhar como prostituta”, afirma, com sinceridade. Antes mesmo de viajar, um episódio estranho aconteceu. Na noite anterior ao dia da viagem, Jô dormiu na casa de Bia, a agenciadora. Outra mulher, que faria o mesmo roteiro, também estava na casa. Bia deu uma orientação clara e suspeita às duas jovens prostitutas. Durante toda a viagem, tanto dentro do avião quanto nos aeroportos, elas não poderiam se falar. Teriam de agir como se não se conhecessem. E assim fizeram.
NÚMEROS
70 casos de denúncias de violações dos direitos humanos foram registrados de janeiro de 2011 a dezembro de 2014 no Pará. Desses 53 estavam relacionados ao tráfico de pessoas.
O fim da escravidão
Ao chegar à Espanha, o outro lado da rede de tráfico de mulheres já aguardava as duas brasileiras. Elas desembarcaram no aeroporto de Bilbao, no norte do país. À espera delas, estava um homem de meia idade, sozinho, na saída do aeroporto. “Ele já sabia quem nós éramos. Não sei como. Mas ele sabia”, conta Jô. O sujeito colocou as duas moças dentro de um carro e as levou a uma viagem cujo destino elas desconheciam. Sem falar espanhol, Jô mal tinha coragem de falar com o homem, muito menos de perguntar para onde estava sendo levada. No meio da madrugada, pararam para dormir, num hotel de beira de estrada.
No dia seguinte, chegaram ao destino: uma casa noturna, com mulheres circulando seminuas e fazendo shows de striptease, na pequena cidade de Ribadeo, onde hoje vivem apenas cerca de 10 mil pessoas. Jô e sua colega não tiveram tempo nem para descansar. Trocaram de roupa e já começaram a trabalhar. Na hora de dormir, num quarto com outras moças da boate - incluindo brasileiras -, ela foi alertada por uma das mulheres de que sua vida começaria a se complicar. Todos os seus documentos haviam sido confiscados pelo dono do lugar, com quem já tinha uma dívida de 3.500 euros - cerca de R$ 14 mil, em valores atuais -, referentes aos gastos da viagem, tarifas de bagagem, roupas e documentação. Enquanto não pagasse o que devia, Jô não poderia largar o emprego. E ainda havia o pagamento de 50 euros - R$ 200 - pela diária no quarto em que ela dormia na boate.
A única forma que ela tinha para quitar sua dívida era vendendo sexo. Com isso, porém, já estava acostumada. O problema maior era não ter mais a sua liberdade.
E a sensação de escravidão só aumentava. Até nas poucas vezes em que era autorizada a telefonar para sua mãe, no Pará, Jô era observada por uma pessoa enviada pelo dono da boate. Com isso, ela temia contar à mãe tudo o que estava acontecendo e sofrer ainda mais. Numa pequena cidade do interior da Espanha, sem falar o idioma local, com as dívidas aumentando e constantemente vigiada por empregados do patrão, Jô estava submetida a uma situação de cárcere privado. Era mais uma vítima do tráfico de mulheres no mundo. E não sabia o que fazer para voltar a ser uma mulher livre.
Dessa época, ela guarda, ao menos, uma boa lembrança, de um episódio que, não por acaso, aconteceu justamente na noite em que seu cativeiro teve fim, 3 meses após sua chegada à Espanha. Numa operação policial, a boate foi fechada e os proprietários e o motorista que fazia o transporte das mulheres foram presos. Com o fim do negócio ilegal, as mulheres que trabalhavam na casa tinham, diante de si, outro problema. Estavam livres, mas sem ter para onde ir nem onde ficar. A cena jamais saiu da mente de Jô. “Todas as meninas ficaram sentadas na calçada, em cima de suas malas”, lembra. Entre todas as suas colegas, uma em especial chamou sua atenção. “Uma garota estava com um ursinho de pelúcia no colo. Nunca esqueci dessa imagem".
Após a liberdade, o retorno ao Brasil
Libertada do cativeiro e da rede de tráfico de mulheres, Jô precisava continuar trabalhando, para juntar dinheiro e poder voltar ao Brasil. E sua decisão foi a que lhe pareceu mais fácil e óbvia: seguir a vida de prostituta. Não foi difícil encontrar outra boate interessada numa brasileira de boca carnuda, pele morena e coxas grossas. Em poucas semanas, já estava novamente em ação. No novo local de trabalho, encontrou outras jovens, de vários países, em situação ainda pior do que a sua. “Algumas africanas diziam ter dívidas de mais de 10 mil euros - em torno de R$ 40 mil. Outras meninas da Romênia, muito novinhas, nunca tinham feito programa sexual na vida e nem sabiam que iam trabalhar como prostitutas”, conta.
Para Jô, no entanto, a vida estava infinitamente melhor do que fora nos seus primeiros meses em território espanhol. Pelo menos ela não se sentia uma escrava. Passou mais 9 meses nessa boate, juntou dinheiro suficiente para comprar um terreno para a mãe e poder largar a vida de prostituta. “É uma profissão muito difícil, sofrida”. Ela arrumou um namorado espanhol e começou a trabalhar num bar. Até que decidiu que era a hora de voltar para o Brasil. Queria retornar ao Pará. “Cansei de tudo aquilo. Aproveitei que tinha brigado com o namorado, juntei minhas coisas e comprei uma passagem para Belém”, diz.
CAUSA NOBRE
De tudo o que sofreu na Espanha, Jô destaca a falta de liberdade como a pior experiência da sua vida. “Eu sabia que tipo de trabalho eu faria lá. O problema foi ser privada da minha liberdade”, conta.
Para ela, que se diz uma mulher de alma livre e que sempre teve o domínio da própria vida, ser escravizada a milhares de quilômetros do seu país não poderia ser algo facilmente superado. Não foi. Mas ela conseguiu. Hoje, Josenilda Silva é mãe de dois filhos e trabalha como funcionária pública da rede municipal. E faz parte do Grupo de Mulheres em Movimento, que nasceu a partir de uma pesquisa de ação sobre migração, gênero, trabalho e tráfico de pessoas. No total, o grupo possui onze mulheres brasileiras da periferia de Belém que passaram por experiências similares à de Jô, no exterior. Durante 2 anos (2010 e 2011), essas mulheres se reuniram para falar sobre o tráfico internacional de prostitutas. Desses encontros, nasceu o livro “Mulheres em Movimento: Migração, trabalho e Gênero em Belém do Pará”, que detalha relatos dessas onze mulheres. No livro, porém, nenhuma delas mostra o rosto nem revela seu verdadeiro nome. Nesta reportagem, Jô se revela pela primeira vez, contando sua história sem medo de julgamentos. E faz isso por uma causa nobre. “Resolvi me expor dessa maneira porque há muitas moças prestes a cometer o mesmo erro que eu cometi. Acredito que meu depoimento pode ajudá-las a não cair nessa armadilha”, declara. “Tem muita gente que não sabe que existe esse mercado internacional de tráfico de mulheres”.
Ela própria desconhecia esse tenebroso universo, mesmo depois de entrar para a lista de vítimas. “Passei anos sem saber que eu tinha sido aliciada por traficantes de pessoas”, conta. O esclarecimento só veio em 2007, quando Jô conheceu a Sociedade de Defesa dos Direitos Sexuais na Amazônia (Sodireitos). Um dos temas debatidos no grupo era justamente o tráfico de pessoas. “Só então percebi que eu tinha estado naquele mundo”. Foi justamente dessa experiência de Jô na Sodireitos que surgiu o livro “Mulheres em Movimento”. Hoje, com a vida refeita, ela se diz uma mulher feliz e mostra força e coragem ao tratar do assunto. Sua única preocupação é não deixar que a mãe saiba do seu passado. “Minha mãe já sofreu muito na vida. Acho que seria mais uma culpa para ela carregar”, diz Jô, com os olhos lacrimejando. “Só decidi contar tudo nesta reportagem porque acredito que vai ajudar muita gente”. É o que todos esperamos.
Reconhecer o crime: um nó no combate ao tráfico
Para debater o problema e discutir medidas e propor o debate de experiências, foi realizado nesta semana o II Seminário Estadual de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas, dirigido em especial a vítmas desse crime no Pará. A coordenadora do Comitê Estadual de Tráfico de Pessoas da SEJUDH, Leila Silva, ressalta: a falta de conhecimento em relação ao assunto ainda é a principal dificuldade para o combate ao tráfico de mulheres no interior do Estado. “Uma das maiores dificuldades é a de que as pessoas, muitas vezes, não sabem ou têm problemas em caracterizar e identificar o crime”.
Em Belém, um grupo atua há mais de 10 anos no enfrentamento ao tráfico de pessoas, na Sodireitos, ONG que trabalha na defesa dos direitos sexuais e migratórios e contra o tráfico de pessoas. Angélica Gonçalves, assistente social da Sodireitos, enfatiza a importância de esclarecer o assunto para torná-lo visível à sociedade. “O trabalho da ONG consiste, principalmente, em uma plataforma de três eixos: a prevenção, por meio de palestras e conscientização, o conhecimento, ou seja, a produção de pesquisas para gerar informações, e, por fim, o controle social”, destaca.
(Diário do Pará)
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